sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A fila

 

E lá estava presente o empurra-empurra. Alguém grita: “Agora é minha vez!” Rumores de desagrado. O mais forte impõe-se ao fracote. Um sujeito de terno e gravata, cabelo brilhoso e sorriso cínico ergue a mão a pedir silêncio e declara: “Sou vereador e tenho prioridade!” O povo vaia. Muitos gritam: “O Senhor vereador vai para o fim da fila!” No fim da fila aqueloutro pergunta: “Para que esta fila?” O solícito responde: “Pra vacinar, ora bolas”. E o perguntador insiste: “Vacina pra quê?” O mal humorado grita: “Contra a Covid; o corona vírus!”. Outra vez o indagador adianta-se: “Aquela da China, ou a ...? Bocas apreensivas respondem: “Sim, a da China!”. O curioso, então, afasta-se. Mais à frente, um que se considera refinado, observa: “Pobre adora fazer duas coisas: fila e filho”. Sorri à larga. Um pobrezinho ressentido, a entender-se como mais uma vítima do sistema, arrisca: “Os bacanas nem precisam sair de seus carrões; eles se vacinam estilo drive-thru. E nós aqui a sofrer...” Um empertigado torce o nariz e faz careta.

De repente a sirene; chega o policiamento para pôr ordem na casa, ou melhor, na fila. Uns aclamam, outros reclamam. O sargento grita: “Vamos organizar!” Os membros do destacamento fazem uso da formação militar: o consequente rigorosamente atrás do precedente. E mais uma vez o sargento orienta: “Em primeiro lugar serão vacinados os mais velhos e os que têm prioridade... Todos com documentos a mão; quem estiver sem documentos saia da fila, pois não será atendido”. Murmúrios, xingamentos. Uma mulher pede licença e diz ao policial militar: “Sou funcionária da saúde e sou do grupo de risco”. O sargento autoritário: “E seus documentos, onde estão?” A mulher responde: “Ora sargento, funcionário público não tem carteira de trabalho e não anda por aí com a cópia do Diário Oficial”. O sargento a encara para vociferar: “Funcionários da Saúde foram os primeiros a serem vacinados. Sem documento, não vacina. Saia da fila!” A mulher põe-se a reclamar. Um policial a conduz à viatura. Alguns clamam: “Absurdo!” Os melhor informados murmuram: “Abuso de autoridade”. O sargento reúne o destacamento; todos sacam dos cassetetes. E vem o silêncio. Homem de meia idade aponta: “Aquele moço furou a fila!”. O sargento pega o rapaz indicado pela gola e grita: “Documentos”. O rapaz responde: “Eu estava apenas guardando lugar para minha vó”. E o sargento rapidamente: “E onde está tua avó?” O rapaz aponta para a velhinha sentada no bar do outro lado da rua.

Migrante nordestino solfeja um tipo de forró: “Vem cá seu guarda escutar a minha história, pois faz mais de cinco horas (meses) que estou a esperar. A fila está crescendo de mais e agora esse rapaz está querendo furar. Não fura não a minha fila fura não...” Certa confusão dentro do posto de saúde: alguém apresentou reação imediata à vacina. Tem lugar o pânico. O diz-que-diz espalha-se pelo entorno. O que acabara de sair gritou: “Morreu!”. Uma auxiliar de saúde pálida corrobora a notícia: “De fato, foi à óbito. A fila esvazia-se; o destacamento recua. O sargento ainda tenta reorganizar o que sobrou da enfiada. Certo rapaz aproxima-se e identifica-se: “Chamo-me Jorge e sou estudante do Direito. Preciso de mais detalhes para entrar com um recurso junto ao Ministério Público; esse governo e esse Ministério da Saúde são uma vergonha!” Algumas mocinhas conversadeiras sorriem e declaram: “É mentira sargento; ele nem sequer estuda; o documento que ele usa é falso. Ele quer apenas chamar a atenção para lançar sua candidatura junto à comunidade”. O sargento chama o cabo que conduz o pseudo discente de direito à viatura.

E chega a imprensa: câmeras, fios, antenas, microfones, maquiadores... E a notícia? Sim, vamos a ela: “Homem de 42 anos - não podemos revelar o nome - faleceu devido aos efeitos ainda desconhecidos da vacina contra o Covid 19. Perguntamos o porquê da Anvisa ter liberado o uso da droga mesmo emergencialmente. Não, não devemos culpar os legisladores por estabelecerem o prazo de 5 (cinco) dias para a Agência de Vigilância Sanitária liberar o medicamento, pois afinal os parlamentares cumpriram com suas obrigações. E por falar em obrigações, um destacamento da Polícia Militar foi enviado aqui para assegurar o bom ritmo da vacinação, no entanto, os policiais mostraram-se rudes e desrespeitosos com os cidadãos. Isso sim é um absurdo!”

E o resto vós conheceis bem. O que ainda desconhecemos são os efeitos futuros da poção milagrosa inventada pelos chineses.

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