terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Gêmeos


Muito embora o ceticismo de alguns e a carência de comprovação científica, parece-me evidente que, entre irmãos gêmeos - indiferentemente se univitelinos ou bivitelinos - tem lugar a partição de vivências internas, de sensações, de emoções. A proteção mútua fielmente cumprida entre estes, originada e desenvolvida pela partilha de lugares comuns, acaba por dar origem a uma cumplicidade singular. Com base neste breve arrazoado, apesar do fenômeno receber o apodo de mito, passo a vos narrar fato deveras assombroso.

Conheci os irmãos Eli e Efraim quando éramos adolescentes, ginasianos, sonhadores e detentores de alguma irresponsabilidade. Além de colegas de colégio, tornamo-nos companheiros. Era comum, quando em presença de apenas um dos gêmeos, conseguir saber, ou pelo menos intuir, o que o outro fazia, sentia ou pensava. A primeira paixão de Eli foi igualmente vivenciada por Efraim; os desenganos e decepções de Efraim em muito afetaram Eli. Na prática de esportes, a contusão de um trazia sofrimento a ambos.

Nada obstante, o que mais me reclamava a atenção no modo de os irmãos lidarem com o fenômeno era que, até mesmo por conta da criação (assim creio), revelarem extrema indiferença e notório cepticismo. Quando lhes perguntavam acerca desta cumplicidade sensório-afetiva, sorriam à larga e diziam fruto de uma convivência adjuvante, sadia e absoluta; argumentavam que além da proximidade biológica, a educação recebida por família sobremodo pragmática, não lhes permitiam ser opositores.  

Pois bem, chegamos à maioridade e nos apresentamos para servir à pátria. Não é à toa que o inexplicável sempre foge à compreensão: Eli, assim como eu, foi considerado inapto para o serviço militar, haja vista nosso esmirrado tipo físico. Voltamos para casa a ostentar o CDI - Certificado de Dispensa de Incorporação. Efraim, muito embora o biótipo e semelhança física com o irmão, fora incorporado.  Então, tive oportunidade de melhor observar o fenômeno da “proximidade” biológica, mesmo em face do afastamento físico. Eli sentia-se extremamente cansado com os exercícios físicos impostos a Efraim na sua fase de adaptação à vida de caserna; Eli buscava descansar ao máximo para que o irmão pudesse beneficiar-se disso em sua vida militar. E parece que o recurso trazia bons resultados, pois Efraim despontou como excelente recruta dentre seus pares. Poder-se-ia dizer que Eli também servia à pátria, só que remotamente.

A “proximidade” biológica, todavia, especificamente no presente caso, viria desencadear uma série de fenômenos, até o momento, inexplicáveis pelas ciências físicas e/ou psicológicas. O amigo recruta continuava a dar o melhor de si na vida de caserna, enquanto nós, eu e Eli, seu irmão, buscávamos o primeiro emprego. Mas o pior aconteceu - assim creio - a causar impacto na vida de todos os familiares e amigos. Um acidente com arma de fogo, durante treinamento, pôs fim a vida do jovem Efraim. Testemunhei o sofrimento de todo o grupo. Eli sequer conseguiu comparecer ao funeral do irmão. Em casa fizeram-no acamado, mas seu estado de saúde agravou-se. Removeram-no para um hospital. Pouquíssimas pessoas podiam visitá-lo; eu queria vê-lo, conversar com Eli... O amigo fora blindado. Por que?

Atribuo à minha determinação ao fato de ter conseguido dissuadir os familiares da injustificada - um precoce julgamento - proibição. Enfim, ao entardecer do derradeiro dia, tive acesso ao paciente. Eli encontrava-se em ala afastada, em total isolamento. O paciente, mesmo consciente, tinha o corpo envolto em ataduras. Não, nada de queimaduras. Uma doença desconhecida! Haveria risco de contágio? A hipótese de hanseníase já fora afastada, apesar do corpo estar a apodrecer, a decompor-se. Sim, o amigo já passara da fase da autólise. O inchaço abdominal evidenciara o estágio enfisematoso. O corpo já se rompia dando ensejo à predação de coleópteros. Não pude observar as fístulas, mas não deixei de sentir o cheiro desagradável que do corpo exalava. Mesmo a experimentar dores atrozes, Eli, em estado semiconsciente, tentava explicar-me o que acontecia: ele sofria e manifestava a decomposição pelo qual passava o corpo de Efraim. O defunto - materialista militante - obstinado em permanecer ligado ao corpo físico, mantinha não só a consciência, mas também a sensibilidade ativa. E a “proximidade” biológica, então, encarregava-se do resto. Eli, passadas poucas horas da morte do irmão, começara a notar o escurecimento da própria pele. Então vieram as dores nas juntas e depois o surgimento de chagas. O enfermo experienciou o próprio corpo a produzir bactérias famintas. Perguntei-lhe se o processo não poderia ser suspenso e o mal debelado. Entre soluções e esgares de dor, disse-me que os profissionais de saúde não criam no que ele acabara de contar-me, e mesmo que viessem a crer não haveria como interromper o processo; sabiam apenas que o fenômeno originava-se no próprio corpo e que a causa permanecia desconhecida.

Em meio a estupefação Eli pareceu desmaiar. A equipe médica atendeu a meu chamado com rapidez. Ordenaram-me que saísse ... quisera despedir-me. Mas eu vivenciara algo próximo do ineditismo; fora como se eu conversasse com alguém já falecido. Como a estabilização e regressão do mal mostravam-se impossíveis, o óbito era aguardado para as próximas horas. E foi o que aconteceu: o cérebro experimentou o desfazimento, órgãos vitais dissolveram-se e Eli teve como causa da morte a falência múltipla.

Não pude despedir-me do amigo. Efraim, o irmão considerado herói, aclamado com honras militares e salva de 21 tiros, fora sepultado há pouco mais de 24 horas. Mas desta feita tudo estava diferente; até o emocional revelara outra face: não houve velório, nenhuma solenidade ou encômio; não houve pranto, ninguém carpiu. O ataúde lacrado selava aquele “contratempo” e virava mais uma página na história daquela família.

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