Muito embora o ceticismo de alguns e a carência de comprovação científica, parece-me evidente que, entre irmãos gêmeos - indiferentemente se univitelinos ou bivitelinos - tem lugar a partição de vivências internas, de sensações, de emoções. A proteção mútua fielmente cumprida entre estes, originada e desenvolvida pela partilha de lugares comuns, acaba por dar origem a uma cumplicidade singular. Com base neste breve arrazoado, apesar do fenômeno receber o apodo de mito, passo a vos narrar fato deveras assombroso.
Conheci os irmãos Eli e Efraim quando
éramos adolescentes, ginasianos, sonhadores e detentores de alguma
irresponsabilidade. Além de colegas de colégio, tornamo-nos companheiros. Era
comum, quando em presença de apenas um dos gêmeos, conseguir saber, ou pelo
menos intuir, o que o outro fazia, sentia ou pensava. A primeira paixão de Eli
foi igualmente vivenciada por Efraim; os desenganos e decepções de Efraim em
muito afetaram Eli. Na prática de esportes, a contusão de um trazia sofrimento
a ambos.
Nada obstante, o que mais me reclamava
a atenção no modo de os irmãos lidarem com o fenômeno era que, até mesmo por
conta da criação (assim creio), revelarem extrema indiferença e notório
cepticismo. Quando lhes perguntavam acerca desta cumplicidade sensório-afetiva,
sorriam à larga e diziam fruto de uma convivência adjuvante, sadia e absoluta;
argumentavam que além da proximidade biológica, a educação recebida por família
sobremodo pragmática, não lhes permitiam ser opositores.
Pois bem, chegamos à maioridade e nos
apresentamos para servir à pátria. Não é à toa que o inexplicável sempre foge à
compreensão: Eli, assim como eu, foi considerado inapto para o serviço militar,
haja vista nosso esmirrado tipo físico. Voltamos para casa a ostentar o CDI - Certificado
de Dispensa de Incorporação. Efraim, muito embora o biótipo e semelhança física
com o irmão, fora incorporado. Então, tive
oportunidade de melhor observar o fenômeno da “proximidade” biológica, mesmo em
face do afastamento físico. Eli sentia-se extremamente cansado com os exercícios
físicos impostos a Efraim na sua fase de adaptação à vida de caserna; Eli
buscava descansar ao máximo para que o irmão pudesse beneficiar-se disso em sua
vida militar. E parece que o recurso trazia bons resultados, pois Efraim
despontou como excelente recruta dentre seus pares. Poder-se-ia dizer que Eli
também servia à pátria, só que remotamente.
A “proximidade” biológica, todavia,
especificamente no presente caso, viria desencadear uma série de fenômenos, até
o momento, inexplicáveis pelas ciências físicas e/ou psicológicas. O amigo
recruta continuava a dar o melhor de si na vida de caserna, enquanto nós, eu e
Eli, seu irmão, buscávamos o primeiro emprego. Mas o pior aconteceu - assim
creio - a causar impacto na vida de todos os familiares e amigos. Um acidente
com arma de fogo, durante treinamento, pôs fim a vida do jovem Efraim.
Testemunhei o sofrimento de todo o grupo. Eli sequer conseguiu comparecer ao
funeral do irmão. Em casa fizeram-no acamado, mas seu estado de saúde
agravou-se. Removeram-no para um hospital. Pouquíssimas pessoas podiam
visitá-lo; eu queria vê-lo, conversar com Eli... O amigo fora blindado. Por
que?
Atribuo à minha determinação ao fato
de ter conseguido dissuadir os familiares da injustificada - um precoce
julgamento - proibição. Enfim, ao entardecer do derradeiro dia, tive acesso ao
paciente. Eli encontrava-se em ala afastada, em total isolamento. O paciente,
mesmo consciente, tinha o corpo envolto em ataduras. Não, nada de queimaduras.
Uma doença desconhecida! Haveria risco de contágio? A hipótese de hanseníase já
fora afastada, apesar do corpo estar a apodrecer, a decompor-se. Sim, o amigo
já passara da fase da autólise. O inchaço abdominal evidenciara o estágio enfisematoso.
O corpo já se rompia dando ensejo à predação de coleópteros. Não pude observar
as fístulas, mas não deixei de sentir o cheiro desagradável que do corpo
exalava. Mesmo a experimentar dores atrozes, Eli, em estado semiconsciente,
tentava explicar-me o que acontecia: ele sofria e manifestava a decomposição
pelo qual passava o corpo de Efraim. O defunto - materialista militante - obstinado
em permanecer ligado ao corpo físico, mantinha não só a consciência, mas também
a sensibilidade ativa. E a “proximidade” biológica, então, encarregava-se do
resto. Eli, passadas poucas horas da morte do irmão, começara a notar o
escurecimento da própria pele. Então vieram as dores nas juntas e depois o
surgimento de chagas. O enfermo experienciou o próprio corpo a produzir
bactérias famintas. Perguntei-lhe se o processo não poderia ser suspenso e o
mal debelado. Entre soluções e esgares de dor, disse-me que os profissionais de
saúde não criam no que ele acabara de contar-me, e mesmo que viessem a crer não
haveria como interromper o processo; sabiam apenas que o fenômeno originava-se no
próprio corpo e que a causa permanecia desconhecida.
Em meio a estupefação Eli pareceu
desmaiar. A equipe médica atendeu a meu chamado com rapidez. Ordenaram-me que
saísse ... quisera despedir-me. Mas eu vivenciara algo próximo do ineditismo;
fora como se eu conversasse com alguém já falecido. Como a estabilização e
regressão do mal mostravam-se impossíveis, o óbito era aguardado para as
próximas horas. E foi o que aconteceu: o cérebro experimentou o desfazimento,
órgãos vitais dissolveram-se e Eli teve como causa da morte a falência
múltipla.
Não pude despedir-me do amigo. Efraim,
o irmão considerado herói, aclamado com honras militares e salva de 21 tiros, fora
sepultado há pouco mais de 24 horas. Mas desta feita tudo estava diferente; até
o emocional revelara outra face: não houve velório, nenhuma solenidade ou
encômio; não houve pranto, ninguém carpiu. O ataúde lacrado selava aquele “contratempo”
e virava mais uma página na história daquela família.
Muito interessante! Caso a ser pesquisado.🤔
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