segunda-feira, 23 de abril de 2018

O jeitinho brasileiro



Por que o “jeitinho” brasileiro? O que é o “jeitinho” brasileiro? As questões estão imbricadas; o “por que” e o “que” se complementam e corroboram. O “jeitinho”, por ser um jeito, à luz da própria semântica, foge a qualquer prévia determinação, orientação, condução, pois envolve astúcia, o improviso para se livrar de uma situação difícil e/ou embaraçosa. Portanto, não deve ser algo constituinte da formalidade, e, por consequência, da legalidade. O “jeitinho” brasileiro vincula-se amiúde ao ilegal, ao ilícito, ao imoral, ao amoral e, ipso facto à corrupção. Seriam nossas leis tão mal estruturadas a ponto de permitirem-se ao descumprimento, ao abuso, ao desprezo? Será que nossas leis trariam em si mesmas a característica de proporcionarem a própria ineficácia, ineficiência? Seria algo como um vício redibitório jurídico quanto à formação, só observado após o sancionamento?
Poder-se-ia aqui argumentar que nossa lei maior, a Constituição, até por se tratar de uma Constituição, documento materializado, com caráter de rigidez, extremamente formal, normativo e regulamentar, sempre apresenta certo descompasso no tocante ao fato social. Nossa Constituição não codifica costumes correntes porque deles se afasta - herança kelseniana -, e com isso expressivo número de leis se mostram inexequíveis.  Evidentemente que não há a menor possibilidade de transformar nosso sistema normativo numa espécie de Brazilian Commmon Law, isto porque o próprio Poder Constituinte Originário impede tal proposta. Pode-se ainda argumentar, e com toda razão, que nossa Constituição parece ter certo affair com o Código Civil, isto porque se envolve em questões que fogem à alçada de qualquer Constituição. Muitas das leis, passados quase 28 anos, ainda permanecem no limbo, isto porque carecem de leis complementares. Nossa Constituição assimilou o título de Constituição Cidadã; mas a que preço? Algumas propostas são, de fato, inexequíveis, e com isso incorpora o estigma de uma utopia. Alguns artigos, com seus parágrafos e incisos adentram a esfera do dever-ser. Como pode uma Carta Magna, que tem por objeto estabelecer, controlar e resguardar direitos e obrigações dos seres humanos que estão sob sua tutela, basear-se num mundo ideal, parafraseando Platão, Morus, Campanela, kant e outros? Na verdade, nossa Constituição não é Cidadã, mas simplesmente uma Carta Magna redigida sob a égide de uma ideologia e sob os auspícios de um grupo de ressentidos, agora cidadãos, que encontraram uma oportunidade de positivar seus “direitos”. Nossa Constituição esbanja direitos e pretende garantir esses direitos; vivemos numa “Era dos Direitos”, onde parece que a contrapartida, os deveres, foram olvidados.
Roberto Campos, em A Sociologia do Jeito, após breve análise sociológica de nosso sistema legal, entende que em face do formalismo, descumprir a lei é um modo de o indivíduo sobreviver no meio social no qual está inserido, haja vista construções jurídicas estranhas terem sido importadas e adequadas à nossa realidade, onde as mesmas carecem de mínima contextualização. Roberto Campos, em função da análise acima relatada, entende e justifica o “jeitinho” brasileiro como uma paralegalidade, muito embora ressaltar que não se trata de justificar de modo indiscriminado e licencioso o advento de um “jeito paralegal”. Segundo o sociólogo, em se impedindo a paralegalidade estaríamos diante de duas situações extremas: teríamos ou uma sociedade extremamente rígida ou uma sociedade temerária. Bem, apesar do conforto que tal teoria nos trás - não somos corruptos, apenas paralegais, - devemos perguntar quais são os limites desta paralegalidade, onde possamos separar o joio do trigo, ou seja, a molecagem travestida de “jeitosa”.  A título de esclarecimento, entendo pertinente citar Peter Sloterdijk e sua obra Crítica da Razão Cínica: “Qualquer teoria ou sistema sociológico que trate a verdade funcionalisticamente, carrega um imenso potencial para o cinismo”. 
Um outro sociólogo, Sérgio Buarque de Holanda, busca explicar essa nossa faceta corrupta e corruptora, e, por conseguinte o “jeitinho” brasileiro, através de uma natureza amigável, um ser humano emocional - segundo ele algo tão “característico” de nosso povo -, que desenvolveu uma tendência histórica à informalidade. A pergunta então seria: somos, de fato, possuidores dessa natureza amigável, dessa emotividade exacerbada a ponto de usar de circunlóquios para fugir a aplicação das leis, ou isso seria apenas mais um engodo para dar sustentação ao próprio circunlóquio? Parece que, apesar dessa nossa “tendência”, nosso ordenamento jurídico preocupa-se sobremodo com tal expediente, haja vista o considerável número de leis que o compõe, esquecendo inclusive que grande número de leis não é sinônimo de justiça ou bem estar social.
Percebe-se todavia que, países que apresentam reduzido índice de corrupção têm leis mais rígidas, não só quanto à exigência de seus adimplementos, mas também demonstram apoio e respeito a seus cidadãos através de regras bastante claras no que tange a pessoas que ocupam cargos públicos. Em havendo maior confiança entre cidadãos, bem como entre estes e suas instituições, haverá maior cooperação, menos burocracia e menor investimento em segurança. De onde se pode entender o maior investimento em educação.
E por falar em educação, voltamo-nos à questão primeira: Por que o “jeitinho” brasileiro? Não, não há nenhuma lacuna entre a norma, sua interpretação e aplicação, embora nossa Constituição ser eivada de “tendências” e capaz de criar certos embaraços; a paralegalidade é apenas mais uma tentativa de mascarar uma realidade que nos avilta, mas que o “cinismo” social opta por justificar porque é sobremodo reconfortante; de igual modo essas características que nos foram impingidas, a natureza amigável e o ser humano emocional, nada mais são do que subterfúgios para dar um novo verniz ao inescrupuloso, ao aberrante.
O problema do Brasil, ou melhor, dos brasileiros, é algo simples de se detectar, mas extremamente difícil de erradicar: é um problema de caráter. E tanto se trata de um problema de caráter que recentemente está-se fazendo uso de recursos espúrios, ou melhor, recursos jurídicos isentos de caráter, na tentativa de minimizar a maximização da falta de caráter que impera na política e empresariado brasileiros. Refiro-me a dois novos “institutos” jurídicos: Delação Premiada e Acordo de Leniência. Aqui, parece-me apropriado citar o adágio popular: “Quando não se pode (ou não se quer) combater um mal, adere-se a ele”.
Somos, na interpretação de Mário de Andrade, uma nação sem caráter. Somos um aglomerado de Macunaímas, num país já macunaimado; somos um Estado “faz de conta”, onde tudo é possível, passível, admissível, aceitável, o que nos remete a outro gênio interpretativo da realidade brasileira: Monteiro Lobato. Habitamos o Sítio do Pica Pau Amarelo. De fato, “O Brasil não é um país para amadores”.

domingo, 22 de abril de 2018


“Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli”.[1]
Ovídio

Não são raras às vezes em que alguma máxima, entendida aqui como dito sentencioso, se nos apresenta com impressionante atualidade. Estaríamos, de fato, sujeito ao “eterno retorno do mesmo”? Não obstante, a atualidade do dito parece pervadir um pessoal dia-a-dia. Certamente estais a vos perguntar: Mas o que se pode, neste caso, entender por bárbaro? Por certo não me reporto à incivilidade, nem à selvageria. O que me ocorre, de momento, é que a ausência de valores pode lançar qualquer sociedade na barbárie. Ora, mas em uma sociedade bárbara, neste caso carente de valores, o barbarismo é considerado algo natural. Portanto, bárbaros seriam aqueles que distam patentemente dos desvalores - ou falta deles - contemplados por tal ou tais sociedades. Interessante é que a máxima de Ovídio refere-se pontualmente a questão da linguagem, que quando não partilhada impede a comunicação. Ora, um fosso valorativo, ou seja, uma discrepante diferença entre valores também é impeditiva à comunicação.
E as dificuldades têm início no seio da família. Os jovens, os filhos, optam, assimilam e, ipso facto, defendem novos valores. Até aí, as coisas se mostram como naturais. No entanto, na pós-modernidade, esses novos valores demonstram certa contradição, isto é, ausência de valores, pois que no afã de se imporem, os valores mesmos olvidam a liberdade do próximo; querem experimentar uma liberdade libertária; exigem dos mais velhos - aqueles por quem foram criados e que lhes forneceu outros valores, ou seja, os fundamentos - uma total aceitação aos novos paradigmas; exigem total ruptura com o que lhes parece arcaico ou démodé. Esquecem, porém que - e aqui apoio-me em Hannah Arendt - constantes rupturas criam lacunas insuperáveis. Os novos valores da juventude se revelam como antidialéticos, o que polariza as relações e torna a convivência insuportável. Aqui, então, sinto-me um bárbaro.
Na sociedade não é diferente. A sociedade apenas é o reflexo das relações oriundas da vida em família. Aristóteles exemplifica semelhante tese ao demonstrar como as formas de governo tem origem no seio familiar. E os valores sociais nada mais são do que a repetição dos novos valores assimilados pelos jovens e respectivas famílias. Sim, porque as famílias - em nome de uma imposta correção de rumos, sujeitas aos mais toscos e tendenciosos discursos, discursos estes apoiados por pseudociências e potencializados por ideologias vãs - fizeram-se submissas, servis.
Como a sociedade reflete a crise nos valores familiares, epifenômenos podem ser identificados, seja na educação, na política, nas relações e nas artes de um modo geral. Observa-se também crises institucionais de grande monta. A sociedade, mesmo adoentada, quer dizer-se democrática, pois o discurso dito democrático serve como afago e justifica a perpetuação do desregramento. Tal sociedade mostra-se insensível e a insensibilidade torna-se patente com o desrespeito ao cidadão, com o descaso às instituições. Então estamos diante da personificação do pífio, porque lidamos não com a democracia mesma, mas com uma democracia totalitária. E todo aquele que não compactua com esses desvalores, a sociedade o vê como bárbaro.



[1] Aqui eu sou bárbaro, porque não compreendido por qualquer pessoa.