quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Wendigo



Já faz algum tempo que oriento meus estudos na tentativa de entender o porquê da desonestidade tão presente - eu diria até característica - no povo brasileiro. Não, não vou ater-me à classe política; este é um estudo de amplo espectro. O problema, que envolve o ilegal, o ilícito, o imoral, o amoral e, ipso facto à corrupção, recebeu o título eufemístico de “jeitinho brasileiro”, já traduzido - de modo inconsequente - como legado cultural em face do comportamento rude de nossos colonizadores, assim como por herança de uma incomum miscigenação racial. Com as ciências humanas, essa nossa faceta depreciativa, esse nosso desvio de caráter, além de receber o codinome de paralegalidade, teve em sua defesa o postulado de uma tendência à informalidade.

Bem, a determinação em esmiuçar tal questão fez com que eu me debruçasse, inclusive, na busca de uma explicação metafísica. Mas ai de mim, nem a metafísica foi capaz de trazer-me o menor alento. Afinal, uma determinação metafísica qualquer implicaria a consubstanciação de alguns círculos do inferno dantesco. Na literatura, Os Bruzundangas de Lima Barreto, assim como Macunaíma de Mário de Andrade apenas descrevem e corroboram o fenômeno, mas não discorrem sobre o porquê. Em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freire, também sociólogo, e de modo bem superficial, vincula a questão à uma sexualidade autóctone. Será? Bem, já que remetido aos autóctones, optei por recorrer às lendas brasileiras, ou seja, ao folclore indígena.

Iara, bela e sedutora, atrai os homens para o fundo dos rios e os mata afogados; os que se lhe escapam, enlouquecem. E tudo isso por vingança. Saci-Pererê, por sua vez, um brincalhão, que assusta animais, faz com que as cozinheiras queimem os alimentos, salgam os cafés e coisas do gênero. Curupira, um defensor do meio-ambiente, mas também violento e estuprador, pode ser engambelado com cachaça e fumo. Caipora - que muitas vezes é confundida com o Curupira - é protetora do ecossistema, tem o dom de ressuscitar animais e fornece pistas falsas a caçadores. Mostra-se sobremodo traiçoeira, pois ao capturar seres humanos, devora-os a título de refeição. A Caipora, portanto, seria uma entidade canibal. A Mula-sem-Cabeça apenas retrata a ameaça do castigo reservado às mulheres que desconsideram o celibato, se bem que os padres há muito deixaram de ser considerados homens santos. O Boitatá mostra-se como uma enorme serpente feita de fogo, que protege a floresta das queimadas e, dizem, representaria o espirito das pessoas malignas. O Boto cor-de-rosa seria o responsável por toda e qualquer gravidez indesejável no norte do país. A Cuca, com cabeça de jacaré, sustenta a fama de devorar crianças que desrespeitam os pais. (Se, de fato, existisse, estaria atualmente assoberbada de trabalho). O Bicho-Papão assemelha-se a Cuca. Enquanto o Boto tem a capacidade de transformar-se num belo homem e seduzir as mulheres ribeirinhas, a Boiuna pode transformar-se em mulher e provocar ilusões. O Lobisomem, criatura feroz, embora sem o aval da licantropia, diz-se daquele que se transforma em lobo nas noites enluaradas. A lenda de O Negrinho do Pastoreio, diferentemente das demais, tem sua origem no sul do país e guarda mensagem positiva.

Após este breve relato, gostaria de chamar vossa atenção para o fato de que as figuras de nosso folclore, com exceção de O Negrinho do Pastoreio, expendem sempre sexualidade, molecagem, agressão, ilusão, violência. Teria Gilberto Freire razão? Não só nossos heróis carecem de caráter; nossas figuras folclóricas também. Ora, o folclore mesmo trata das tradições e usos populares, portanto, nosso folclore, desde os primórdios, estaria eivado da paralegalidade, ou se assim desejais, de um intrínseco jeitinho brasileiro.

Minhas pesquisas, contudo, insatisfeitas com o até aqui investigado, conduziram-me ao encontro de um ancestral do Curupira. Sim, descobri entidade mitológica bem presente em tribos indígenas norte-americanas. O Wendigo teve origem no ser humano faminto, que para se alimentar no rigor de um inverno, devorou seus próprios companheiros. Wendigo é uma entidade que prima pelo canibalismo; ele também ensina aos seres humanos a devorar seus iguais.

Evidentemente que, se entendermos Wendigo como metáfora, estaria explicado o porquê das atitudes dos brasileiros. Somos um povo que denota ser faminto; somos faminto culturalmente, somos famintos socialmente, somos famintos politicamente, somos famintos economicamente, somos religiosamente famintos. Mas não o somos porque alguém nos faz assim, por conta de outros povos; somos famintos, carentes, porque gostamos de assim o ser; somos famintos, carentes, porque nos esforçamos em assim sê-lo. Sentimos prazer em nos mostrar carentes. E a qualidade de famintos, carentes, nos permite, nos autoriza a devorar, a dizimar nossos concidadãos; nosso condição de carentes justifica nosso egoísmo desenfreado, nossa desonestidade, nossos joguinhos ilegais e imorais. Apesar de famintos, carentes, esforçamo-nos por nos mostrar alegres, hospitaleiros, acessíveis, simpáticos. Somente o culto a uma entidade tão abjeta poderia explicar nossa essência. E, apesar de toda a fome, a carência que declaramos ser vítimas, ainda clamamos por liberdade, ou seja, exigimos mais um requisito para justificar nossos desmandos.  

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Uma sociedade em clima de guerra civil

A contemporaneidade tem como apanágio, além dos problemas de ordem ambiental, desenvolvimento sustentável, política neoliberal e globalização, a grande preocupação com a integração dos seres humanos e, por conseguinte, com questões raciais e de gênero, suas diferenças e conquistas. Em uma análise perfunctória, pode-se perceber, contudo, que apesar do enorme empenho em eliminar e/ou minimizar as diferenças sociais, há como que um processo de polarização da sociedade, onde de um lado encontra-se uma minoria e de outra a classe opositora àquela minoria.

Esta polarização advém de uma ideologia espúria. Sim, espúria, porque toda ideologia não construída a partir de um eu-em-si, de uma subjetividade, de uma vivência intrínseca, mostra-se como instrumento de manipulação. Portanto, o que se vê são ideologias manipuladoras, porque têm como objetivo principal fazer proselitismo e cooptar adeptos. Os tornados adeptos, por serem, de um jeito protocolar, politicamente analfabetos, deixam-se engambelar por discursos plenos de uma falácia obscena, de uma sofística execrável.

Não obstante o discurso que postula igualdade, vemos-nos quase que culturalmente educados, doutrinados para fortalecer a diferença, algo característico de um darwinismo social. Hodiernamente partilhamos o dia-a-dia com um grande número de minorias que se nos revelam como vítimas. A vitimização estabelece, portanto, seu corolário: o processo de polarização. O processo de polarização, salvo melhor juízo, impede até mesmo o exercício da cidadania, pois que obstaculiza as opiniões privadas e/ou públicas. A polarização social é, em si, antidialética.

Não há mais a possibilidade de um debate aberto, franco, sem que os envolvidos sejam rotulados pelos mais contundentes adjetivos. E tal expediente torpe estende-se às instituições, sejam elas políticas, econômicas, educacionais, culturais, etc. O executivo busca administrar em função de interesses ideológicos partidários; o legislativo legisla igualmente em função de interesses e ideologias partidárias; o judiciário, na verdade uma legião de sofomaníacos, julga a partir de ideologias partidárias. Com isso temos o barbarismo democrático e a orgia institucional instaurada sob o manto da legalidade.

Nas relações cotidianas, o que se percebe é que temos a mulher como vítima do homem, o pobre como vítima do rico, o trabalhador como vítima do empresário, as classes sociais mais baixas vítimas das oligarquias, o negro como vítima do branco, o homossexual como vítima do heterossexual, o idoso como vítima da juventude, a criança como vítima do adulto, etc., etc., etc. A mediação deixou de existir, a dialética foi banida do léxico.

Mas o discurso da tolerância permanece. Como? Como falar em tolerância se a dinâmica é intolerante? O que temos, então? A violência contra a mulher aumentou, a homofobia faz seus mártires, as crianças estão sendo maltratadas, os negros mais e mais são discriminados, cresceu sobremodo a xenofobia. A tão divulgada tolerância não encontra respaldo algum; por isso mesmo transforma-se e manifesta sua antítese: a intolerância.

A estrutura da crise se mostra através de um encadeamento: ideologia, vitimização, polarização. Com isso, as lutas sociais assimilaram o modus operandi de luta armada. A violência, antes justificada pela maneira de o povo manifestar seu total desagrado com um sistema que os discrimina, maltrata e repele, agora se mostra com requintes de ações cinematográficas, revelando conhecimentos de guerrilha urbana. As greves não são mais reivindicatórias, mas trazem em suas raízes a ideologia espúria bem presente nas mentes dos sequazes manipulados. As manifestações se aliaram aos atos de violência, à barbárie, ao vandalismo. A autoridade policial vê-se limitada, até porque, como instituição, tornou-se refém da torpe ideologia.

Pergunto: Estamos, de fato, vivenciando uma democracia? Democracia que se vincula à violência dos manifestantes, ao descaso das autoridades, ao desrespeito com o povo, ao deboche da classe política, ao desmando a que se entregaram as instituições? Acredito que o Brasil não conseguiu assimilar ainda o que seja uma democracia. A democracia no Brasil não contempla a urbanidade, mas a balbúrdia, a defesa de interesses particulares, e, destarte, a impunidade. Meu maior temor é que esse tipo singular de democracia desague, incondicionalmente, numa guerra civil.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Felicidade



Evidentemente, uma das maiores preocupações dos seres humanos é alcançar a felicidade. Mas a felicidade, em si, seria uma meta, ou um simples estágio para se chegar ao objetivo intentado? Parece-me que a felicidade é o objeto final. No entanto, e já nos alertara o grande Aristóteles, as pessoas confundem a felicidade com os meios para atingi-la. A felicidade é algo único, concebida como bem supremo; os meios para alcançá-la é que variam de acordo com os desejos, volições e valores de cada ser humano. Alguém entende que ser feliz é possuir bens materiais; na verdade, os bens materiais seriam um meio para este alguém alcançar ou pensar ter alcançado a exigida felicidade. Aqueloutro entende que a felicidade está na riqueza; contudo a riqueza é somente um meio para que ele declare ter atingido a felicidade.

Nada obstante, voltemo-nos para a etimologia da palavra, o que nos remete ao termo grego eudaimonia. Eu, no idioma grego significa bem, bom, boa; daimon seria o espírito. Em resumo, eudaimonia, felicidade é estar acompanhado por um bom espírito, por um espírito do bem. Neste caso, fazem-se necessários alguns esclarecimentos: a) que o espírito de que falavam os gregos em nada se assemelha ao espírito, alma ou anjo da guarda presentes na religião judaico-cristã. b) a palavra daimon, que mais tarde adquiriu uma conotação negativa, originou o termo demônio, igualmente presente no religião judaico-cristã.

Mas ocupemo-nos da felicidade. Mesmo antes de Aristóteles, Pitágoras já aliava a felicidade ao conhecimento, ao aprendizado, isto é, àquilo que nos importa e nos leva à perfeição pessoal. Observemos, portanto, tal assertiva. Se a riqueza, ou a honra, ou o prazer for, de fato, origens da felicidade, pergunta-se: um ser humano coberto de joias ou proprietário de muitos bens, mas vítima de doença terminal dir-se-á feliz? Evidente que não. Logo, a felicidade não está na riqueza, nem em honras ou prazeres. Ora, então como alcançá-la? Através de bens que não sejam nem revelem efemeridade. Enfim, voltamo-nos ao conhecimento, pois que este, depois de adquirido, torna-se bem inalienável. O conhecimento conduz à busca da perfeição, e quando a perfeição pessoal é enfim alcançada, contemplada, o ser humano acaba por experienciar a felicidade.  A felicidade, portanto, assimila a condição de Soberano Bem. O saber seria a conditio sine qua non para atingir-se o mais alto bem; a verdade, o valor supremo.  

No entanto, hodiernamente, com a ajuda da ciência e da tecnologia, as pessoas são levadas a confundir o soberano bem com o bem-estar. Ciência e técnica se esforçam em realizar constante manutenção nesse bem-estar, provocando, evidentemente, um abrandamento, uma deterioração, um depauperar da consciência mesma, e, destarte, um apequenar, um recrudescer da atividade cognitiva. Contudo, as pessoas ainda se declaram felizes; felizes não por ter, não por conquistar. As pessoas se importam com as conquistas efêmeras; elas desejam o agora, o minuto de fama, o amor feito às pressas, as relações passageiras, o selfie que lhes emprestam notoriedade. E o mais alarmante: as pessoas não querem mudanças, pelo menos por ora, pois que a mudança ameaçaria esta pseudo estabilidade - felicidade. A própria ciência, quando propõe transformações radicais, é encarada como inimiga em potencial.

Então vós me perguntais: e como fazer para conquistar a verdadeira felicidade? Simples, façamos o que não mais é tido como “normal”; façamos o que é démodé, o que é antiquado, o que é vintage. Dediquemo-nos à leitura, aos estudos, à compreensão, ao conhecimento. Resgatemos a verdade que há muito foi relativizada. Reconciliemo-nos com os valores hoje transvalorados. Aliado a isso, evoquemos a fé, pois que a fé fará com que a divindade emerja de nossa alma e não permita que tudo se nos esvaia, que o conquistado nos seja arrebatado. Deus garantirá que não mais desfrutemos de uma existência puramente material, mas sim de uma realidade eterna, absoluta e, é óbvio, ornada de felicidade. Desfrutemos, portanto, da vera Eudaimonia!

sábado, 2 de fevereiro de 2019

O anticristo



Bem, antes de mais nada, devo confessar-lhes que não sou teólogo. Meu conhecimento de teologia é bem superficial; é puro diletantismo. Eu não estudaria teologia nem mesmo para reduzir minha pena, caso fosse sentenciado à privação de liberdade. Todavia, acredito poder colaborar, por pouco que seja, com hermeneutas e/ou exegetas.

No tocante aos livros que compõem o Antigo e Novo Testamentos, o que mais me reclama a atenção é o Apocalipse de João. O texto apocalíptico mostra-se bastante denso por exibir laivos de arrebatamento místico, bem como vestígios de primevo fanatismo. Mas isso não vem ao caso, o importante é que muitos se têm debruçado sobre o referido livro na tentativa de melhor esclarecê-lo. Com isso, tivemos acesso a inúmeras interpretações, principalmente no que tange à figura do Anticristo. 

Ora, o Anticristo, etimologicamente, é aquele ou aquilo que se opõe a Cristo. O Anticristo ou a Besta, na verdade, é um personagem escatológico. E quem ou o quê se opõe a Cristo? Já se falou no Império Romano, por conta da perseguição aos cristãos; já se falou do Papa, pois o número 666, a marca da Besta, foi encontrada oculta na mitra papal. Já se vinculou a figura do Anticristo a Adolf Hitler, à antiga União Soviética, ao Império islâmico e até a Barack Obama. Pelo visto, podemos perceber que não há limites para a delirante e pujante criatividade humana.

E pautado exatamente nesta criatividade, distante que estou da ilha de Patmos, dou asas à imaginação e inicio minha exegese acerca do Anticristo. Percebei: o Anticristo é um ente abstrato, não uma personificação; é pessoa jurídica de direito público; é amálgama de estratos com cunho de interesses diversos e, por vezes, divergentes. A característica escatológica eu não vinculo ao fim do mundo, ao Armagedon, mas simplesmente a excrementos e/ou expressões obscenas. Portanto, o Anticristo é brasileiro.

De início, estou certo, receberei críticas as mais acerbas, inclusive arriscando-me a ser taxado de fascista ou algo que o valha. Mas percebei, a Besta é formação circunstanciada e díspar, que, no entanto, se harmoniza internamente. Externamente, contudo, revela o que há de pior em termos de valores humanos. Então, resumidamente, vou expor, em termos valorativos a aparência do Anticristo: Ele reúne a canalhice presente em Temer, Moreira Franco e Eduardo Cunha, revela a truculência de um Gilmar Mendes, o cinismo de Aécio Neves e José Sarney, o oportunismo de Alexandre de Moraes, o apedeutismo, a desonestidade e facécia de Lula, a parcialidade e venalidade de Carlos Marum, a pusilanimidade de Aloizio Nunes, de um Eliseu Padilha e  de um Rodrigo Maia, o mau-caratismo de Garotinho, Sérgio Cabral e Pezão, a dissimulação dos Picciani, a arrogância de Renan Calheiros e a facúndia de Marco Aurélio Mello. Poderia permitir-me discorrer ainda com mais profundidade sobre a Besta, mas ela há de mascarar-se sempre mais e mais.

Àqueles que não convenci, posso, como todo e qualquer neófito em teologia, encontrar uma numerologia à contento que justifique a assertiva de que o Anticristo é brasileiro. Vejamos: A Câmara Federal é composta de 513 deputados. Ao somarmos os valores dos algarismos teremos: 5 + 1 + 3 = 9. Agora vejamos a quantidade de senadores: 81. Somemos os algarismos: 8 + 1 = 9. Pois bem, temos dois algarismos 9. Ora, o inverso de 9 é 6. Portanto estamos às voltas com 6 e 6. Sim, o número da Besta é o 666. Onde o outro 6? Simples, as turmas - não a plenária do STF - são formadas por 5 ministros e mais um representante da Procuradoria Geral da República. Eis, portanto o terceiro algarismo 6. Eis a Besta em todo a sua inteireza.

Agora, só resta nos ocuparmos da característica escatológica. O jeitinho brasileiro acabou por cativar o cenário mundial. A Odebrecht comprou políticos de outros países, financiou campanhas em outros países, corrompeu líderes, bancou partidos estrangeiros necessitados de projeção. O Brasil, através de seu peculiar Anticristo, haja vista os escândalos de corrupção, tornou-se conhecido mundialmente, o que também o faz cultuado e tido como referência exemplar pela excrecência humana.  

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

A Serpente e o Logos



“No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez.” João 1: 1-3. Em geral, as pessoas entendem o termo Logos como palavra, como fala ou coisa assim. O termo grego, no entanto, é polissêmico, pois admite 18 acepções ligadas à raiz do verbo “legein” - trazer à luz. Eis algumas delas: dizer, palavra, discussão, proposição, definição, frase, declaração, razão (argumento), Razão (faculdade de raciocinar), proporção (associado à tradição pitagórica, pois a primeira fração apresentaria o mesmo “Logos” que a segunda fração), explicação, mensagem (em sentido metafórico), manifestação, conclusão, criação advinda de ideia, expressão. Pelas palavras de João, podemos perceber que o Logos implica diretamente manifestação, uma criação advinda de ideia formal, expressão de algo antes interiorizado, apenas pensado e com necessidade de ser exteriorizado; algo que exige sua formalização, sua materialização.

Em face do até aqui exposto, pode-se inferir que a formalização, exteriorização, materialização exige, em si, sua expressão, sua divulgação e conhecimento. Aí, portanto, entende-se o vínculo do Logos com a palavra, com a linguagem, a definição. E como surge a linguagem? A linguagem teve três momentos distintos: de início tivemos uma língua concebida por hieróglifos, a linguagem utilizada pelos deuses, uma linguagem muda, gestual; em segundo momento tivemos a língua simbólica, a linguagem dos heróis, na qual os símbolos tiveram primazia; por último tivemos a língua articulada, linguagem dos seres humanos, linguagem poética, com versos jâmbicos (uma sílaba breve e outra longa), cuja constituição teve início com interjeições, depois pronomes, em seguida as preposições, então os nomes e por fim os verbos. Contudo, ainda mantemos, e até por carência da própria linguagem articulada, o uso das metáforas, esta herança da fase simbólica. 

Bem, o objetivo da linguagem é tornar possível a comunicação, o conhecimento. No Antigo Testamento, o símbolo era a árvore do conhecimento do Bem e do Mal. É pertinente chamar a atenção que a primeira musa, advinda dos raios de Júpiter, foi definida por Homero como a “Ciência do bem e do Mal”. E como o ser humano inicia a “degustação” do fruto desta árvore? A tentação da serpente! Mas por que serpente? Sim, a serpente de que fala o Antigo Testamento é simbologia pura e ligada à Píton, serpente vencida por Apolo. As primeiras expressões dos seres humanos tiveram origem na presença da Píton, pois ela originou a linguagem articulada, ou seja, as interjeições provocadas pelo espanto. Não só a filosofia nasce com o espanto, mas também a linguagem articulada. Talvez esteja aí o estreito vínculo entre espanto, filosofia e Logos. E evidentemente, tudo graças a bondosa serpente!