Saí a caminhar, até porque as
caminhadas fazem parte da minha rotina. Para quem já está há alguns anos
aposentado, dentro de casa, o caminhar não só causa bem estar físico, mas
também permite uma certa interação e interpretação do entorno. Podeis perceber que
o agora tão difundido isolamento social não me é estranho. Máscara? Não, não
pretendo aproximar-me e/ou abraçar alguém. Aliás, já faz tempo que desconheço o
que seja um abraço. Sim, todo esse cuidado por conta de uma pandemia.
Sigo lentamente pela avenida que
conduzir-me-á à praia. Aqui e acolá cruzo com um pedestre apressado, com um
idoso, com algum desavisado. Ruas desertas. Eis o lado bom da pandemia, se tal
houver. Mercados fechados, bares fechados, bancos fechados. Sim, as farmácias
estão de plantão. Atravesso a avenida que margeia a praia, tiro os chinelos e
piso a areia. Um vento brando parece querer me brindar. E lá estou eu a deixar
minhas pegadas no solo branco. As ondas vêm e vão; pássaros ensaiam seus voos e
emitem seus gritos. Cansei-me; preciso sentar.
O muro que divide a avenida da praia
agora me serve de banco. E perco-me a admirar o céu exatamente no momento em
que ele se une com o mar: horizonte indecifrável. Alguém se aproxima. Sim um
rapaz senta-se próximo. Ele me cumprimenta e busca entabular uma conversa.
Respondo o cumprimento e o observo: jovem, se bem que difícil lhe determinar
uma idade; beleza nenhuma, pelo contrário, bastante feio, dir-se-ia uma mistura
de Sméagol com mestre Yoda; pálido, olhar arguto, estatura mediana. Exibe um
piercing na sobrancelha direita, traja calça jeans, sandálias havaianas e na
mão traz embolada uma camisa polo de cor cinza. Sua palidez está presente por
todo o corpo. No peito, ao lado esquerdo uma tatuagem. Sim, conheço aquele
rosto ... sim, trata-se de Shi Jin Ping, presidente da República Popular da
China.
Ele insiste em puxar assunto e fala do
calor que nos rodeia. Eu aquiesço: – “É, deve estar por volta dos quase 40
graus”. Ele sorri e comenta: – “Perdi meu tempo! Não me sinto à vontade neste
calor”. Curioso pergunto: – “O que pretendias fazer?” Encarou-me com uma
expressão quase cômica, balançou a cabeça e segredou-me: – “Vim aqui com uma
missão. Vim punir, dar continuidade a um processo de ... digamos ‘limpeza’. Mas
este clima não colaborará com meus propósitos”. Percebendo minha estranheza,
arregalou os olhos, disfarçou uma irrisão e apresentou-se: – “Prazer, chamo-me
Covid 19”. E estendeu a mão. Afastei-me, encolhi-me sobre o muro de cimento que
margeia a faixa de areia. Eu queria correr, mas a idade ... Sorriu largamente e
permitiu escapar um: – “Eu compreendo...”
Em poucos segundos recuperei-me do
susto. Então pensei: “Por que não conversar? Em uma adaptação das crônicas da
escritora Anne Rice, Neil Jordan, há bem pouco tempo, conseguiu uma entrevista
com o vampiro; por que não devo entrevistar um tão famoso vírus?” Fiz, então,
minha proposta. O rapaz empertigou-se, mostrou algum desconforto e algo
ofendido perguntou: – “És da imprensa?” Aí foi minha hora de rir. Ri bastante,
à bandeira despregadas. Sim, a expressão revela bem a minha idade. Quando
consegui recuperar o controle quis responder com um “Deus me livre!”, mas não
achei oportuno. Deixei meu interlocutor à vontade, falando da minha realidade:
aposentado, parte do grupo de risco e que minha caminhada era uma rotina
objetivando uma quebra de rotina. Falei somente de meu interesse no
conhecimento; querer conhecer os fatos em todas as suas dimensões. Já
convencido da minha honestidade, concordou em dar a entrevista.
Antes mesmo de iniciar a entrevista,
ele, o afamado vírus, fez questão de apresentar-se formalmente. – “Chamo-me Covid,
but my friends call me Code; assim prefiro ser tratado. O número 19 não retrata
minha idade. Desconheço minha filiação, mas sou natural da China.” Dito isso, comecei
por perguntar por que a resistência em relação à imprensa. Respondeu-me que não
quereria ver sua entrevista editada, de modo a colocarem palavras em sua boca.
Sabia ser considerado um pária, tinha consciência do mal que representava, mas
não gostaria de ser usado para vender jornais e/ou dar audiência. Bem, já que
ele dissera ter consciência do mal que representava, perguntei-lhe: – “Se tens
consciência do mal, por que o fazes?” Olhou-me com ar professoral, coçou o
queixo e falou: – “Alguém já perguntou a luz o porquê da sua luminosidade?
Interrogaram o vento, solicitando saber porque ele causa borrascas, tempestades,
ciclones, etc.? É da minha natureza. Não
sei quem me criou, se é que fui criado ou se sou apenas mutação, mas o fato é
que estou vivo, e como todo ser vivo preciso preservar-me, mesmo que para isso
acabe com a vida de outrem.”
Recordei-me do início de nossa
conversa e voltei à carga: – “Falaste em missão...” Como esperasse pela minha
pergunta, atalhou-me: – “Evidente que tudo na natureza tem um objetivo, um
propósito. Nada, mas absolutamente nada está aí sem um objetivo. Se existo,
tenho um objetivo a alcançar. Já percebeste que o mundo está com ‘excesso de
lotação?’ A ciência tem a pretensão de tornar os seres humanos imortais. Eu
ajudarei a estabelecer limites à longevidade. Alguns, e com alguma razão, falam
em castigo divino, mas ... se quiseres podes também entender o termo missão
como licença poética.” E deixou-se rir.
Agastei-me: – “Pretendes, então,
eliminar o quanto for possível a raça humana?” Obtemperou: – “De modo algum.
Muito antes disso serei extinto; encontrarão uma vacina...” Continuei: – “Mas
as pessoas estão em pânico; temem a morte”. De modo frio respondeu-me: – “Os
seres humanos foram criados temendo a morte, entendendo a morte como castigo,
como punição. Poucos são os que divergem desse pensamento. O medo é algo
positivo, mas nocivo ao transformar-se em pânico. A imprensa explora esse viés
psicológico, pois alardeia, cria tensões, faz questão de divulgar situações
extremas. Enfim, dá origem a uma histeria coletiva. Soma-se a isto o interesse
politiqueiro de grupos que pretendem desestabilizar governos. Inflamam a
população. Esta, despreparada, ignorante, manipulada, reage exatamente como
quer a canalha política. O que faz o povão? Provoca o desabastecimento. As
autoridades, ancoradas num discurso que prega o bem social, fazem uma série de
proibições e criam obstáculos, como este do isolamento social. Enfim, haverá
desemprego, crise na indústria, no comércio e no setor de serviços. Com o
fechamento de fábricas, o caos sócio econômico estará instalado. O que dizer então
do PIB? E pasme: tudo por culpa minha! “
Segundos para retomar fôlego e o
entrevistado continuou: – “A medicina, que poderia em muito amenizar esta orgia,
pauta-se numa soberba profissional e acaba colaborando com o quadro...” Aqui
tive que interromper as palavras de Code:
– “Como assim? A medicina colabora com o caos? Como?” As perguntas eram aguardadas
e a resposta veio de pronto: – “Diferente dos seres humanos, a medicina tem na
morte uma inimiga. Toda vez que um profissional salva uma vida, ele sente-se um
Deus! Médico algum quer sofrer derrota para a morte. A medicina odeia mais a
morte do que preza o ser humano. Vencer a morte é pura vaidade, por isso
presenciamos esses boletins e recomendações que em muito se assemelham ao
terrorismo. A medicina, tanto quanto a imprensa, instauram o pânico, o horror.
E assim será até que me derrotem. A quantidade de pessoas que virá a óbito por
conta desse caos será inimaginável. A culpa, no entanto, como já o disse, será
minha”. Boquiaberto com as palavras
proferidas por Code e satisfeito com a entrevista, ensaiei uma última pergunta:
– “Temes a morte?” Olhou-me de soslaio, algo cômico e respondeu mastigando as
palavras: – “Vida e morte são correlativos necessários; um complementa o outro;
não se pode isolar um do outro. Certo estou da minha aniquilação, assim como
certo estou de que, em breve, outro vírus – parente próximo – surgirá para
estabelecer equilíbrio entre pessoas, ciência e sociedade”.
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