sábado, 13 de fevereiro de 2021

Excentricidades

 

Ocorre-me no momento discorrer acerca do talento, da genialidade. Arthur Schopenhauer, no entanto, talentoso que era, estabeleceu certa diferença entre os termos. Para o filósofo, “talento é acertar um alvo que ninguém acerta; genialidade é acertar um alvo que ninguém vê”. Data muitíssima vênia, entendo a genialidade como apanágio de um grande talento. E eu teria um sem número de exemplos para justificar meu postulado, todavia, ainda vinculo à genialidade uma boa parcela de extravagância. Então sobrevém-me naturalmente o nome de Tobias Barreto. Sim, sua biografia revela não só o advogado, o filósofo, o professor, o escritor, mas também a excentricidade que lhe era peculiar.

Hermes Lima, autor da biografia de Tobias Barreto, vem nos narrar situações as mais intrigantes. Por exemplo, Tobias Barreto fundou em Escada, pequeníssimo município de Pernambuco, por volta de 1876, um jornal totalmente impresso em língua alemã. O nome do semanário era Deutscher Kämpfer. Especula-se que ele seria o editor, autor, impressor e também único leitor. Eis a excentricidade de que falo. Ainda segundo o biógrafo, Tobias Barreto revelou-se notável autodidata, pois aprendera sozinho o idioma germânico.

Como professor da Faculdade de Direito de Recife, sobejam situações extravagantes protagonizadas por Tobias Barreto. A título de exemplo, escolho passagem sui generis, na qual nosso personagem fazia parte de uma banca examinadora. Aqui peço licença para vos atualizar de modo breve: nos dias de hoje não mais se exige dos formandos a obrigatoriedade de defender uma monografia frente à banca examinadora. Pasmai: o argumento é que a defesa oral cria embaraços aos discentes. Advogados envergonhados de falar em público!? Durma-se com um barulho desses! Mas voltemos ao nosso excêntrico propedeuta. Jovem formando fora sorteado com um ponto sobre Direito Eclesiástico. O tema: Da infalibilidade Papal. Tobias perguntou ao aluno: “O Papa é infalível?” O aluno respondeu que sim. Tobias tornou a perguntar: “Diz isto por convicção ou fé?” O aluno respondeu: “Por fé!” Tobias então concluiu: “Então reze o Padre Nosso!” O aluno retrucou algo contrariado: “Sr. Dr., estou a fazer prova de Direito Eclesiástico, não de catecismo”. E o mestre respondeu: “Correto. Por isso mesmo, no tocante a uma prova de direito, não se deve basear o arrazoado na fé. A fé não se discute. Se o Sr. tivesse respondido pautado em sua convicção, eu buscaria demonstrar o contrário de sua afirmação. Portanto, reze o Padre Nosso!”

De volta à realidade, isto é, à pós-modernidade, acredito estarmos carentes de alguma excentricidade. Estamos infecundos, estéreis. Seja na educação, no direito ou na política, estamos necessitados de alguma extravagância, de alguma estranheza, de genialidade. Mas, onde buscá-la? No ensino doutrinário de um Antonio Gramsci ou de um Paulo Freire? Na força pulmonar e loquacidade inesgotável da malta política ambiciosa que só faz tirar proveito pessoal com a vulgaridade das paixões? Ou em Suas Excelências togadas que empenham-se por perverter de modo grosseiro a ciência jurídica? Onde a convicção, a prova evidente, as certezas morais? Nem mesmo a fé - atual e mormente banalizada - pode lhes servir de supedâneo, muito embora a ideologia assemelhar-se sobremaneira ao fanatismo, a cultos disparatados, às seitas fundamentalistas.

Resta-nos, portanto, assim creio, rezar um Padre Nosso.   

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A fila

 

E lá estava presente o empurra-empurra. Alguém grita: “Agora é minha vez!” Rumores de desagrado. O mais forte impõe-se ao fracote. Um sujeito de terno e gravata, cabelo brilhoso e sorriso cínico ergue a mão a pedir silêncio e declara: “Sou vereador e tenho prioridade!” O povo vaia. Muitos gritam: “O Senhor vereador vai para o fim da fila!” No fim da fila aqueloutro pergunta: “Para que esta fila?” O solícito responde: “Pra vacinar, ora bolas”. E o perguntador insiste: “Vacina pra quê?” O mal humorado grita: “Contra a Covid; o corona vírus!”. Outra vez o indagador adianta-se: “Aquela da China, ou a ...? Bocas apreensivas respondem: “Sim, a da China!”. O curioso, então, afasta-se. Mais à frente, um que se considera refinado, observa: “Pobre adora fazer duas coisas: fila e filho”. Sorri à larga. Um pobrezinho ressentido, a entender-se como mais uma vítima do sistema, arrisca: “Os bacanas nem precisam sair de seus carrões; eles se vacinam estilo drive-thru. E nós aqui a sofrer...” Um empertigado torce o nariz e faz careta.

De repente a sirene; chega o policiamento para pôr ordem na casa, ou melhor, na fila. Uns aclamam, outros reclamam. O sargento grita: “Vamos organizar!” Os membros do destacamento fazem uso da formação militar: o consequente rigorosamente atrás do precedente. E mais uma vez o sargento orienta: “Em primeiro lugar serão vacinados os mais velhos e os que têm prioridade... Todos com documentos a mão; quem estiver sem documentos saia da fila, pois não será atendido”. Murmúrios, xingamentos. Uma mulher pede licença e diz ao policial militar: “Sou funcionária da saúde e sou do grupo de risco”. O sargento autoritário: “E seus documentos, onde estão?” A mulher responde: “Ora sargento, funcionário público não tem carteira de trabalho e não anda por aí com a cópia do Diário Oficial”. O sargento a encara para vociferar: “Funcionários da Saúde foram os primeiros a serem vacinados. Sem documento, não vacina. Saia da fila!” A mulher põe-se a reclamar. Um policial a conduz à viatura. Alguns clamam: “Absurdo!” Os melhor informados murmuram: “Abuso de autoridade”. O sargento reúne o destacamento; todos sacam dos cassetetes. E vem o silêncio. Homem de meia idade aponta: “Aquele moço furou a fila!”. O sargento pega o rapaz indicado pela gola e grita: “Documentos”. O rapaz responde: “Eu estava apenas guardando lugar para minha vó”. E o sargento rapidamente: “E onde está tua avó?” O rapaz aponta para a velhinha sentada no bar do outro lado da rua.

Migrante nordestino solfeja um tipo de forró: “Vem cá seu guarda escutar a minha história, pois faz mais de cinco horas (meses) que estou a esperar. A fila está crescendo de mais e agora esse rapaz está querendo furar. Não fura não a minha fila fura não...” Certa confusão dentro do posto de saúde: alguém apresentou reação imediata à vacina. Tem lugar o pânico. O diz-que-diz espalha-se pelo entorno. O que acabara de sair gritou: “Morreu!”. Uma auxiliar de saúde pálida corrobora a notícia: “De fato, foi à óbito. A fila esvazia-se; o destacamento recua. O sargento ainda tenta reorganizar o que sobrou da enfiada. Certo rapaz aproxima-se e identifica-se: “Chamo-me Jorge e sou estudante do Direito. Preciso de mais detalhes para entrar com um recurso junto ao Ministério Público; esse governo e esse Ministério da Saúde são uma vergonha!” Algumas mocinhas conversadeiras sorriem e declaram: “É mentira sargento; ele nem sequer estuda; o documento que ele usa é falso. Ele quer apenas chamar a atenção para lançar sua candidatura junto à comunidade”. O sargento chama o cabo que conduz o pseudo discente de direito à viatura.

E chega a imprensa: câmeras, fios, antenas, microfones, maquiadores... E a notícia? Sim, vamos a ela: “Homem de 42 anos - não podemos revelar o nome - faleceu devido aos efeitos ainda desconhecidos da vacina contra o Covid 19. Perguntamos o porquê da Anvisa ter liberado o uso da droga mesmo emergencialmente. Não, não devemos culpar os legisladores por estabelecerem o prazo de 5 (cinco) dias para a Agência de Vigilância Sanitária liberar o medicamento, pois afinal os parlamentares cumpriram com suas obrigações. E por falar em obrigações, um destacamento da Polícia Militar foi enviado aqui para assegurar o bom ritmo da vacinação, no entanto, os policiais mostraram-se rudes e desrespeitosos com os cidadãos. Isso sim é um absurdo!”

E o resto vós conheceis bem. O que ainda desconhecemos são os efeitos futuros da poção milagrosa inventada pelos chineses.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Algo de arte

 

Beatrice Harrison, violoncelista, lá pelos idos de 1923, enquanto praticava escalas em seu instrumento, tarde da noite, descobriu-se acompanhada por certo rouxinol. Sim, ele cantava em resposta ao cello, a propor uma espécie de dueto. Surpresa, deu início então a um concerto e percebeu que o acompanhamento prosseguia. Durante várias tardes e noites Beatrice repetiu a experiência com sucesso. A BBC londrina encarregou-se de transmitir os concertos de Beatrice and her Nightingale. Mais tarde, descobriu-se que o pássaro fora também capaz de ensinar a outros rouxinóis como acompanhar as variações de um cello.

O exemplo em questão, assim me parece, fica muito próximo do que entendo por arte, ou seja, o inconsciente a revelar-se como consciente. Explico-me melhor: a arte surge do encontro entre consciente e inconsciente. O consciente busca interpretar o inconsciente; este, por sua vez, torna-se permissivo. A atividade consciente fundida à profunda natureza inconsciente revela-se como inspiração. Esta fusão (inspiração) é harmonia para muito além de qualquer oposição. Espontaneidade, receptividade, liberdade e natureza integram-se.