O voo atrasara... e eu a vagar pelo
aeroporto Presidente Kubitscheck, em Brasília. Meu destino, o nordeste,
tornava-se cada vez mais distante, pois ainda teria uma conexão em Cumbica, São
Paulo. A companhia aérea já nos aconselhara a tomar lugar em certo restaurante,
afinal, fome e ansiedade são parceiras. Depois de muito andar, eis o estabelecimento
comercial, se bem que pareceu-me um tanto sofisticado. Optei por mesa afastada,
identifiquei-me e permiti-me olhar o entorno: funcionários públicos enfatuados,
funcionárias com maquiagens automotivas; acolá ministros supérfluos de
ministérios desnecessários. Eis o cenário que me acompanharia o repasto.
E o garçom trouxe o menu. Massa: a
minha predileção. Sim, macarronada à parmegiana! Desafiador. Vamos a ela! As
primeiras garfadas recordaram-me vovó: Supimpa! Delícia; o prazer inefável.
Alguns goles de não suntuoso vinho rematavam o deleite. Mas minha voracidade
arrefeceu com o passar do tempo. Aviso ecoou pelo sofisticado refeitório a avisar
que o problema com meu voo já tinha sido solucionado; embarque iniciado no
portão 16. Chamei pelo garçom e ergui-me, disposto a adentrar celeremente na já
sonhada aeronave. Nada obstante, percebi ligeiro desconforto em meu ventre, uma
frágil dorzinha...
Depois de enfrentar inescapável fila,
apresentei o cartão de embarque e caminhei pela passarela que dava acesso ao
avião. Embarque tumultuado! Muita gente a colocar os pertences nos maleiros
acima das poltronas. Creio haver mais poltronas do que maleiros. Enfim meu
lugar. Mas o que é isso? O que significa? Uma senhora afrodescendente ocupava o
lugar a mim destinado. Temendo acusação de machismo ou racismo, com extrema
cautela apresentei à passageira meu bilhete. Unbelievable, mesma poltrona! A
aeromoça foi chamada. Conferiu nossos bilhetes, pediu um tempo e afastou-se. E
eu de pé no corredor da aeronave em meio ao tumultuado embarque.
Alguns minutos foram suficientes para
que houvesse uma solução: a comissária conduziu-me à primeira classe; seria uma
cortesia da companhia aérea. Confesso que experimentei certo regozijo, muito
embora a dorzinha no ventre e a crise inesperada de azia. Mas minha alegria
durou pouco, pois dentre os diletos passageiros da dita primeira classe estavam
dois ministros de nossa Suprema Corte. Sentei-me e busquei relaxar; coloquei o
cinto de segurança. Evitei olhar para os companheiros de viagem. Após todos os
avisos e procedimentos protocolares, o avião taxiou e começou a correr pela
pista. Take off!
Já podíamos reclinar o assento. Assim
o fiz, mas meu organismo mostrava-se relutante; teimava em fazer-se enfermo. Ânsia
de vômito! Coisa desagradável. Dispus-me ir ao banheiro, soltei o cinto e pé ante
pé dirigi-me ao reservado. Todavia, mesmo antes de entrar, um dos ministros
tomou-me a frente. No fechar a porta da esvoaçante “casinha”, sorriu-me com
deboche e deixou escapar algo como: - “Perdeu mané!” Eu relutava. Enorme esforço
para não me permitir vomitar ali, na primeira classe do agitado voo. Porém, as
condições do tempo não me foram solidárias. O aviso de sentar e colocar os
cintos acendeu. Tentei voltar à poltrona, mas não houve tempo... regurgitei ali
mesmo: aos pés do ministro que ficara sentado.
Imaginai meu embaraço. Não só por ter
regurgitado, mas por tê-lo feito nos pés de um ministro; ministro esse
conhecido por sua contumaz arbitrariedade. Ele era prejudicial justamente por
tomar decisões intempestivas e dar sentenças pré-judiciais. Ergui os olhos e o encarei.
Creio que deva sofrer de alopecia, pois sua cabeça não ostentava um fio de
cabelo sequer. Olhou-me com fúria quase incontrolável. Já que sem seguranças,
gritou pela comissária. A moça chegou e tentou auxiliar-me, ofereceu-me algum
medicamento. Mas o ministro estava aos berros; obrigou a comissária a conduzir-me
para outra classe. De imediato, pude perceber em Sua Excelência as três características
clássicas de um psicopata: mentira, agressividade, dissimulação. A figura do
calvo ministro estampava carência de empatia ou quaisquer sentimentos. Enfim,
eu fora tão humilhado que cheguei a me sentir bem por ter vomitado em seus
sapatos de verniz.
Por incrível que pareça, depois do
acontecido, meu organismo refez-se, reequilibrou-se. E o voo para São Paulo
seguiu seu curso; eu aboletado nas acomodações reservadas aos tripulantes. Pensei
no que comera: uma macarronada à bolonhesa, coberta de queijo e levada ao forno
para gratinar. Já que distante até mesmo de uma rudimentar enologia, não
poderia culpar a única taça de vinho pelo mal súbito. Ou teriam sido ambos?
Intolerância à lactose? Fígado? Comida muito gordurosa? Infecção intestinal? Eu
esbanjava diagnósticos quando a voz do comandante anunciou nossa chegada à
Cumbica; em breve, um novo embarque levar-me-ia ao ensejado destino.
Qual nada! Assim que aterramos e as
portas se abriram, entraram no avião dois agentes da Polícia Federal.
Adivinhai! Sim, exatamente isso: eu estava sendo preso. O Ministério Público
aceitara a denúncia enquanto voávamos? Nada me foi dito. Desembarquei algemado.
Por que? Qual teria sido o meu crime? Os policiais não poupavam truculência. O
ministro, quando abordado pelos policiais, disse que eu deveria ser considerado
alguém muito perigoso, pois que minhas atitudes deixavam transparecer uma
velada perfídia. Eu - na verdade um anti-herói - fora considerado terrorista! E concluiu: - “Ele
atentou contra a democracia!”
Enquanto desfilava algemado pelos
corredores do aeroporto ladeado por policiais, pus-me a pensar: se vomitar é um
atentado à democracia, o que dizer da flatulência ou da diarreia? Sim, meu
celular fora confiscado; tive meus sigilos bancários e telefônicos quebrados.
Segundo meu advogado, eles estão investigando para saber o que originou minha
indisposição; desconfiam da ingestão de uma lata de Leite Condensado possivelmente
a mim presenteada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A pobre comissária de
bordo também está sendo investigada, não só por ter-me conduzido à primeira
classe, mas também pelo auxílio quando fora vitimado pelo mal-estar.
Gente, alguém (não quero saber seu
nome) declarou que vivemos em uma democracia relativa. Vou mais longe:
vivenciamos uma risível democracia!