Fala-se
em regime político caracterizado pela soberania popular e de distribuição
equitativa do poder. Mas isso pode levar a uma interpretação errônea do
conceito, pois não poucos a entendem como uma proposta imoderada de liberdade.
O próprio Montesquieu, preocupado com o desdobramento da dita interpretação,
disse-nos, através do seu Espírito das Leis que, “A democracia e a aristocracia
não são estados livres por natureza”. Nem mesmo governos moderados permitem a
liberdade política, quando detecta abusos de poder. Aqui se torna necessária,
portanto, a tripartição dos poderes.
Parece-me
que, na verdade, a democracia, e isso remonta à própria origem do conceito, não
passa de um grande engodo. Soberania popular, em si, é um conceito vazio, pois
o povo nunca foi soberano. Famílias tradicionais sempre, e através do poder
econômico, dividiram e partilharam o poder, evidentemente trazendo em seus
discursos a retórica da soberania popular. Ainda na ágora grega, haja vista a
condenação de Sócrates, pode-se perceber que o poder não se solidariza com a
emulação. Nem mesmo a triste experiência do comunismo soviético conseguiu
demonstrar a factibilidade desta forma de governo, isto é, a soberania popular.
O
que a democracia faz, e muito bem, é criar a ilusão de uma liberdade e de uma
participação no poder. Vejamos: o povo - a multiplicidade - é um universo
difuso, díspar, divergente. Ora, a difusão leva à confusão, ao conflito de
interesses. Qualquer governo que se pretende independente, soberano ou
hegemônico deve manter-se coeso, resoluto, decidido, determinado. “Razões de
Estado”, diria o cardeal de Richelieu. Portanto, o lema retórico disseminado
pela democracia “O poder emana do povo, para o povo e pelo povo”, exaure-se por
sua própria inaplicabilidade. Os sistemas de governo, seja lá qual for o grau
utilizado de separação dos poderes, não conseguem tornar factível a proposta
democrática. Estados unitários ou federativos também se mostram incapazes de
tal realização.
Mas
poderíamos de bom grado falar em outros regimes de governo. Tanto o
autoritarismo, o despotismo, a ditadura, as oligarquias, as plutocracias, as
teocracias, as tiranias e os totalitarismos manipulam os povos, só que,
diferentemente da democracia, os faz acreditar que a força, a exceção, o arbítrio
e a própria fé são os únicos modos de proporcionar a felicidade humana. Se nos
voltarmos às ideologias políticas, seja o comunismo ou socialismo, até por uma
experiência histórica, veremos que foram baldas as tentativas de fazer do
ensejo, das expectativas do povo uma voz ativa e altissonante. E por favor, não
recorram ao argumento sub-reptício do consenso. O consenso é outro conceito
vazio. Em decisão eletiva, a maioria numérica vence; em decisão arbitrária,
quase todos perdem.
Se
nos voltarmos à forma de governo tida como a menos imperfeita, a república,
normalmente confundida com a democracia, até porque seus pressupostos se
assemelham, poderemos observar que o povo como autoridade também está
descartado. Como apanágio do republicanismo destacamos o sufrágio livre e
secreto. Todavia, a república, a res
publica, a coisa pública, na verdade a administração pública, já era
contemplada no Império Romano e em alguns reinados europeus. Maquiavel
utilizava a palavra res publica para
reportar-se tanto a democracias quanto a aristocracias. Etimologicamente a
palavra tem o significado de bem comum, e, atualmente, diz-se de um sistema de
governo que emana do povo. Isto não só a aproxima da democracia, e todas as
suas perversões acima descritas, bem como, quando no predomínio econômico ou
político do capital, de um liberalismo, que em nada proporciona a igualdade e
ou a fraternidade difundida pelo Iluminismo.
Democracia,
em termos práticos, seria uma proposta eminentemente e unicamente utópica. A
liberdade, retoricamente defendida por governantes, fica refém da liberdade
política, pois atenderia somente aos interesses da classe que se propõe a
governar. Na verdade, podemos entendê-la, fazendo uso das palavras de
Aristóteles, como uma forma impura, isto é, uma demagogia, onde o governo
exercido pela maioria - entenda-se uma maioria qualitativa e não quantitativa -
para oprimir uma minoria, também qualitativa e nunca quantitativa. E se
buscarem saber o que significa, neste caso, o qualitativo, pensem no poder, na
riqueza, no tráfico de influência etc.
Então
meus atentos leitores perguntar-se-iam: será que o autor defende um regime
anárquico? Evidente que não. O que seria a anarquia dentro da própria anarquia?
A negação de uma negação é tão somente uma afirmação. Mas ainda uma questão
poderia pairar na reflexão do leitor: e qual seria a forma pura? E eu diria:
Não há! O que há são pessoas, seres
humanos, e nada mais. O que me soa nefasto são os mecanismos retóricos
utilizados para se hipostasiar, ou seja, conferir substância a algo, no caso a um
estereótipo fajuto. E quando falo em estereótipo fajuto me refiro ao fato de se
ter atribuído predicados como racionalidade e/ou socius aos seres humanos. São esses paradigmas infamantes, - na
verdade difamantes - sociabilidade e racionalidade, que teimam em retirar os
humanoides de seu perpétuo estado de natureza. Percebam! Os sistemas, as formas
de governo e de estado, na tentativa de justificar a racionalidade e a
sociabilidade impostas aos humanos, nada mais fazem do que reiterar o estado de
natureza de que vos falo, - e em que estão imersos - onde os mais fortes e os
mais hábeis oprimem, vilipendiam e exploram os fracos, os incapazes e obtusos,
muitas das vezes vítimas de uma potencialização da pusilanimidade, da
inaptidão, da estupidez.
Nada
a fazer!
Perfeito Fernando, não há um sistema puro, mas a defesa da democracia é alardeada livremente por manifestantes, Renan, Henrique Eduardo Alves e tantos outros.
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