domingo, 13 de outubro de 2013

Há algo de errado com o normal


O que é o normal? Diz-se do que é usual, regular, exemplar, conforme uma norma. Mas de onde se infere algo que é assimilado por uma maioria, revelando-se paradigmático? A normalidade, em parte, é regida por valores, e, por outra, advém de certa experiência empírica, ou seja, a normalidade tem uma dupla raiz: não pode prescindir de valores ordenadores; não pode se afastar da experiência cotidiana, isto é, do consuetudinário. Por não se afastar da cotidianidade e dos valores que a orientam, é considerado normal aquilo que em geral se costuma fazer. Estes condicionantes da cotidianidade, formados por valores e costumes, ambos de caráter transitório, não só constroem o que chamamos de normalidade, mas igualmente a torna válida. Mas os condicionantes, já que advindo de valores e dos costumes, não são perenes; modificam-se, transformam-se, evoluem, involuem, são superados, desaparecem. Logo, variam no espaço e no tempo, dependendo de circunstâncias. Portanto, como primeira característica da normalidade, percebe-se a efemeridade.

Vimos que a normalidade é algo assimilado por uma maioria. Todavia, esse assimilar sugere uma imposição, e isso se justifica por se tratar da aceitação de uma maioria e não de aceitação universal. Uma questão se nos incomoda: por que uma maioria? Que circunstâncias seriam essas que conseguem pré-determinar atitudes aceitas tacitamente? Parece-me que tais circunstâncias encontram respaldo justamente naqueles que da normalidade se fazem reféns. As circunstâncias, na verdade, nada mais fazem do que alicerçar expectativas e ao mesmo tempo servir de refúgio aos ditos “normais”. Expectativas que diferem das circunstâncias são consideradas indevidas, anormais. Portanto, àqueles que distam da normalidade atribui-se o predicado de patológico. Os normais, então, já que albergados pela esfera da normalidade, a impõe aos demais, olvidando, entretanto, que a imposição da normalidade é sintoma óbvio do patológico.

Mas a patologia da normalidade se expressa não só por sua imposição. A título de melhor apreensão do problema, tentemos hipoteticamente, e sem muito esforço, destacar uma fração da “normalidade”, congelando-a para melhor análise. Fixemo-nos na fatia da normalidade hodierna, através da qual travamos íntimo conhecimento. Observemos os “normais” que nos cercam. Percebei que eles externam quase sempre os mesmos pensamentos, os mesmos argumentos, as mesmas ponderações e justificativas; é algo previsível, enfadonho, banal. Não obstante, comparai seus pensamentos com suas ações e observai se há alguma coerência. Amiúde, suas ações desautorizam, desconstroem, mutilam aquilo que por eles foi pensado ou divulgado, ou seja, o normal. Nesse caso, a normalidade se mostra como patológica.   

Conheço, e vós também deveis conhecer, muitos que palram infindavelmente encomiando acerca do outro, do respeito ao próximo e defendendo posições humanistas; os que militam por direitos humanos e porfiam em defesa do politicamente correto. Eis a normalidade formal, teórica. Contudo, os agentes normais agem como se vivessem isolados e insulados em sua inatingível individualidade, como se só existissem eles mesmos e/ou seu grupo seleto mais próximo, revelando a dimensão patológica de uma pretensa normalidade, isto é uma normalidade informal, prática. Por outro lado, também conhecemos os ateus confessos - outra modalidade de normalidade - que execram Deus ou qualquer entidade abstrata por entenderem-nas incapazes de explicar e/ou modificar a natureza humana. Dito isso, se arvoram em paladinos, encarnando a personalidade da entidade abstrata por eles mesmos abominada, criando teorias mirabolantes, confusas e estapafúrdias no sentido de corrigir os atalhos da humanidade, travestidos de um novo messias. Eis a normalidade transfigurada pelo seu próprio pathos.


Evidentemente há algo errado com a normalidade. A explicação que no momento me ocorre é que conceitos como o de normalidade, forjados a partir de experiências cotidianas e seus respectivos valores ordenadores, enfim, de seus condicionantes, são meras hipostasiações da expectativa humana vinculadas tão somente à extrema vaidade, egoísmo, egoicidade e cinismo. A normalidade é bem recepcionada porque, além de emprestar status, serve de fundamentação à hipocrisia do discurso, permitindo ao orador que a ostente um estereótipo fajuto e tendencioso. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário