terça-feira, 27 de agosto de 2019

O trema nosso de cada dia



Ao sair à rua deparo-me com uma senhora que conheci ainda em minha tenra idade. Cumprimento-a: – “Bom dia! Tudo bem?” E ela responde-me: – “Bom dia meu filho. Tudo tranquilo”. E logo em seguida começa a desfiar uma série de problemas, obstáculos, doenças, conflitos, etc. Enfim, ela contradiz a recente declaração de que estava tranquila. Pergunto-vos: por que isso acontece? Simples, porque o tranquilo já não mais usa o trema. Uma tranquilidade sem trema revela desassossego, inquietação. Mesmo que só pronunciado, o hiato acaba por trazer em si incoerência, oposição, contestação. A diérese, portanto, faz-se fundamental.

Mas não nos limitemos a um único exemplo. Eu gostaria de dar sequência à crônica, desde que seja uma seqüência, pois sem trema não haveria seguimento, sucessão, ordem. Pois bem, já que vós não podeis redarguir – sem o trema, evidentemente, pois na presença dele não há possibilidade de réplica – sinto-me mais à vontade para fazê-lo.

Sabeis vós que a medicina veterinária acaba de detectar certa anomalia nos pinguins? Sério, essas aves parecem estar passando por uma mutação genética; uma transformação no DNA. Lógico, os pinguins perderam os tremas. Já não mais comem peixes, agora comem de tudo, são onívoros; comem até linguiça. E linguiça sem trema traz uma série de males aos seus consumidores. E não foram apenas os pinguins que sofreram com a ausência do trema: os saguis, pequenos primatas da América do Sul, agora possuem polegares opositores; os equinos deixaram de relinchar e apenas resmungam algo como um funk.

Gente, em todos os âmbitos da nossa vida, inclusive na ciência, a ausência do sinal gráfico, o trema, teve péssima repercussão. Na matemática, o cinqüenta já não vale mais cinquenta; agora a coisa varia entre 49,986 e 50,034. O quinquênio, por sua vez, tem mais de cinco anos. O equidistante manifesta diferentes distâncias; os equiláteros já não mais têm os lados iguais. A aquicultura tem outro arcabouço, pois o meio líquido tem composição diferente do H2O.

Prezados leitores, e há consequências bem piores das que até aqui venho elencando: advogados, justamente amparados pelo Novo Acordo Ortográfico, alegam que sem trema, de fato, não houve sequestro; ninguém delinquiu. Não existem delinquentes. O princípio é: “Não existe crime sem trema que o pré-estabeleça”. Mesmo que os promotores venham a entrar com recurso e arguir testemunhas, independente se o arguir faz ou não uso do trema, a freqüente demanda dos advogados criará, por si só, uma espécie de jurisprudência. Advogado que se preza não abre mão do trema em sua eloqüência. E ninguém poderá acusar o juiz de iniquidade, pois sem trema o iníquo revela-se como justo. Conseguistes atentar para a gravidade? A falta do trema cria uma insegurança jurídica.

Como podeis perceber, o não uso da diérese pode ter conseqüências imprevisíveis. Como exigir de alguém que seja bilíngue, se o trema está ausente? Conformemo-nos, portanto, com qualquer inglês, ou francês, ou espanhol ... de beira de cais. Dizei-me com franqueza: como o comércio pode promover liquidações, se estas veem sem trema? O que temos é uma febre de Black Fridays que só faz enganar o consumidor. E, por fim, o que mais me preocupa: O que dizer da antiguidade, do antiquíssimo? Creio que por falta do trema estamos perdendo nossa identidade cultural, estamos nos afastando da nossa história, perdendo nossa autenticidade e abrindo mão do legado que forjou nosso povo, nossas crenças, nosso idioma.

domingo, 11 de agosto de 2019

Hodierno



Este, na verdade, é um desabafo, fruto da patente dificuldade nas relações no mundo atual. As pessoas, em sua maioria, entopem-se de informações superficiais, tendenciosas e igualmente inócuas, e são incapazes de filtrar tais notícias; elas simplesmente as repassam sem qualquer critério, pois lhes falta o mínimo de criticidade. Não há mais diálogo; há apenas empenho por parte de muitos em transmitir e defender ideias ou opiniões que lhes são de todo estranhas. O processo de emburrecimento parece-me, portanto, irreversível. Há um surto não endêmico – arrisco-me a falar em epidemia – de bloqueio cognitivo. As pessoas dão a entender que se negam a pensar; o dia-a-dia oferecido lhes basta, o que é sugerido é bem-vindo, o que é apresentado torna-se verdadeiro.

Paralelamente vemos emergir uma espécie de culto à agressão. Já percebestes que existe uma agressão no falar e nas próprias relações cotidianas? Há agressão no vestir, no trajar, no embelezar. A estética mostrou-se permissiva com a agressividade. Corteja-se de modo agressivo; ama-se de modo agressivo. As notícias são pura agressividade. A arte contemporânea prima pela injúria, insulto, ataque. A literatura é agressiva, as artes plásticas são impetuosas e desagradáveis porque violentas, o cinema e o teatro agridem, a música e a dança são agressivas. A poesia tem por base a agressão.

Vez por outra aparece alguém dizendo-se disposto a arrefecer e modificar semelhante condição. Mas, qual nada... Pautado em sua própria insipiência, falta de sensatez e patente ignorância, lança mão de incauta sutileza para revelar um cinismo imoderado. Apela para o motejo, para o gracejar; e vem a ironia, a troça, a zombaria, o escarnecer. Enfim, o que se tem é sarcasmo acerca de algo ou tema que, em si, permanece ignorado.

Pergunto-vos: Como é possível a convivência?