domingo, 19 de maio de 2013

A culpa e o politicamente correto



Poder-se-ia dizer que uma das características do mundo pós-moderno, através de suas instituições, expedientes, discursos e slogans é o impelir-nos ao sentimento de culpa. Parece haver um protocolo definidor de todas as nossas ações que, quando não atendido, prodigaliza outros referenciais, em virtude dos quais sentimo-nos enredados em uma trama maledicente e ao mesmo tempo velada. Perguntamo-nos, então, pelo por que da culpa. Mas a culpa de que falo não é advinda de prática delituosa ou criminosa; a culpa em questão vincula-se, sobremodo, a raiz do agir “politicamente correto”; algo como a omissão ou o desleixo em relação ao próximo. Enfim, a uma ação que se mescla ao pecado.
Ora, o pecado, tanto quanto a culpa estipulada pelo agir “politicamente correto”, parecem filiar-se a um dever, que, por sua vez, alia-se a uma ordem divina, isto é, à transgressão de um preceito religioso. No entanto, nem sempre a coisa foi assim: os gregos desconheciam pecado e/ou culpa; eles se valiam do termo hybris, que se poderia traduzir por imoderação, demasia, desregramento, falta de equilíbrio entre duas condições extremas, ou seja, a carência ou o excesso. Então, perguntamo-nos: quando o pecado e, por conseguinte a culpa adentram as relações humanas? Simples, com o cristianismo.
Ao pregar a fraternidade, o cristianismo estipulou normas de condutas, sentimentos, valores e preceitos que deveriam reger, daquele momento em diante, todo o agir humano. Seres humanos, reféns desses novos valores, passaram a sentirem-se responsáveis não só por si mesmos, mas também por seus iguais. Tal sentimento tornou-se a tal ponto arrebatador que incutiu em todo e qualquer ser a ilusão do dever de travestirem-se em novos deuses, ou na imitação de um Deus referência. Ora, esse mesmo sentimento acabou despertando em todo e qualquer ser humano um inequívoco narcisismo. 
Somos todos Narcisos ou projetos do mesmo. Sentimo-nos na obrigação de servir, não pelo respeito ou deferência ao próximo, mas por uma ordem velada, que, se seguida, faz-nos sentir bem; não há um respeito ao outro, mas a busca de uma realização íntima, que se pode traduzir por saciedade e vaidade, ambas cônscias de um mero capricho protocolar realizado. Bem, aqui poder-se-ia perguntar: e quando não somos servidos e/ou respeitados em nossas pretensões? Simples, o mesmo protocolo nos torna vítimas diante dos outros; o mesmo protocolo faz com que nos sintamos sempre os coitados, os desprezados, os pré conceituados. Esquecem, no entanto, que nós, seres humanos, não muito distantes da condição selvática, ao nos sentirmos assim, subvertemos um princípio basilar: "animais selvagens simplesmente morrem sem nunca terem sentido pena de si mesmos". A auto comiseração já revela a falha.
Unido a tudo isto, a vida se nos impõe situações as mais polêmicas, as mais dilemáticas. Mas não seria o dilema uma outra falha? E quando o ser humano percebe sua falha lhe sobrevém a culpa, a má consciência, e não pela falta em relação a outrem, mas pela cobrança que faz de si na certeza do irrealizado. Para realizar o "teatro das boas ações" em relação ao outro, seres humanos acabam por sublimar suas convicções, seus conceitos, preconceitos e valores. Na verdade, o ser humano quer realizar somente a si, através do outro, e nada mais. O outro, portanto, é o estorvo necessário às nossas realizações.
Neste ponto obrigamo-nos a uma ingênua questão: por que não nos ocuparmos simplesmente em buscar, através de nossas ações, o equilíbrio, a moderação, o regramento, estabelecendo assim um conceito de hybris pós-moderna? Ora, a hybris, de modo velado, implica liberdade; então por que não nos basearmos na liberdade, agindo independentemente de protocolos ou cânones, que quando não se realizam nos estigmatiza? Pode ser que tais ações não atendam de per si o “politicamente correto”, mas, de fato, minimizarão sobremodo a esquizofrenia humana. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Dos sabores ou da juventude



Confesso que a temática em questão deveria pautar-se, também, em ampla pesquisa de opinião. No entanto, minha breve experiência como pesquisador foi fracassada, pois as pessoas com as quais abordei o assunto mostraram-se insipientes, lacônicas ou algo que o valha. Certifiquei-me, portanto, da minha falta de inclinação natural para pesquisas in loco. Todavia, permito-me discorrer sobre o assunto, embora ciente das celeumas que daí possa advir. Refugio-me, por conseguinte, na despretensiosa certeza de que o texto a seguir não se arvora em status de artigo científico.
Bem, mas atenhamo-nos aos sabores. Não sei se por conta da idade, ou por conta das aleivosias características da própria idade, comecei a perceber certo dissabor nos sabores. Algumas frutas – e não poucas – revelam-se-me como aguadas ou, se preferirem, insípidas; alimentos outros mostram-se-me como enjoativos, repugnantes mesmo. Alguns odores, típicos de certos alimentos, agora me parecem nauseabundos. 
Então, tem início minhas lucubrações especulativas no intento único de justificar meu desapego às opções alimentares. Seria o desgaste dos solos? Seriam os processos de fertilização, exatamente para minimizar tal fenômeno? Seriam as experiências transgênicas? Seria o empobrecimento do sentido do paladar? Seria a degeneração dos sentidos em função de uma depauperação orgânica? Não seria uma disfunção secundária em virtude da percepção acurada da insipidez da própria existência? Não seria uma espécie de ageusia - a perda da capacidade de sentir paladar - isto é, um tipo de afasia dos sabores?
 Subitamente me chega à imagem dos temperos, dos molhos, enfim, dos produtos que exaltam sabores. Ora, se tais existem, é porque os alimentos em si requerem um complemento. E, não casualmente, recordo que nos dias de hoje há uma intensa oferta dessas ferramentas complementares ao sabor. Parece-me, então, que minha observação não é de modo algum desprovida de fundamento. Contudo, na juventude, pelo menos em minha juventude, os alimentos me pareciam mais saborosos, suculentos, deleitosos. Será que a juventude desfruta de sabores (paladares) que o tempo se encarrega de degenerar? Será que a consciência do vivido torna também desagradável paladares, aromas, sensações? Nesse caso, faz-se mister o recurso dos molhos, dos temperos.
Não obstante, observo a mocidade. Precisariam, de fato, de tais recursos visando o apuro do olfato e paladar? Se a emasculação dos sentidos vem com a idade, por que tais recursos em período tão lúdico, tão ingênuo? Por que a precocidade? Estariam os jovens desenvolvendo uma precoce precocidade, justamente porque o vivido se lhes corrompe e aliena? Por que os jovens, esses holders of flavors - detentores de sabores - estão, cada vez mais, fazendo uso de recursos espúrios na alimentação? Estaria o termo ingenuidade fadado ao ostracismo?
A resposta a todo este questionamento funde-se, assim me parece, depois destas breves conjecturas, a uma única sentença: Mesmo se levando em conta a exaustão do solo, os experimentos para recuperá-lo, os testes transgênicos, o envelhecimento orgânico e tudo o mais, há que se ter em mente a dilapidação dos valores, dos preceitos, das relações, que, de certo modo, influenciam negativamente no vivido, tornando o desfrutar da vida em si como desprazer. O prazer do alimento, que se manifesta como complemento/fundamento ao prazer de viver, parece-me deteriorado. Mas o que me causa espécie e preocupa é o fato de que a juventude pode estar sendo arrebatada de sua paladaricidade.  

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Utilidade da filosofia ou filosofia da utilidade?



Não raramente, pessoas - prefiro falar em incautos - perguntam a si mesmos e a outros pela utilidade da filosofia. Parece-me que o equívoco advém de outro equívoco: entender a filosofia como ciência prática ou exata, isto é, algo que proporcione um resultado tangível. Neste caso, as pessoas, de fato, não buscam uma utilidade para a filosofia, mas sim uma filosofia da utilidade. Lamentavelmente, a filosofia não se propõe a semelhante desideratum.

Outra questão, então, nos é colocada: Para que filosofia? Eu poderia discorrer exaustivamente acerca da mentalidade cartesiana que nos foi infundida; poderia também demonstrar que o cientificismo busca em tudo resultados práticos. No entanto, a coisa poderia parecer retórica, pois os questionadores, exatamente por seus questionamentos, já demonstram uma total insipiência a partir do próprio questionar.

Mas não nos calemos; não façamos ouvidos de mercador; não tentemos nos encerrar numa pseudo sabedoria, olvidando com desfaçatez e desprezo as lacunas de um desconhecimento ingênuo. A filosofia mesma condenaria tal expediente. Ora, a filosofia, diferentemente das ciências e técnicas, não forma profissionais. Filósofo profissional? Não! A filosofia, simplesmente, incita ao pensar, induz ao questionar racional. E então se revela uma primeira dificuldade aos neófitos: como ensinar a pensar alguém que já pensa? Mas a filosofia não ensina ninguém a pensar, apenas os estimula a fazê-lo, mas só que com o vigor de uma exigência lógica.

Não obstante, a filosofia necessita de algo extrínseco, isto é, algo presente naquele (a) (s) que a ela se propõe dedicar, e não em si mesma. A filosofia, já que não busca resultados práticos, pode manifestar-se como saber inócuo para uma grande maioria. Por quê? - insistiriam os leitores. Ora, o saber, que a princípio mostra-se como inócuo, assim parece aos inocentes por conta da própria inocência. A inocência não demonstra a inquietação necessária ao estudo filosófico. Candura e simplicidade vestais prescindem do saber filosófico. Aliado a isso, faz-se mister a experiência. Não a mera experiência de um fazer repetitivo, mas de um vivenciar - erleben - ter consciência do vivido. O simples viver não satisfaz à exigência filosófica. Ora, a vivência mesma está vinculada ao tempo vivido. Portanto, a filosofia não se mostra como fundamento ao pensar, quando afastada da vivência dos que a ela se dedicam.

Outro esclarecimento: Não se ensina a filosofar, mas sim a se utilizar de pressupostos filosóficos para estruturar o pensamento. O que se pode aprender então? Uma história da filosofia, em todo o seu evoluir conceitual, em todo o seu aparato lógico formal. A filosofia fornece ferramentas que auxiliam o pensar, mas tal aproveitamento só se verificaria quando no abandono da ingenuidade. Aí sim, o genuíno aflora despido de pré-conceitos e preconceitos; o banal se esvai, a maturidade irrompe e desilude. Logo, não há uma ilusão na filosofia, pois que a filosofia mesma prima pela desilusão; não há uma miséria da filosofia, pois que a indigência e as imperfeições humanas é que buscam sofregamente por seu consolo, refúgio e conforto.

Contudo, não nos furtemos a disseminar o estudo da filosofia, apesar de todos os percalços que possam existir. Não façamos da filosofia um troféu inatingível, uma instância destinada a gerontes. A insipiência, assim queremos crer, é efêmera; o desconhecimento é uma fase do desenvolvimento humano; a juventude é o que sempre foi: rebelde, um tanto inconsequente, imediatista e com a libido exacerbada. Falta-nos, assim me parece, um pouco de persuasão e método para lidar com essa recém-nata imprudentocracia, que persegue uma filosofia da utilidade.