quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Estímulo

 

O texto a seguir poderia ter por título Sugestão. Todavia, independentemente de designação, e até por prudência, dou início ao mesmo a solicitar vênia, haja vista a temática abordada. Pois bem, vamos a ela. É manifesto o alcance do movimento em prol da libertação da mulher. Entendo-o como recente por tratar-se de algo em torno de 50 anos (talvez um pouco mais), afinal, o Women’s Liberation Front teve início no final dos anos sessentas. O movimento valeu-se de algumas bases como ponto de partida que, com o correr dos anos, apresentaram como resultado natural a melhor e maior inserção da mulher no mercado de trabalho, a criação de leis objetivando sua proteção, a coibição da violência, a divulgação mais abrangente do universo feminino, etc.

A título de advertência, comunico-vos, entretanto, de que não há espaço aqui para discussão acerca das vindicações colocadas pelo movimento feminista, a oportunizar críticas e/ou defesas de suas membras. Outrossim, esclareço ainda - assim entendo -que questões pontuais como aborto, inserção social, discriminação por gênero, o Nordic Model como meio de combate à prostituição, etc. devem ser unicamente da alçada feminina.   

Nada obstante, percebo um certo vício; talvez a cultura hegemônica masculina assimilada de forma desapercebida. As mulheres falam em libertação, liberação, ou seja, algo que implica liberdade, mas continuam a seguir os modelos de liberdade criados e disseminados pela sociedade machista. Por que as mulheres não buscam desenvolver o próprio conceito de liberdade? Sim, eu vejo mulheres a clamar por liberdade, mas a buscam segundo a visão masculina de liberdade. Creio que as mulheres estão aptas a estabelecerem um novo conceito, o que significaria não só liberdade, mas originalidade, autenticidade.

Não vos enganeis, pois o estímulo em pauta nada tem de singular; tampouco é ideia minha. Rogo-vos: não penseis tratar-se de excentricidade ou balela! Em verdade, Edith Stein, filósofa e teóloga alemã, nascida judia e convertida ao catolicismo, ordenada freira, foi morta no campo de concentração em Auschwitz, na Polônia, em 1942. A freira teve oportunidade de expressar suas ideias - inclusive ideias sobre a autêntica liberdade feminina - numa série de palestras ministradas em algumas universidades da Alemanha. A todas vós mulheres, portanto, recomendo a leitura das obras de Edith Theresa Hedwig Stein. Se preferirdes, podeis buscar por Santa Tereza Benedita da Cruz, pois Edith Stein foi canonizada pelo Papa João Paulo II em 1998.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Gêmeos


Muito embora o ceticismo de alguns e a carência de comprovação científica, parece-me evidente que, entre irmãos gêmeos - indiferentemente se univitelinos ou bivitelinos - tem lugar a partição de vivências internas, de sensações, de emoções. A proteção mútua fielmente cumprida entre estes, originada e desenvolvida pela partilha de lugares comuns, acaba por dar origem a uma cumplicidade singular. Com base neste breve arrazoado, apesar do fenômeno receber o apodo de mito, passo a vos narrar fato deveras assombroso.

Conheci os irmãos Eli e Efraim quando éramos adolescentes, ginasianos, sonhadores e detentores de alguma irresponsabilidade. Além de colegas de colégio, tornamo-nos companheiros. Era comum, quando em presença de apenas um dos gêmeos, conseguir saber, ou pelo menos intuir, o que o outro fazia, sentia ou pensava. A primeira paixão de Eli foi igualmente vivenciada por Efraim; os desenganos e decepções de Efraim em muito afetaram Eli. Na prática de esportes, a contusão de um trazia sofrimento a ambos.

Nada obstante, o que mais me reclamava a atenção no modo de os irmãos lidarem com o fenômeno era que, até mesmo por conta da criação (assim creio), revelarem extrema indiferença e notório cepticismo. Quando lhes perguntavam acerca desta cumplicidade sensório-afetiva, sorriam à larga e diziam fruto de uma convivência adjuvante, sadia e absoluta; argumentavam que além da proximidade biológica, a educação recebida por família sobremodo pragmática, não lhes permitiam ser opositores.  

Pois bem, chegamos à maioridade e nos apresentamos para servir à pátria. Não é à toa que o inexplicável sempre foge à compreensão: Eli, assim como eu, foi considerado inapto para o serviço militar, haja vista nosso esmirrado tipo físico. Voltamos para casa a ostentar o CDI - Certificado de Dispensa de Incorporação. Efraim, muito embora o biótipo e semelhança física com o irmão, fora incorporado.  Então, tive oportunidade de melhor observar o fenômeno da “proximidade” biológica, mesmo em face do afastamento físico. Eli sentia-se extremamente cansado com os exercícios físicos impostos a Efraim na sua fase de adaptação à vida de caserna; Eli buscava descansar ao máximo para que o irmão pudesse beneficiar-se disso em sua vida militar. E parece que o recurso trazia bons resultados, pois Efraim despontou como excelente recruta dentre seus pares. Poder-se-ia dizer que Eli também servia à pátria, só que remotamente.

A “proximidade” biológica, todavia, especificamente no presente caso, viria desencadear uma série de fenômenos, até o momento, inexplicáveis pelas ciências físicas e/ou psicológicas. O amigo recruta continuava a dar o melhor de si na vida de caserna, enquanto nós, eu e Eli, seu irmão, buscávamos o primeiro emprego. Mas o pior aconteceu - assim creio - a causar impacto na vida de todos os familiares e amigos. Um acidente com arma de fogo, durante treinamento, pôs fim a vida do jovem Efraim. Testemunhei o sofrimento de todo o grupo. Eli sequer conseguiu comparecer ao funeral do irmão. Em casa fizeram-no acamado, mas seu estado de saúde agravou-se. Removeram-no para um hospital. Pouquíssimas pessoas podiam visitá-lo; eu queria vê-lo, conversar com Eli... O amigo fora blindado. Por que?

Atribuo à minha determinação ao fato de ter conseguido dissuadir os familiares da injustificada - um precoce julgamento - proibição. Enfim, ao entardecer do derradeiro dia, tive acesso ao paciente. Eli encontrava-se em ala afastada, em total isolamento. O paciente, mesmo consciente, tinha o corpo envolto em ataduras. Não, nada de queimaduras. Uma doença desconhecida! Haveria risco de contágio? A hipótese de hanseníase já fora afastada, apesar do corpo estar a apodrecer, a decompor-se. Sim, o amigo já passara da fase da autólise. O inchaço abdominal evidenciara o estágio enfisematoso. O corpo já se rompia dando ensejo à predação de coleópteros. Não pude observar as fístulas, mas não deixei de sentir o cheiro desagradável que do corpo exalava. Mesmo a experimentar dores atrozes, Eli, em estado semiconsciente, tentava explicar-me o que acontecia: ele sofria e manifestava a decomposição pelo qual passava o corpo de Efraim. O defunto - materialista militante - obstinado em permanecer ligado ao corpo físico, mantinha não só a consciência, mas também a sensibilidade ativa. E a “proximidade” biológica, então, encarregava-se do resto. Eli, passadas poucas horas da morte do irmão, começara a notar o escurecimento da própria pele. Então vieram as dores nas juntas e depois o surgimento de chagas. O enfermo experienciou o próprio corpo a produzir bactérias famintas. Perguntei-lhe se o processo não poderia ser suspenso e o mal debelado. Entre soluções e esgares de dor, disse-me que os profissionais de saúde não criam no que ele acabara de contar-me, e mesmo que viessem a crer não haveria como interromper o processo; sabiam apenas que o fenômeno originava-se no próprio corpo e que a causa permanecia desconhecida.

Em meio a estupefação Eli pareceu desmaiar. A equipe médica atendeu a meu chamado com rapidez. Ordenaram-me que saísse ... quisera despedir-me. Mas eu vivenciara algo próximo do ineditismo; fora como se eu conversasse com alguém já falecido. Como a estabilização e regressão do mal mostravam-se impossíveis, o óbito era aguardado para as próximas horas. E foi o que aconteceu: o cérebro experimentou o desfazimento, órgãos vitais dissolveram-se e Eli teve como causa da morte a falência múltipla.

Não pude despedir-me do amigo. Efraim, o irmão considerado herói, aclamado com honras militares e salva de 21 tiros, fora sepultado há pouco mais de 24 horas. Mas desta feita tudo estava diferente; até o emocional revelara outra face: não houve velório, nenhuma solenidade ou encômio; não houve pranto, ninguém carpiu. O ataúde lacrado selava aquele “contratempo” e virava mais uma página na história daquela família.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Santuário

 

De início, afirmo não se tratar de lugar consagrado à religião; não, nada de capela ou templo, mas de espaço onde posso dar azo a sentimentos, a alheamentos, a exaltações do espirito. Ali há algo como cumplicidade, aconchego; há acolhimento, refúgio, companheirismo... Ali desfruto de silêncio fecundo, de parceria não coloquial, do imaterial que me completa no espontâneo isolamento social.

A ninguém convido. O acesso a mim mesmo é restrito; só me permito ali entrar quando despido de qualquer mundanidade. Ali nutro-me, dessedento-me, banho-me, purifico-me em abluções. A quietude acalma-me, o sossego conforta-me. Nada de vozes elevadas, irritadas, descompassadas; nada de opiniões difusas, hostis, nada de teorias rotas ou contraditórias. Eu diria que ali o saber busca lugar, mas lugar distante das luzes, dos aplausos, do cerimonioso, do errático.

Por vezes lá pernoito: noites nada calientes, mas amenas e embaladas pelo sonho da sabedoria. Até o rigor do negrume no cômodo mostra-se terno, meigo. Há como que uma delicadeza infinda. Nada de odores díspares; tudo rescinde a um tímido amadeirado. Eu inalo o ambiente e aquilo refaz-me, regenera-me, revivifica-me, restaura-me. Não, não se trata de elixir para a juventude... eu diria, um saudável amavio para nobre amadurecimento. Ali tem lugar minhas orações; sim evoco o auxílio divino. E, talvez, por sentir-se mais à vontade, Ele me ouça com mais constância.

Lá, o amanhecer faz-se icônico. Imagens povoam-me a mente, e essas servir-me-ão de norte no decorrer do dia. E onde estará o modelo? Ali mesmo, acolá, algures? Onde? Claro, o modelo está em mim, por isso digo-o icástico. O ambiente assim propicia-me. São prateleiras, lombadas, atavios, cores, formatos os mais diversos... um outro universo. As boas ideias, as boas palavras, as saudáveis teorias exalam das páginas por mim afagadas, devoradas... Alguns escritores - romancistas, contistas, cronistas - poetas, dramaturgos, filósofos desfilam dentre as paredes que limitam o exíguo santuário. Todavia, alguém de maior sensibilidade diria: muito embora a parecença, tens mais do que isso; em verdade desfrutas de um sacrário.