terça-feira, 9 de agosto de 2022

Indesejada

 

Não sei se em virtude da idade, surpreendo-me, e com alguma constância, a refletir, mesmo que descuidadamente, sobre a morte. Todavia, tal sintoma não é intempestivo, pois “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer; ...” (Eclesiastes 3:1 e 2). Então constato que a morte sofre preconceito; é marginalizada, demonizada, é tida como castigo, como penitência, tormento... A ciência mesma a tem por inimiga; quer derrotá-la, vencê-la, desarraigá-la. E o mais risível: a ela consagram fingida indiferença. Nesse caso, para redimir-me da contagiante pseudo indiferença, permito-me dedicá-la algumas linhas.

Bem, ciente de sua iminência - a morte -, não há como declarar-me surpreso. Entendo, portanto, ser plausível o ocupar-me com algo próximo de certa ambientação; ou seria preparação? Afinal, não sejamos néscios, mas tais como virgens prudentes; levemos não só as lâmpadas, mas também o azeite para as mesmas. Quando o noivo chegar, mesmo que estejamos adormecidos, saiamos a seu encontro antes que a porta se feche. Não imploremos para que se nos abra a porta. “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora”. (Mateus, 25:1 a 13).

Pois bem, e como nos ambientarmos para a morte? Uma advertência: há os que chamam a morte de “indesejada”, e para estes tal ambientação parecerá absurda. Nada obstante, a indesejada chegará, aguardada ou não. Nesse caso, faço uso da aposta de Pascal: vós, que ostentais a alcunha de “racionais”, vivei de acordo com a perspectiva de que Deus existe e que a morte não é o fim de tudo, mesmo que a dita razão nada vos possa afirmar. Bem, e já que a morte não é o fim de tudo, por certo, adentrareis uma outra dimensão. Meu convite, portanto, faz-se no sentido de preparar-vos para nova atmosfera, para o inusitado do novo ambiente.   

“Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das cousas próprias de menino. Porque agora vemos como em espelho, obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então conhecerei como também sou conhecido”. (Coríntios 13: 11 e 12). Abandonemos, portanto, a agitação, os rasgos de vaidade, de orgulho. Neguemo-nos a nós mesmos. Voltemo-nos à vida simples, aos hábitos modestos. Adotemos alimentação frugal, saudável e livre dos muitos temperos. Atenhamo-nos ao muito lucubrar e ao pouco falar. Busquemos a proximidade da leitura profícua, engrandecedora. Na música e artes em geral, pendamo-nos para o que traz alento, conforto, completude. No mais, cumulemos o ainda existir com orações. Então, quando a não mais indesejada chegar, encontrar-nos-á lúcidos, exultantes e nada reticentes.  

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Ester

 

 

A reportagem mostrara-se extensa; apresentara casos, índices e possíveis causas. A violência, de um modo geral, recrudescera. Mas no tocante à mulher, principalmente, muito embora leis, campanhas, tentativas de conscientização, a irascibilidade agravara-se. O que estaria a provocar semelhantes atitudes? Ora, notadamente, o número de casamentos desfeitos aumentou sobremaneira, e por conseguinte, a quantidade de lares desfeitos. Mas, por que a violência? Esta, pode-se dizer, sempre foi inerente aos seres humanos; não só as narrativas atuais, mas também os relatos bíblicos corroboram tal característica. Todavia, no que diz respeito às mulheres, podia perceber-se um certo “respeito”; até a psicopatia revelava certo abrandamento com o gênero feminino.

E a matutar sobre esta violência atípica e intempestiva fui conduzido ao sono. Mas meu sono parece ter-se bandeado para o quimérico... Seria, de fato? Ora, não posso alegar imaginação infundada, devaneio ou algo assim; isso seria desonesto. Desconheço se minhas ideias criaram imagens ou representações fascinantes... Mas fato é que certa imagem tomou forma, tornou-se próxima e ... Então fiquei diante da senhora; na verdade uma rainha. Sim, tratava-se de Ester, a mulher, esposa do rei Assuero, que pôs fim às perseguições de Hamã ao povo hebreu.

A senhora, muito embora o traje epocal, revelava extrema sensibilidade; sim a disposição condizente com os espíritos nobres. Seu olhar era doce, o semblante próximo do angélico. A voz fez-se suave, bem timbrada... - “Tudo tem origem na liberdade!” - Fiquei pasmo; não conseguia articular palavras, respostas e/ou questões. E Ester prosseguiu: - “As mulheres equivocaram-se na tentativa de assimilar o conceito humano de liberdade. Essa visão é enganosa. A liberdade não pode ser adquirida a partir de temáticas sob o jugo das leis! Isto porque as leis voltam-se apenas às obras materiais, às relações que se manifestam na carne, sejam elas sociais, culturais, econômicas, políticas. Liberdade e leis são excludentes, até porque as leis existem para pôr limites à liberdade”. A rainha aproximou-se ainda mais e, a encarar-me fixamente, proferiu algo como uma rogativa: - “Sê meu porta-voz! Diz aos seres humanos, e não só as mulheres, que a vera liberdade só pode ser experienciada a partir de frutos eminentemente espirituais. Não existem leis para pôr limites - para regular - o amor, a honra, a dignidade, a bondade, a humildade, a fé, a integridade, a prudência, a lisura, a temperança. A vivenciar tais valores, então os seres humanos desfrutarão da tão sonhada liberdade”.

Observação: O presente texto teve como referência a epístola de Paulo aos Gálatas.