sábado, 23 de março de 2024

Useiro e vezeiro

 

Eu, e essa minha mania (não sei se salutar; espero que sim) de recordar. Recordemos, pois. Volto-me ao final dos anos cinquentas. Uma rua de subúrbio em desalinho com as demais. A menos de 100 metros, a primeira esquina em ferro de engomar. Nesta, o bar com pomposa mesa de sinuca (snooker). Vizinha ao bar, a então famosa loja: cama, mesa, banho e brinquedos. Lá, eu e meu irmão fomos fotografados em companhia de um conhecido casal de humoristas da época. A casa ao lado da loja abrigava numerosa família chefiada pelo motorneiro de um saudoso bonde.

Defronte, do outro lado da rua, o prédio de 3 andares que me servia de morada; construção antiga a exibir paredes de grafiato. No térreo, a loja do Sr. Oscar, uma autoescola. Era comum observar-se próximo ao calçamento exemplares automotivos do tipo Packard 1940, Oldsmobile 1942, Chevrolet Bel Air 1952, o clássico Citroën 1948 ou até mesmo um Nash 1949. À esquerda, indo em direção à praia, a Igreja Pentecostal; à direita, algumas outras casas e lojas. Sim, havia uma sapataria, um açougue e o Sr. Deusdete, o bugigangueiro, ou seja, a lojinha que vendia banalidades. Anos mais tarde, a filha dele, professora Marília, possibilitou-me o ingresso no curso ginasiano.

Ainda na mesma calçada, a loja referência da infância: o herbanário. Sim, dali saiam os remédios, as poções, as ervas, as drogas homeopatas manipuladas: hamamelis, arnica, etc. E pasmai, logo a seguir, numa segunda esquina em ferro de engomar, a farmácia alopática. Já na outra rua, quase em frente à farmácia, o cinema, no qual assisti alguns filmes de sucesso estrelado por Jerry Lewis. Na junção das 3 ruas, das 3 esquinas, o amplo espaço, e sobre a vasta e oposta calçada uma enorme pedra.

E tudo a desembocar na avenida principal. E lá ficava a padaria; o pão quentinho, o leite na leiteira, o café torrado e moído na hora. Ao atravessar a rua, o muro que corre paralelo à via férrea. Ainda ouço o apito do trem de então; algo como um lamento. Ao trem moderno falta um quê de romantismo, de sensibilidade, a ternura intransmissível. Infelizmente, a vivência não é hereditária... Aquilo se foi, desfez-se, o tempo já não é presente. O que nos resta, então? Apenas o saudável passado!  

quarta-feira, 13 de março de 2024

Sugestão

 

Que fique aqui registrada minha humilde colaboração à democracia (relativa) brasileira. Não, nada de projeto de lei; isso seria demorado, pois que submetido ao congresso, sujeito a emendas e origem de desafetos. Trata-se de uma simples sugestão. Vamos a ela! Em virtude da patente coligação PT / STF, que a abertura dos trabalhos de nossa suprema corte, bem como os do Tribunal Superior Eleitoral, sejam anunciados por um “cabaretier”. Sim, pessoa encarregada de anunciar as atrações apresentadas em um cabaré ou em um circo. Contudo, eu não poderia comparar o STF ou o TSE a um cabaré, pois isso seria desrespeito ao cabaré, haja vista o acatamento e obediência às regras que norteiam dito estabelecimento. Poder-se-ia dizer que cabarés possuem “ordenamento jurídico”. Já em comparação ao circo, permito-me ouvir um “cabaretier” (versão atualizada do Cid Moreira) com voz empostada, em alto e bom tom, preceder às sessões de nossa corte constitucional, a fazer uso da famosa anáfora: - “Respeitável Público!” Afinal, ali tudo não passa de mero espetáculo circense. A diferença é que os saltimbancos togados empenham-se em transformar toda uma nação em palhaços.          

sexta-feira, 1 de março de 2024

Ataque à democracia


O voo atrasara... e eu a vagar pelo aeroporto Presidente Kubitscheck, em Brasília. Meu destino, o nordeste, tornava-se cada vez mais distante, pois ainda teria uma conexão em Cumbica, São Paulo. A companhia aérea já nos aconselhara a tomar lugar em certo restaurante, afinal, fome e ansiedade são parceiras. Depois de muito andar, eis o estabelecimento comercial, se bem que pareceu-me um tanto sofisticado. Optei por mesa afastada, identifiquei-me e permiti-me olhar o entorno: funcionários públicos enfatuados, funcionárias com maquiagens automotivas; acolá ministros supérfluos de ministérios desnecessários. Eis o cenário que me acompanharia o repasto.

E o garçom trouxe o menu. Massa: a minha predileção. Sim, macarronada à parmegiana! Desafiador. Vamos a ela! As primeiras garfadas recordaram-me vovó: Supimpa! Delícia; o prazer inefável. Alguns goles de não suntuoso vinho rematavam o deleite. Mas minha voracidade arrefeceu com o passar do tempo. Aviso ecoou pelo sofisticado refeitório a avisar que o problema com meu voo já tinha sido solucionado; embarque iniciado no portão 16. Chamei pelo garçom e ergui-me, disposto a adentrar celeremente na já sonhada aeronave. Nada obstante, percebi ligeiro desconforto em meu ventre, uma frágil dorzinha...

Depois de enfrentar inescapável fila, apresentei o cartão de embarque e caminhei pela passarela que dava acesso ao avião. Embarque tumultuado! Muita gente a colocar os pertences nos maleiros acima das poltronas. Creio haver mais poltronas do que maleiros. Enfim meu lugar. Mas o que é isso? O que significa? Uma senhora afrodescendente ocupava o lugar a mim destinado. Temendo acusação de machismo ou racismo, com extrema cautela apresentei à passageira meu bilhete. Unbelievable, mesma poltrona! A aeromoça foi chamada. Conferiu nossos bilhetes, pediu um tempo e afastou-se. E eu de pé no corredor da aeronave em meio ao tumultuado embarque.

Alguns minutos foram suficientes para que houvesse uma solução: a comissária conduziu-me à primeira classe; seria uma cortesia da companhia aérea. Confesso que experimentei certo regozijo, muito embora a dorzinha no ventre e a crise inesperada de azia. Mas minha alegria durou pouco, pois dentre os diletos passageiros da dita primeira classe estavam dois ministros de nossa Suprema Corte. Sentei-me e busquei relaxar; coloquei o cinto de segurança. Evitei olhar para os companheiros de viagem. Após todos os avisos e procedimentos protocolares, o avião taxiou e começou a correr pela pista. Take off!

Já podíamos reclinar o assento. Assim o fiz, mas meu organismo mostrava-se relutante; teimava em fazer-se enfermo. Ânsia de vômito! Coisa desagradável. Dispus-me ir ao banheiro, soltei o cinto e pé ante pé dirigi-me ao reservado. Todavia, mesmo antes de entrar, um dos ministros tomou-me a frente. No fechar a porta da esvoaçante “casinha”, sorriu-me com deboche e deixou escapar algo como: - “Perdeu mané!” Eu relutava. Enorme esforço para não me permitir vomitar ali, na primeira classe do agitado voo. Porém, as condições do tempo não me foram solidárias. O aviso de sentar e colocar os cintos acendeu. Tentei voltar à poltrona, mas não houve tempo... regurgitei ali mesmo: aos pés do ministro que ficara sentado.

Imaginai meu embaraço. Não só por ter regurgitado, mas por tê-lo feito nos pés de um ministro; ministro esse conhecido por sua contumaz arbitrariedade. Ele era prejudicial justamente por tomar decisões intempestivas e dar sentenças pré-judiciais. Ergui os olhos e o encarei. Creio que deva sofrer de alopecia, pois sua cabeça não ostentava um fio de cabelo sequer. Olhou-me com fúria quase incontrolável. Já que sem seguranças, gritou pela comissária. A moça chegou e tentou auxiliar-me, ofereceu-me algum medicamento. Mas o ministro estava aos berros; obrigou a comissária a conduzir-me para outra classe. De imediato, pude perceber em Sua Excelência as três características clássicas de um psicopata: mentira, agressividade, dissimulação. A figura do calvo ministro estampava carência de empatia ou quaisquer sentimentos. Enfim, eu fora tão humilhado que cheguei a me sentir bem por ter vomitado em seus sapatos de verniz. 

Por incrível que pareça, depois do acontecido, meu organismo refez-se, reequilibrou-se. E o voo para São Paulo seguiu seu curso; eu aboletado nas acomodações reservadas aos tripulantes. Pensei no que comera: uma macarronada à bolonhesa, coberta de queijo e levada ao forno para gratinar. Já que distante até mesmo de uma rudimentar enologia, não poderia culpar a única taça de vinho pelo mal súbito. Ou teriam sido ambos? Intolerância à lactose? Fígado? Comida muito gordurosa? Infecção intestinal? Eu esbanjava diagnósticos quando a voz do comandante anunciou nossa chegada à Cumbica; em breve, um novo embarque levar-me-ia ao ensejado destino.

Qual nada! Assim que aterramos e as portas se abriram, entraram no avião dois agentes da Polícia Federal. Adivinhai! Sim, exatamente isso: eu estava sendo preso. O Ministério Público aceitara a denúncia enquanto voávamos? Nada me foi dito. Desembarquei algemado. Por que? Qual teria sido o meu crime? Os policiais não poupavam truculência. O ministro, quando abordado pelos policiais, disse que eu deveria ser considerado alguém muito perigoso, pois que minhas atitudes deixavam transparecer uma velada perfídia. Eu - na verdade um anti-herói -  fora considerado terrorista! E concluiu: - “Ele atentou contra a democracia!”

Enquanto desfilava algemado pelos corredores do aeroporto ladeado por policiais, pus-me a pensar: se vomitar é um atentado à democracia, o que dizer da flatulência ou da diarreia? Sim, meu celular fora confiscado; tive meus sigilos bancários e telefônicos quebrados. Segundo meu advogado, eles estão investigando para saber o que originou minha indisposição; desconfiam da ingestão de uma lata de Leite Condensado possivelmente a mim presenteada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A pobre comissária de bordo também está sendo investigada, não só por ter-me conduzido à primeira classe, mas também pelo auxílio quando fora vitimado pelo mal-estar.          

Gente, alguém (não quero saber seu nome) declarou que vivemos em uma democracia relativa. Vou mais longe: vivenciamos uma risível democracia!