terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Apenas vestígios

 

Conhecer a Grécia, Atenas mais especificamente, foi uma espécie de sonho realizado - a dream come true. Desde os primeiros estudos filosóficos certa curiosidade invadiu-me: o desejo de visitar o lugar considerado berço do pensamento ocidental. Eu diria que um conjunto de circunstâncias, buscadas evidentemente, propiciaram-me o ensejado; sim, a oportunidade fez-se presente ... e lá estava eu, aboletado numa das poltronas da aeronave, a pretender ostentar o epígrafe de ter amor ao saber. Todavia, teve lugar alguma decepção. A viagem como um todo foi, de fato, bastante proveitosa em termos de cultura, mas no tocante à filosofia ... talvez por falta de adequada expressão, arrisco-me dizer desapontado.   

Desembarquei no aeroporto de Elefthérios, em Atenas, um pouco depois da meia-noite, haja vista o atraso em Paris, no Charles de Gaulle, em função de uma ameaça de bomba. Bem, em meio a fila da imigração, o visto de passaportes, a retirada de bagagens e outras exigências legais, permiti-me observar o entorno. Curiosamente os jovens, por conta de certo modismo, parecem-me ter perdido suas identidades. Eu falo em falta de identidade cultural, pois vi uma juventude exatamente igual a qualquer outra do planeta: calças jeans, cabelos coloridos, piercings, tatuagens, gestos, sorrisos, desleixo, descompromisso... Nem mesmo o idioma falado pode identificá-los. Se bem que, certo passaporte trouxe-me a resposta: ingleses.

Enquanto caminhava a procura de um taxi, pus-me a pensar: o modismo que iguala toda uma geração é o mesmo que critica os conservadores. Dizem por aí que o conservadorismo é um entrave às demandas sociais e, ipso facto, um obstáculo ao desenvolvimento da sociedade. Pergunto-me: serei um conservador? Afinal, sou contrário a certas reformas, principalmente àquelas que primam por estiolar valores e banalizar identidades culturais; sou apaixonado pelo que exibe raízes históricas. Nas rupturas históricas é mister equilíbrio e bom senso. Mas o taxi encostou na plataforma e arrancou-me do questionamento.

O hotel distava uns bons 30 minutos do aeroporto; a corrida custou-me 70 euros. O motorista falava inglês, mas não lia inglês. A confusão estava formada; ele conhecia o endereço, mas o mesmo não estava grafado em alfabeto cirílico. Chegamos afinal; desculpou-se e partiu. Fiz o check-in. Ainda no lobby, pude observar certa escultura na parede fronteiriça: não era Jesus Cristo nem nenhum santo conhecido por nossa inerente idolatria. Bem, satisfeitos os trâmites que soem acompanhar a qualquer hospedagem, peguei das chaves e subi ao quarto. Um bom banho, a cama e esperar por mim e a TV sintonizada num canal de notícias. Adormeci.  

Hotel Pergamos! Sim, hospedara-me junto aos filhos, aos descendentes de Andrômaca. Da avenida Aharnon, onde era situado, até a Praça Omonia - meu lugar referência - eu transitava pelas avenidas Sokratous e Aristotelous, o que me deixava, já que entusiasmado filósofo, sobremodo vaidoso. Da Praça Omonia à Praça Monastiraki, ponto de partida para conhecer-se os pontos turísticos e históricos, inclusive para chegar a Akropolis, bastava seguir a avenida Athinas.

E teve início meu vaguear helênico. Próximo de Monastiraki pude conhecer o Museu de Arte Folclórica de Atenas, a Biblioteca de Adriano, a Torre dos Ventos, o Fórum Romano, o Museu Kanelopoulos. A Acrópolis de meus sonhos a erguer-se altaneira, soberba, por que não? Bem próximo, o Teatro de Dioniso; adiante a antiga Ágora e o Templo de Hefestos. Impressionante o portal, a Stoá de Attalus. Na Stoá pude observar esculturas dos três grandes dramaturgos gregos: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Curioso: Aristófanes não fazia parte deste Parnaso. E os filósofos? Então começou minha desilusão.

Em frente a Academia de Atenas as estátuas de Platão e Sócrates. No Monte Filopappos, em destruída prisão, aquela que teria sido a cela de Sócrates. A Academia platônica não passa de ruínas. O Liceu, testemunha do método peripatético de Aristóteles, é apenas sítio arqueológico. Ainda em outra oportunidade, ao visitar o Zappeion, o National Garden e o prédio do parlamento, em elegante alameda, pude encontrar, de novo, as estátuas dos três grandes poetas trágicos da antiguidade. Um senhor, motorista de táxi, declarou-me: estes foram os três maiores gregos que já existiram!

Visitei o atual estádio de Atenas, o Panathinaiko, fui ao Templo de Zeus, fotografei o Arco de Adriano. Fui ao Museu da Acrópolis, ao Museu Nacional de Arqueologia. De uma única vez conheci a Biblioteca Nacional, a Universidade de Athenas, a Academia de Artes e a Igreja de Dioniso Areopagita. Por incrível que pareça, as referências a filósofos que mais me marcaram estão nas avenidas que ostentam os nomes de Sócrates e Aristóteles.  

Ainda um tanto apatetado, adentrei uma livraria e busquei por livros de filosofia. Encontrei Kant, Bertrand Russel, Wittgenstein e Foucault, dentre outros. E os filósofos antigos? E os pré-socráticos? A livraria não dispunha. Minha primeira desilusão foi constatar que a Grécia que eu buscava não mais existia, a não ser nas bibliotecas, corações e mentes de alguns saudosistas como eu, que ainda cultuam o pensamento em sua origem. A filosofia grega antiga transformara-se em vestígios.  

Dali por diante, fixei-me na questão cultural, inclusive a degustar grandes porções de Moussaka. Sim, mais uma vez tive minha atenção requestada pela imagem dependurada no lobby do hotel, até porque já a tinha visto em outros locais, até mesmo em restaurantes. A esbanjar curiosidade, busquei informar-me com o concierge. Explicou-me ele que tratava-se de Dioniso, o deus mais popular, o mais querido de toda a Grécia. Sim, este deus, muito embora ser um dos primeiros deuses a surgir, fora rejeitado por seus pares. Isto porque o Panteon era sobremodo aristocrático, e ele, apesar de filho de Zeus, fora criado no interior, por titãs e fizera-se muito próximo do povo. 

Aqui permito-me citar Xenófanes de Cólofon: “Os homens criaram deuses à sua imagem e semelhança”. Pelo que entendi, os aristocratas criaram deuses e o povo criou Dioniso. E quanto à filosofia? Parece ter sido criada e desenvolvida para trazer solidez ao pensamento humano. Todavia, os seres humanos permitiram-se ao conspurco; o pensamento humano enodoou-se, cobriu-se de excrecências; tornou-se corrompido, depravado. Uma quase certeza me alerta: Não foram os seres humanos que se afastaram da filosofia, mas esta, sim, apartou-se para não se permitir macular.   

domingo, 6 de dezembro de 2020

Oikos


Há lembranças, algumas evidentemente, que se nos revelam agradáveis e são sempre benvindas. Exemplo disso é o personagem alienígena do Filme ET, dirigido por Steven Spielberg. Em determinada cena, o extraterrestre aponta seu longo dedo para um lugar qualquer do universo e pronuncia: “Casa minha”. Não só a cena, mas a frase fez-se antológica. Debruço-me, então, sobre a frase. A casa em questão refere-se a seu mundo, à sua pátria. Alienígenas estimariam, de fato, suas casas?

Ponho-me a pensar em minha casa: grande, algo soberba, confortável, se bem que... Sim, os sintomas da velhice estão patentes: goteiras, quando na temporada chuvosa, transformam-me num Gene Kelly; eu apenas solfejo a meia voz algo parecido com Singing in the Rain. Paredes um tanto amarelecidas que exibem cópias ou obras de arte. Alguns portais, poucos na verdade, receberam a visita de térmites (este substantivo é um eufemismo para evitar-se o cupim). Torneiras e chuveiros gotejam, talvez para marcarem o compasso do estridular de grilos. É minha casa, minha realização, adquirida com determinação...

Pensando bem, não é só minha casa; é também meu lar. Sim, este local está repleto de emoções, de sentimentos. Os bons sentimentos do lar dão anima, vida à casa. Existem histórias as mais variadas; há memórias... Conheço cada canto do imóvel; eu o concebi, o construí. Ali está minha energia, meus bons fluídos. Não se trata apenas de meu Oikos - família, propriedade familiar e moradia - mas também de minha Polis - cidade com suas próprias regras. Minha biblioteca é meu mundo, meu templo particular; há também o quarto que protela em tornar-se oficina. Pelo minúsculo quintal, as flores e folhagens com quem converso. Enfim, minha casa, espaço físico, palco de tantas experiências agradáveis, atingiu o status de lar; há parceria, cumplicidade, completude. Entre mim e minha casa, meu lar, há sinergia, cooperação, solidariedade.

Não tenteis tirá-la de mim com a promessa de algo mais novo, moderno ou próspero, pois apesar dos pesares, foi erguida "com muito esmero". 

sábado, 5 de dezembro de 2020

A Nova Teoria Tridimensional do Direito

Sim, como estamos às voltas com o Novo Normal, discorramos um pouco acerca desta faceta jurídica tipicamente brasileira, ou melhor, tupiniquim: a Nova Teoria Tridimensional do Direito.

Partamos, contudo, da teoria original: Fato, Valor e Norma. O Fato liga-se à sociedade e, por vezes, guarda raízes históricas. O Valor compreende o aspecto axiológico, ou seja, valores contemplados por qualquer sociedade; Justiça, por exemplo. E, por fim, a norma, gerada pelos valores da própria sociedade, que vem regulamentar os fatos. A resumir: a sociedade depara-se com um fato, submete esse fato a valores e cria normas. Doravante, o que teremos? Se A (fato) acontecer, lancemos mão de B (a norma). Estamos, portanto, diante de um juízo hipotético: Simples, não? Mas nem tudo são flores. Surgiu um argentino chamado Carlos Cóssio (tinha que ser argentino) e inventou a Teoria Egológica do Direito. A coisa toma outro rumo: Ainda temos o Fato, o Valor e a Norma, mas a Teoria de Cóssio propõe o Eu como aspecto determinante. Explico-me: Se A (fato) acontecer, teremos ou não B (a norma). Busca-se justificativas e atenuantes para o Fato. O juízo tornou-se disjuntivo. Por que? Porque a Teoria é Egológica (ou seria Egocêntrica, ou ainda uma Ególatra?) O Fato é submetido a valores, mas não mais da sociedade, e sim de um ego, geralmente o interessado.

Atentai todos vós canalhas de plantão! Pelo menos nessa terrinha chamada Brasil, a coisa desandou numa velhaca Teoria (ou seria uma Nova Teoria?). Há uma nova tridimensionalidade à vista: O Fato foi substituído pelo Interesse (entenda-se alguém que pretende mudar ou interferir em texto consagrado na doutrina jurídica). Depois, ao invés do Valor, temos o Cinismo (na verdade, um desvalor) que é apanágio dos que se propõem - os fantoches que trajam capas negras e enxergam a si mesmos como deuses - a observar o Interesse (o Fato) com nova (e por que não capenga?) hermenêutica. E a Norma? perguntar-me-eis. Bem, a Norma passa a ser, então, aquela prostituta de luxo. Sim, mulher cara e sofisticada que, em geral, acompanha alguns “expoentes” da sociedade, apenas para lhes emprestar seriedade.

Como parte de minha pedagogia, procuro sempre usar exemplos práticos. O Artigo 57, §4º da Constituição Federal diz-nos que: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Existem dúvidas quanto à clareza do texto? Parece-me que não. Lancemos mão, no entanto, da Nova Teoria Tridimensional do Direito: O Fato foi substituído pelo Interesse dos presidentes do Senado e da Câmara Federal. O Valor foi substituído pelo Cinismo inerente aos títeres que compõem o plenário do Supremo Tribunal Federal. E a Norma? Bem, por enquanto, estamos diante (pelo menos em lugares sérios) do que seria uma contradição absurda: A Corte Constitucional estaria rasgando a Constituição declarando-a Inconstitucional.