Já faz algum tempo que oriento meus
estudos na tentativa de entender o porquê da desonestidade tão presente - eu
diria até característica - no povo brasileiro. Não, não vou ater-me à classe política;
este é um estudo de amplo espectro. O problema, que envolve o ilegal, o
ilícito, o imoral, o amoral e, ipso facto
à corrupção, recebeu o título eufemístico de “jeitinho brasileiro”, já
traduzido - de modo inconsequente - como legado cultural em face do comportamento
rude de nossos colonizadores, assim como por herança de uma incomum miscigenação
racial. Com as ciências humanas, essa nossa faceta depreciativa, esse nosso
desvio de caráter, além de receber o codinome de paralegalidade, teve em sua
defesa o postulado de uma tendência à informalidade.
Bem, a determinação em esmiuçar tal
questão fez com que eu me debruçasse, inclusive, na busca de uma explicação
metafísica. Mas ai de mim, nem a metafísica foi capaz de trazer-me o menor
alento. Afinal, uma determinação metafísica qualquer implicaria a consubstanciação
de alguns círculos do inferno dantesco. Na literatura, Os Bruzundangas de Lima
Barreto, assim como Macunaíma de Mário de Andrade apenas descrevem e corroboram
o fenômeno, mas não discorrem sobre o porquê. Em Casa Grande e Senzala,
Gilberto Freire, também sociólogo, e de modo bem superficial, vincula a questão
à uma sexualidade autóctone. Será? Bem, já que remetido aos autóctones, optei
por recorrer às lendas brasileiras, ou seja, ao folclore indígena.
Iara, bela e sedutora, atrai os homens
para o fundo dos rios e os mata afogados; os que se lhe escapam, enlouquecem. E
tudo isso por vingança. Saci-Pererê, por sua vez, um brincalhão, que assusta
animais, faz com que as cozinheiras queimem os alimentos, salgam os cafés e
coisas do gênero. Curupira, um defensor do meio-ambiente, mas também violento e
estuprador, pode ser engambelado com cachaça e fumo. Caipora - que muitas vezes
é confundida com o Curupira - é protetora do ecossistema, tem o dom de
ressuscitar animais e fornece pistas falsas a caçadores. Mostra-se sobremodo
traiçoeira, pois ao capturar seres humanos, devora-os a título de refeição. A
Caipora, portanto, seria uma entidade canibal. A Mula-sem-Cabeça apenas retrata
a ameaça do castigo reservado às mulheres que desconsideram o celibato, se bem
que os padres há muito deixaram de ser considerados homens santos. O Boitatá mostra-se
como uma enorme serpente feita de fogo, que protege a floresta das queimadas e,
dizem, representaria o espirito das pessoas malignas. O Boto cor-de-rosa seria
o responsável por toda e qualquer gravidez indesejável no norte do país. A
Cuca, com cabeça de jacaré, sustenta a fama de devorar crianças que
desrespeitam os pais. (Se, de fato, existisse, estaria atualmente assoberbada
de trabalho). O Bicho-Papão assemelha-se a Cuca. Enquanto o Boto tem a
capacidade de transformar-se num belo homem e seduzir as mulheres ribeirinhas,
a Boiuna pode transformar-se em mulher e provocar ilusões. O Lobisomem,
criatura feroz, embora sem o aval da licantropia, diz-se daquele que se
transforma em lobo nas noites enluaradas. A lenda de O Negrinho do Pastoreio,
diferentemente das demais, tem sua origem no sul do país e guarda mensagem
positiva.
Após este breve relato, gostaria de
chamar vossa atenção para o fato de que as figuras de nosso folclore, com
exceção de O Negrinho do Pastoreio, expendem sempre sexualidade, molecagem,
agressão, ilusão, violência. Teria Gilberto Freire razão? Não só nossos heróis
carecem de caráter; nossas figuras folclóricas também. Ora, o folclore mesmo
trata das tradições e usos populares, portanto, nosso folclore, desde os
primórdios, estaria eivado da paralegalidade, ou se assim desejais, de um
intrínseco jeitinho brasileiro.
Minhas pesquisas, contudo,
insatisfeitas com o até aqui investigado, conduziram-me ao encontro de um
ancestral do Curupira. Sim, descobri entidade mitológica bem presente em tribos
indígenas norte-americanas. O Wendigo teve origem no ser humano faminto, que
para se alimentar no rigor de um inverno, devorou seus próprios companheiros.
Wendigo é uma entidade que prima pelo canibalismo; ele também ensina aos seres
humanos a devorar seus iguais.
Evidentemente que, se entendermos
Wendigo como metáfora, estaria explicado o porquê das atitudes dos brasileiros.
Somos um povo que denota ser faminto; somos faminto culturalmente, somos
famintos socialmente, somos famintos politicamente, somos famintos
economicamente, somos religiosamente famintos. Mas não o somos porque alguém
nos faz assim, por conta de outros povos; somos famintos, carentes, porque
gostamos de assim o ser; somos famintos, carentes, porque nos esforçamos em
assim sê-lo. Sentimos prazer em nos mostrar carentes. E a qualidade de
famintos, carentes, nos permite, nos autoriza a devorar, a dizimar nossos
concidadãos; nosso condição de carentes justifica nosso egoísmo desenfreado,
nossa desonestidade, nossos joguinhos ilegais e imorais. Apesar de famintos,
carentes, esforçamo-nos por nos mostrar alegres, hospitaleiros, acessíveis,
simpáticos. Somente o culto a uma entidade tão abjeta poderia explicar nossa
essência. E, apesar de toda a fome, a carência que declaramos ser vítimas,
ainda clamamos por liberdade, ou seja, exigimos mais um requisito para
justificar nossos desmandos.
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