sexta-feira, 1 de março de 2024

Ataque à democracia


O voo atrasara... e eu a vagar pelo aeroporto Presidente Kubitscheck, em Brasília. Meu destino, o nordeste, tornava-se cada vez mais distante, pois ainda teria uma conexão em Cumbica, São Paulo. A companhia aérea já nos aconselhara a tomar lugar em certo restaurante, afinal, fome e ansiedade são parceiras. Depois de muito andar, eis o estabelecimento comercial, se bem que pareceu-me um tanto sofisticado. Optei por mesa afastada, identifiquei-me e permiti-me olhar o entorno: funcionários públicos enfatuados, funcionárias com maquiagens automotivas; acolá ministros supérfluos de ministérios desnecessários. Eis o cenário que me acompanharia o repasto.

E o garçom trouxe o menu. Massa: a minha predileção. Sim, macarronada à parmegiana! Desafiador. Vamos a ela! As primeiras garfadas recordaram-me vovó: Supimpa! Delícia; o prazer inefável. Alguns goles de não suntuoso vinho rematavam o deleite. Mas minha voracidade arrefeceu com o passar do tempo. Aviso ecoou pelo sofisticado refeitório a avisar que o problema com meu voo já tinha sido solucionado; embarque iniciado no portão 16. Chamei pelo garçom e ergui-me, disposto a adentrar celeremente na já sonhada aeronave. Nada obstante, percebi ligeiro desconforto em meu ventre, uma frágil dorzinha...

Depois de enfrentar inescapável fila, apresentei o cartão de embarque e caminhei pela passarela que dava acesso ao avião. Embarque tumultuado! Muita gente a colocar os pertences nos maleiros acima das poltronas. Creio haver mais poltronas do que maleiros. Enfim meu lugar. Mas o que é isso? O que significa? Uma senhora afrodescendente ocupava o lugar a mim destinado. Temendo acusação de machismo ou racismo, com extrema cautela apresentei à passageira meu bilhete. Unbelievable, mesma poltrona! A aeromoça foi chamada. Conferiu nossos bilhetes, pediu um tempo e afastou-se. E eu de pé no corredor da aeronave em meio ao tumultuado embarque.

Alguns minutos foram suficientes para que houvesse uma solução: a comissária conduziu-me à primeira classe; seria uma cortesia da companhia aérea. Confesso que experimentei certo regozijo, muito embora a dorzinha no ventre e a crise inesperada de azia. Mas minha alegria durou pouco, pois dentre os diletos passageiros da dita primeira classe estavam dois ministros de nossa Suprema Corte. Sentei-me e busquei relaxar; coloquei o cinto de segurança. Evitei olhar para os companheiros de viagem. Após todos os avisos e procedimentos protocolares, o avião taxiou e começou a correr pela pista. Take off!

Já podíamos reclinar o assento. Assim o fiz, mas meu organismo mostrava-se relutante; teimava em fazer-se enfermo. Ânsia de vômito! Coisa desagradável. Dispus-me ir ao banheiro, soltei o cinto e pé ante pé dirigi-me ao reservado. Todavia, mesmo antes de entrar, um dos ministros tomou-me a frente. No fechar a porta da esvoaçante “casinha”, sorriu-me com deboche e deixou escapar algo como: - “Perdeu mané!” Eu relutava. Enorme esforço para não me permitir vomitar ali, na primeira classe do agitado voo. Porém, as condições do tempo não me foram solidárias. O aviso de sentar e colocar os cintos acendeu. Tentei voltar à poltrona, mas não houve tempo... regurgitei ali mesmo: aos pés do ministro que ficara sentado.

Imaginai meu embaraço. Não só por ter regurgitado, mas por tê-lo feito nos pés de um ministro; ministro esse conhecido por sua contumaz arbitrariedade. Ele era prejudicial justamente por tomar decisões intempestivas e dar sentenças pré-judiciais. Ergui os olhos e o encarei. Creio que deva sofrer de alopecia, pois sua cabeça não ostentava um fio de cabelo sequer. Olhou-me com fúria quase incontrolável. Já que sem seguranças, gritou pela comissária. A moça chegou e tentou auxiliar-me, ofereceu-me algum medicamento. Mas o ministro estava aos berros; obrigou a comissária a conduzir-me para outra classe. De imediato, pude perceber em Sua Excelência as três características clássicas de um psicopata: mentira, agressividade, dissimulação. A figura do calvo ministro estampava carência de empatia ou quaisquer sentimentos. Enfim, eu fora tão humilhado que cheguei a me sentir bem por ter vomitado em seus sapatos de verniz. 

Por incrível que pareça, depois do acontecido, meu organismo refez-se, reequilibrou-se. E o voo para São Paulo seguiu seu curso; eu aboletado nas acomodações reservadas aos tripulantes. Pensei no que comera: uma macarronada à bolonhesa, coberta de queijo e levada ao forno para gratinar. Já que distante até mesmo de uma rudimentar enologia, não poderia culpar a única taça de vinho pelo mal súbito. Ou teriam sido ambos? Intolerância à lactose? Fígado? Comida muito gordurosa? Infecção intestinal? Eu esbanjava diagnósticos quando a voz do comandante anunciou nossa chegada à Cumbica; em breve, um novo embarque levar-me-ia ao ensejado destino.

Qual nada! Assim que aterramos e as portas se abriram, entraram no avião dois agentes da Polícia Federal. Adivinhai! Sim, exatamente isso: eu estava sendo preso. O Ministério Público aceitara a denúncia enquanto voávamos? Nada me foi dito. Desembarquei algemado. Por que? Qual teria sido o meu crime? Os policiais não poupavam truculência. O ministro, quando abordado pelos policiais, disse que eu deveria ser considerado alguém muito perigoso, pois que minhas atitudes deixavam transparecer uma velada perfídia. Eu - na verdade um anti-herói -  fora considerado terrorista! E concluiu: - “Ele atentou contra a democracia!”

Enquanto desfilava algemado pelos corredores do aeroporto ladeado por policiais, pus-me a pensar: se vomitar é um atentado à democracia, o que dizer da flatulência ou da diarreia? Sim, meu celular fora confiscado; tive meus sigilos bancários e telefônicos quebrados. Segundo meu advogado, eles estão investigando para saber o que originou minha indisposição; desconfiam da ingestão de uma lata de Leite Condensado possivelmente a mim presenteada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A pobre comissária de bordo também está sendo investigada, não só por ter-me conduzido à primeira classe, mas também pelo auxílio quando fora vitimado pelo mal-estar.          

Gente, alguém (não quero saber seu nome) declarou que vivemos em uma democracia relativa. Vou mais longe: vivenciamos uma risível democracia!


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