quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Democracia: uma retórica nada democrática


Fala-se em regime político caracterizado pela soberania popular e de distribuição equitativa do poder. Mas isso pode levar a uma interpretação errônea do conceito, pois não poucos a entendem como uma proposta imoderada de liberdade. O próprio Montesquieu, preocupado com o desdobramento da dita interpretação, disse-nos, através do seu Espírito das Leis que, “A democracia e a aristocracia não são estados livres por natureza”. Nem mesmo governos moderados permitem a liberdade política, quando detecta abusos de poder. Aqui se torna necessária, portanto, a tripartição dos poderes.

Parece-me que, na verdade, a democracia, e isso remonta à própria origem do conceito, não passa de um grande engodo. Soberania popular, em si, é um conceito vazio, pois o povo nunca foi soberano. Famílias tradicionais sempre, e através do poder econômico, dividiram e partilharam o poder, evidentemente trazendo em seus discursos a retórica da soberania popular. Ainda na ágora grega, haja vista a condenação de Sócrates, pode-se perceber que o poder não se solidariza com a emulação. Nem mesmo a triste experiência do comunismo soviético conseguiu demonstrar a factibilidade desta forma de governo, isto é, a soberania popular.

O que a democracia faz, e muito bem, é criar a ilusão de uma liberdade e de uma participação no poder. Vejamos: o povo - a multiplicidade - é um universo difuso, díspar, divergente. Ora, a difusão leva à confusão, ao conflito de interesses. Qualquer governo que se pretende independente, soberano ou hegemônico deve manter-se coeso, resoluto, decidido, determinado. “Razões de Estado”, diria o cardeal de Richelieu. Portanto, o lema retórico disseminado pela democracia “O poder emana do povo, para o povo e pelo povo”, exaure-se por sua própria inaplicabilidade. Os sistemas de governo, seja lá qual for o grau utilizado de separação dos poderes, não conseguem tornar factível a proposta democrática. Estados unitários ou federativos também se mostram incapazes de tal realização.

Mas poderíamos de bom grado falar em outros regimes de governo. Tanto o autoritarismo, o despotismo, a ditadura, as oligarquias, as plutocracias, as teocracias, as tiranias e os totalitarismos manipulam os povos, só que, diferentemente da democracia, os faz acreditar que a força, a exceção, o arbítrio e a própria fé são os únicos modos de proporcionar a felicidade humana. Se nos voltarmos às ideologias políticas, seja o comunismo ou socialismo, até por uma experiência histórica, veremos que foram baldas as tentativas de fazer do ensejo, das expectativas do povo uma voz ativa e altissonante. E por favor, não recorram ao argumento sub-reptício do consenso. O consenso é outro conceito vazio. Em decisão eletiva, a maioria numérica vence; em decisão arbitrária, quase todos perdem. 

Se nos voltarmos à forma de governo tida como a menos imperfeita, a república, normalmente confundida com a democracia, até porque seus pressupostos se assemelham, poderemos observar que o povo como autoridade também está descartado. Como apanágio do republicanismo destacamos o sufrágio livre e secreto. Todavia, a república, a res publica, a coisa pública, na verdade a administração pública, já era contemplada no Império Romano e em alguns reinados europeus. Maquiavel utilizava a palavra res publica para reportar-se tanto a democracias quanto a aristocracias. Etimologicamente a palavra tem o significado de bem comum, e, atualmente, diz-se de um sistema de governo que emana do povo. Isto não só a aproxima da democracia, e todas as suas perversões acima descritas, bem como, quando no predomínio econômico ou político do capital, de um liberalismo, que em nada proporciona a igualdade e ou a fraternidade difundida pelo Iluminismo.

Democracia, em termos práticos, seria uma proposta eminentemente e unicamente utópica. A liberdade, retoricamente defendida por governantes, fica refém da liberdade política, pois atenderia somente aos interesses da classe que se propõe a governar. Na verdade, podemos entendê-la, fazendo uso das palavras de Aristóteles, como uma forma impura, isto é, uma demagogia, onde o governo exercido pela maioria - entenda-se uma maioria qualitativa e não quantitativa - para oprimir uma minoria, também qualitativa e nunca quantitativa. E se buscarem saber o que significa, neste caso, o qualitativo, pensem no poder, na riqueza, no tráfico de influência etc.

Então meus atentos leitores perguntar-se-iam: será que o autor defende um regime anárquico? Evidente que não. O que seria a anarquia dentro da própria anarquia? A negação de uma negação é tão somente uma afirmação. Mas ainda uma questão poderia pairar na reflexão do leitor: e qual seria a forma pura? E eu diria: Não há!  O que há são pessoas, seres humanos, e nada mais. O que me soa nefasto são os mecanismos retóricos utilizados para se hipostasiar, ou seja, conferir substância a algo, no caso a um estereótipo fajuto. E quando falo em estereótipo fajuto me refiro ao fato de se ter atribuído predicados como racionalidade e/ou socius aos seres humanos. São esses paradigmas infamantes, - na verdade difamantes - sociabilidade e racionalidade, que teimam em retirar os humanoides de seu perpétuo estado de natureza. Percebam! Os sistemas, as formas de governo e de estado, na tentativa de justificar a racionalidade e a sociabilidade impostas aos humanos, nada mais fazem do que reiterar o estado de natureza de que vos falo, - e em que estão imersos - onde os mais fortes e os mais hábeis oprimem, vilipendiam e exploram os fracos, os incapazes e obtusos, muitas das vezes vítimas de uma potencialização da pusilanimidade, da inaptidão, da estupidez.

Nada a fazer!

Um comentário:

  1. Perfeito Fernando, não há um sistema puro, mas a defesa da democracia é alardeada livremente por manifestantes, Renan, Henrique Eduardo Alves e tantos outros.

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