sábado, 21 de março de 2020

Eu e o vírus



Saí a caminhar, até porque as caminhadas fazem parte da minha rotina. Para quem já está há alguns anos aposentado, dentro de casa, o caminhar não só causa bem estar físico, mas também permite uma certa interação e interpretação do entorno. Podeis perceber que o agora tão difundido isolamento social não me é estranho. Máscara? Não, não pretendo aproximar-me e/ou abraçar alguém. Aliás, já faz tempo que desconheço o que seja um abraço. Sim, todo esse cuidado por conta de uma pandemia.

Sigo lentamente pela avenida que conduzir-me-á à praia. Aqui e acolá cruzo com um pedestre apressado, com um idoso, com algum desavisado. Ruas desertas. Eis o lado bom da pandemia, se tal houver. Mercados fechados, bares fechados, bancos fechados. Sim, as farmácias estão de plantão. Atravesso a avenida que margeia a praia, tiro os chinelos e piso a areia. Um vento brando parece querer me brindar. E lá estou eu a deixar minhas pegadas no solo branco. As ondas vêm e vão; pássaros ensaiam seus voos e emitem seus gritos. Cansei-me; preciso sentar.

O muro que divide a avenida da praia agora me serve de banco. E perco-me a admirar o céu exatamente no momento em que ele se une com o mar: horizonte indecifrável. Alguém se aproxima. Sim um rapaz senta-se próximo. Ele me cumprimenta e busca entabular uma conversa. Respondo o cumprimento e o observo: jovem, se bem que difícil lhe determinar uma idade; beleza nenhuma, pelo contrário, bastante feio, dir-se-ia uma mistura de Sméagol com mestre Yoda; pálido, olhar arguto, estatura mediana. Exibe um piercing na sobrancelha direita, traja calça jeans, sandálias havaianas e na mão traz embolada uma camisa polo de cor cinza. Sua palidez está presente por todo o corpo. No peito, ao lado esquerdo uma tatuagem. Sim, conheço aquele rosto ... sim, trata-se de Shi Jin Ping, presidente da República Popular da China.

Ele insiste em puxar assunto e fala do calor que nos rodeia. Eu aquiesço: – “É, deve estar por volta dos quase 40 graus”. Ele sorri e comenta: – “Perdi meu tempo! Não me sinto à vontade neste calor”. Curioso pergunto: – “O que pretendias fazer?” Encarou-me com uma expressão quase cômica, balançou a cabeça e segredou-me: – “Vim aqui com uma missão. Vim punir, dar continuidade a um processo de ... digamos ‘limpeza’. Mas este clima não colaborará com meus propósitos”. Percebendo minha estranheza, arregalou os olhos, disfarçou uma irrisão e apresentou-se: – “Prazer, chamo-me Covid 19”. E estendeu a mão. Afastei-me, encolhi-me sobre o muro de cimento que margeia a faixa de areia. Eu queria correr, mas a idade ... Sorriu largamente e permitiu escapar um: – “Eu compreendo...”

Em poucos segundos recuperei-me do susto. Então pensei: “Por que não conversar? Em uma adaptação das crônicas da escritora Anne Rice, Neil Jordan, há bem pouco tempo, conseguiu uma entrevista com o vampiro; por que não devo entrevistar um tão famoso vírus?” Fiz, então, minha proposta. O rapaz empertigou-se, mostrou algum desconforto e algo ofendido perguntou: – “És da imprensa?” Aí foi minha hora de rir. Ri bastante, à bandeira despregadas. Sim, a expressão revela bem a minha idade. Quando consegui recuperar o controle quis responder com um “Deus me livre!”, mas não achei oportuno. Deixei meu interlocutor à vontade, falando da minha realidade: aposentado, parte do grupo de risco e que minha caminhada era uma rotina objetivando uma quebra de rotina. Falei somente de meu interesse no conhecimento; querer conhecer os fatos em todas as suas dimensões. Já convencido da minha honestidade, concordou em dar a entrevista.

Antes mesmo de iniciar a entrevista, ele, o afamado vírus, fez questão de apresentar-se formalmente. – “Chamo-me Covid, but my friends call me Code; assim prefiro ser tratado. O número 19 não retrata minha idade. Desconheço minha filiação, mas sou natural da China.” Dito isso, comecei por perguntar por que a resistência em relação à imprensa. Respondeu-me que não quereria ver sua entrevista editada, de modo a colocarem palavras em sua boca. Sabia ser considerado um pária, tinha consciência do mal que representava, mas não gostaria de ser usado para vender jornais e/ou dar audiência. Bem, já que ele dissera ter consciência do mal que representava, perguntei-lhe: – “Se tens consciência do mal, por que o fazes?” Olhou-me com ar professoral, coçou o queixo e falou: – “Alguém já perguntou a luz o porquê da sua luminosidade? Interrogaram o vento, solicitando saber porque ele causa borrascas, tempestades, ciclones, etc.?  É da minha natureza. Não sei quem me criou, se é que fui criado ou se sou apenas mutação, mas o fato é que estou vivo, e como todo ser vivo preciso preservar-me, mesmo que para isso acabe com a vida de outrem.”

Recordei-me do início de nossa conversa e voltei à carga: – “Falaste em missão...” Como esperasse pela minha pergunta, atalhou-me: – “Evidente que tudo na natureza tem um objetivo, um propósito. Nada, mas absolutamente nada está aí sem um objetivo. Se existo, tenho um objetivo a alcançar. Já percebeste que o mundo está com ‘excesso de lotação?’ A ciência tem a pretensão de tornar os seres humanos imortais. Eu ajudarei a estabelecer limites à longevidade. Alguns, e com alguma razão, falam em castigo divino, mas ... se quiseres podes também entender o termo missão como licença poética.” E deixou-se rir.

Agastei-me: – “Pretendes, então, eliminar o quanto for possível a raça humana?” Obtemperou: – “De modo algum. Muito antes disso serei extinto; encontrarão uma vacina...” Continuei: – “Mas as pessoas estão em pânico; temem a morte”. De modo frio respondeu-me: – “Os seres humanos foram criados temendo a morte, entendendo a morte como castigo, como punição. Poucos são os que divergem desse pensamento. O medo é algo positivo, mas nocivo ao transformar-se em pânico. A imprensa explora esse viés psicológico, pois alardeia, cria tensões, faz questão de divulgar situações extremas. Enfim, dá origem a uma histeria coletiva. Soma-se a isto o interesse politiqueiro de grupos que pretendem desestabilizar governos. Inflamam a população. Esta, despreparada, ignorante, manipulada, reage exatamente como quer a canalha política. O que faz o povão? Provoca o desabastecimento. As autoridades, ancoradas num discurso que prega o bem social, fazem uma série de proibições e criam obstáculos, como este do isolamento social. Enfim, haverá desemprego, crise na indústria, no comércio e no setor de serviços. Com o fechamento de fábricas, o caos sócio econômico estará instalado. O que dizer então do PIB? E pasme: tudo por culpa minha! “

Segundos para retomar fôlego e o entrevistado continuou: – “A medicina, que poderia em muito amenizar esta orgia, pauta-se numa soberba profissional e acaba colaborando com o quadro...” Aqui tive que interromper as palavras de Code:  – “Como assim? A medicina colabora com o caos? Como?” As perguntas eram aguardadas e a resposta veio de pronto: – “Diferente dos seres humanos, a medicina tem na morte uma inimiga. Toda vez que um profissional salva uma vida, ele sente-se um Deus! Médico algum quer sofrer derrota para a morte. A medicina odeia mais a morte do que preza o ser humano. Vencer a morte é pura vaidade, por isso presenciamos esses boletins e recomendações que em muito se assemelham ao terrorismo. A medicina, tanto quanto a imprensa, instauram o pânico, o horror. E assim será até que me derrotem. A quantidade de pessoas que virá a óbito por conta desse caos será inimaginável. A culpa, no entanto, como já o disse, será minha”.  Boquiaberto com as palavras proferidas por Code e satisfeito com a entrevista, ensaiei uma última pergunta: – “Temes a morte?” Olhou-me de soslaio, algo cômico e respondeu mastigando as palavras: – “Vida e morte são correlativos necessários; um complementa o outro; não se pode isolar um do outro. Certo estou da minha aniquilação, assim como certo estou de que, em breve, outro vírus – parente próximo – surgirá para estabelecer equilíbrio entre pessoas, ciência e sociedade”.     

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