sexta-feira, 29 de julho de 2022

Daimon

 

A primeira aparição teve lugar quando eu ainda era bem pequeno; talvez 5 ou 6 anos de idade. Certa madrugada, meu irmão, um ano mais novo, a sentir-se mal e tossir muito, resolveu procurar por nossos pais. Ergueu-se do leito e foi surpreendido pela cena: o vulto de um homem velho, algo robusto, a exibir trajes antigos e com enorme barba, estava sentado próximo à minha cabeceira e parecia abraçar-me, proteger-me... O miúdo, então, disparou a gritar por meus pais. Com o pequeno a soluçar e tentar justificar o porquê de todo aquele alvoroço, papai e mamãe entraram no quarto. Nada! Tudo estava quieto. Apenas eu deitado de costas, a ressonar, com a cabeça voltada para a parede. Meu irmão insistia: - “Ele estava ali” - e apontava para minha cama. Contudo, a cena manteve-se vazia; nenhuma emoção, nenhum ornato.

Certa senhora, contatada por minha vó, que demonstrava impaciência com minhas ações e reações (eu com menos de 10 anos), após examinar uma espécie de baralho, decretou: - “Esse menino sabe e experimenta coisas que estão para muito além de sua idade!” Abaixei a cabeça; eu fora exposto, fora desmascarado. A velha mulher descobrira meu segredo: os sonhos eróticos que me instigavam. Vovó estimulou-me o orar; ela mesma orou comigo. Sim, vovó tornou-se minha parceira na penitência. A tal senhora, a adivinhadora, fez alguns sinais sobre minha cabeça enquanto murmurava frases inaudíveis.  

Anos se passaram. E veio a adolescência com suas mudanças, desenvolvimentos, viços e ... quiçá ... vícios. Minhas atitudes impactavam, era um destemor inexplicado, um desassombro invejável... mostrava-me aguerrido, uma rebeldia injustificada. Nas discussões e embates surgiam argumentos contundentes, algo que muito distava da minha formação e/ou educação. Eu desacatava, eu desafiava... Fiz-me amante ainda bem cedo. Dessa vez fui levado à presença de certo senhor: ela olhava para mim e abaixava a cabeça como se orasse. Minutos depois, tornava a abrir os olhos e observava o copo com água a sua frente. E veio o diagnóstico: - “Este jovem tem alguém, uma entidade que o defende; nada nem ninguém poderá atingi-lo, feri-lo; o espectro o protege e assim fará, pois é sua missão. Uma única coisa é preocupante: ele nunca estreitará laços familiares com mulher alguma; ele jamais conhecerá o amor”.

Adulto, depois de diversas e frustradas relações, fiz-me ao mar. Sim, ingressei na Marinha disposto a conhecer lugares, oceanos e mares. Nesta época eu clamava por aventuras; ansiava por um viver intenso, eu queria a totalidade de mim, a totalidade do mundo. A ansiedade acicatava-me e, por isso mesmo, castigava-me. Vivenciei reveses, aflições, acessos. Depois de algumas crises, o medicamento; remédio para melhor controlar os impulsos. O dia-a-dia ignorava-me; o tempo por mim passava indiferente... Aliás, o tempo sempre me soou apático, desapaixonado. Decidi-me, mesmo que brevemente, ocupar-me com o tempo, mas sua frieza machucou-me ainda mais.

Eu diria que minha aventura marítima pouco afastava-se do rotineiro. Certa noite, no entanto, em uma das muitas travessias do Atlântico, com o camarote na penumbra e eu a dormir, toca o alarme: incêndio em algum lugar na Praça de Máquinas. Acordo sobressaltado, abro os olhos e lá está um homem velho, a exibir densa barba e envolto em trajes antigos. O vulto se afasta e sua imagem dissipa-se. Uma frase, contudo, parece ter ecoado no obscuro camarote: Nada te acontecerá! Bem, o incêndio fora controlado, extinto. A tripulação retomou seus afazeres. Nada, de fato, aconteceu-me, todavia uma questão se me impunha: Conheceria eu o amor?

terça-feira, 26 de julho de 2022

Prosopagnosia

 

A aborrecida reunião condominial (existe alguma que não o seja?) arrastara-se por horas. Nesta oportunidade, lembro-me vagamente, conheci alguém que era da Marinha Mercante; sim, estava na ativa e era cozinheiro. Dias mais tarde, quando buscava adquirir um objeto qualquer em conhecida loja de utensílios para o lar, deparei-me com um sujeito que dizia chamar-se Alex e que atestava termo-nos conhecido na dita reunião de condomínio. Eu seria capaz de jurar que nunca o vira. Ele, então, disse-me ser o tal sujeito que vivia embarcado. Bem, esse fato não foi suficiente para reclamar-me a atenção.

De outra feita, em visita à casa de duas amigas, conheci certo professor. Conversamos durante muito tempo, até porque eu também fora professor. Foram causos e causos, acompanhados de críticas e sorrisos. Algum tempo depois, também na casa das mesmas amigas, voltei a encontrar-me com o tal professor. Ele estava distraído a ler um impresso qualquer; cumprimentei-o e ocupei-me com outra coisa. Pouco tempo depois, ele abandonou o sofá, despediu-se e foi-se. Como na despedida tivesse demonstrado muita simpatia, perguntei às amigas: - Quem é? - Elas entreolharam-se e responderam que nos conhecêramos em outra oportunidade. Ainda desta vez, o acontecido não me preocupou.

Ontem, no supermercado próximo de casa, depois de sair da fila dos caixas e procurar pela esposa, encontrei-a a conversar com uma jovem senhora. Estendi a mão e cumprimentei-a. Como eu demonstrasse sincero desconhecimento pela pessoa, minha mulher disparou: - “Esta é Fulana, amiga de nossa filha” - Sim, de fato, minha filha tinha uma amiga com aquele nome, amiga que durante algum tempo frequentara nossa casa. Mas o encontro aconteceu como se eu nunca a tivesse visto. A jovem ficou meio desconcertada, sorriu amarelo e despediu-se. A esposa reclamou, recriminou-me e mostrou alguma preocupação.

Desta feita, busquei compreender o que acontecia com frequência. Sim, aquilo chamava-se Prosopagnosia, ou seja, perda na capacidade de reconhecer rostos. Todavia, quando divulguei a novidade aos mais íntimos, certo primo, alguém, eu diria, com notável senso de oportunidade humorística, confortou-me: - “Eu não vejo isso como algo grave. Imagine adentrares um avião e te sentares ao lado da Gleisi Hoffmann, ou da Anitta, ou do Alexandre de Moraes, quem sabe do Fernando Haddad, ou ainda de Luís Roberto Barroso e não os reconhecer. Que benção! Invejo-te; existem males que vêm para bem!”   

domingo, 17 de julho de 2022

Syntirofobia

 

Carta aberta à boa vontade política

 

Venho por meio desta, mui respeitosamente, vindicar de V.Sªs. o reconhecimento da minoria a que pertenço. Afinal, assim quero crer, cabe a vós a prerrogativa de legislar e não ao STF - Supremo Tribunal Federal - como tem-se mostrado amiudadamente. A minoria de que vos falo vem sofrendo desvantagens sociais em face de, pontualmente ou simultaneamente, manifestar nível cultural ou econômico, ideologia política, herança étnica, orientação religiosa ou sexual, diversa daquela considerada “mais apta” à presente convivência social.

Em face da temática supracitada, vejo-me na obrigação de melhor explicitar o porquê de tal exigência. A esta altura, eu não saberia ao certo se, feliz ou infelizmente, reconheço-me como alguém de classe média. Fazer o quê? Tive um pai trabalhador, que lutou toda uma vida para conseguir realizar o sonho da casa própria, dar educação, algum conforto e cultura aos filhos, sem esperar por auxílio de governos e/ou governantes. Tive mãe prendada, que se esmerava em educar, através de exemplos, os pirralhos a seu encargo. Meus pais nunca - e assim me ensinaram - se fizeram vítimas da sociedade, responsabilizando-a por seus deslizes e/ou deméritos.  

Infelizmente (?), nasci de pele branca, e por isso sou discriminado. Talvez o discurso - que aos poucos torna-se hegemônico - venha pregando uma Asprodermofobia, ou seja, aversão à pele branca. Tive oportunidade de aprender música, e isso ainda no colégio público. Já não se fazem mais colégios como antigamente! O que houve com a educação? Falta de verbas? Ou foi o assimilar de uma nova didática? Hoje, lamentavelmente, minha base cultural é ridicularizada; fala-se em “reformas”, em “contracultura”. Mas o achincalhe, o menosprezo, demonstra o experienciar de uma “guerra cultural”, ou melhor, uma aversão à cultura.

Quando jovem, tive contato com o fumo. Sim, tornei-me fumante ainda muito cedo, só dele me livrando bem tardiamente. Contudo, apesar de ter vivido uma era de mudanças - Beatles, cabelos longos, calças jeans e tudo o mais -, minha formação familiar manteve-me longe das drogas. Hoje, sofro uma certa “distinção” por não ser a favor das drogas e colocar-me frontalmente contra sua legalização. Por que? Afinal, a mídia e os politiqueiros de plantão não poupam referências à “badalada” liberdade de expressão, tão típica da vera democracia. Perdoai-me Srs., mas reconheço-me refém de nova faceta da sociedade atual: a Narkomenosfobia, isto é, aversão ao não usuário de drogas.

Agora dizei-me: por que sou alvo de escárnio ao declarar-me religioso? Se não me falha a memória, a opção religiosa é constitucional. Por que não crer no improvável? Incrivelmente, o improvável conquista-me, conforta-me. Por que deificar seres humanos eivados de carências, falhas, equívocos? Por que eudeusar mitos criados por uma mídia tendenciosa? Por que divinizar heróis de fabricação duvidosa? Ficai certos, senhores, “nossos heróis morreram de overdose”; o cotidiano não nos fornece referências; há muito carecemos de estadistas. Ou será que, a exemplo de muitos, devo idolatrar um determinismo material? Meu refrigério vem, exatamente, do imaterial, do indeterminado, do metafísico. Por que, então, devo me submeter a uma irreligiosidade estulta?  

E, por fim, a clamar por vossa indulgência, venho confessar que, em minha educação, foi-me passado o modo um tanto “antiquado” no que tange ao exercício do cortejar. Eu falo de olhares e sorrisos acompanhados de todo um gestual, visando conquistar a pessoa com a qual simpatizamos. Todavia, já se fala em criminalizar olhares que manifestem conotação sexual. Por favor, dizei-me: como identificar tal olhar? Trata-se de percepção individual? E como tal percepção, já que individual, pode generalizar e apontar o crime? Parece-me, antes de tudo, que por conta do discurso feminista, vivemos uma geração doutrinada em aversão ao sexo; pelo menos ao sexo tido por convencional. Não, minto, a coisa vai bem mais longe: Hoje, não só o movimento feminista, mas também o dissimulado processo de emasculação, criaram uma sociedade que impõe sua Cisgênerofobia, ou seja, uma sociedade que demonstra abertamente aversão aos que possuem identidade de gênero idêntica à que lhe foi atribuída por nascimento. 

Sinto-me imerso numa espécie de dadaísmo social ou até mesmo perseguido por manifesta aversão ao comportamento conservador, Syntirofobia. Logo, espero contar com o empenho dos Srs. no sentido de tornar crime a perseguição gratuita aos heterossexuais, aos de pele branca, aos educados, aos religiosos, aos possuidores de alguma cultura, aos não usuários de drogas e aos não moradores de favelas. Já que minoria, gostaríamos de ter nossos direitos (modus vivendi) reconhecidos e que os tratamentos desiguais ou injustos a nós dispensados fossem punidos com o rigor da lei; que nos fosse proporcionado ressarcimento, bem como o direito de resposta. 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

A outra face da democracia

 

A título de justificativa, fez-se necessário esta brevíssima introdução, haja vista a quantidade e a diversidade de canalhas a fazer uso público do termo democracia. A canalha não se restringe à direita ou à esquerda, ao executivo, ao legislativo ou ao judiciário. A canalha é “ampla, geral e irrestrita”, pois a democracia é aventada para fundamentar perseguições, caçar políticos e/ou ideologias oposicionistas, prender desafetos, etc. Incomodado, portanto, com o torpe panorama, pus-me a investigar as origens da democracia. O que se segue não deve ser entendido como trabalho científico, mas apenas um novo olhar; olhar despido de hipocrisia, onde busca-se enxergar o currículo oculto da democracia, e, por conseguinte, de seus idealizadores.  

Diz-se que democracia é um sistema onde o governo é exercido direta ou indiretamente pelo povo. Que coisa linda! Fico emocionadíssimo quando ouço ou leio este conceito; é de provocar lágrimas. De riso! Mas, ... voltemo-nos à pesquisa. O termo, assim como o sistema, surgiu em Atenas, período clássico da Grécia, no século VII a.C. Diz-se que foi fruto de uma reforma política promovida por um tal de Clístenes, isso em função das tensões sociais criadas por uma aristocracia privilegiada e pelo significativo aumento populacional. (Atenção: não estou a falar dos dias atuais!) Mas o grande nome da democracia foi Solon. Sim, ele foi eleito em função de uma alegada capacidade de resolver questões sociais (bem atual, não?). Aclamado pelo povão, tornou-se arconte (um dos nove magistrados que geriam o governo ateniense).

Mas quem era, de fato, Solon? Muito embora as escassas informações acerca de sua vida, observemos seu conhecido curriculum vitae! Pasmai, ele era poeta! (risos) Um outro Volodymyr Zelensky? Esqueçamos a Ucrânia - pelo menos por enquanto - e voltemos nossa atenção à antiga Grécia. Sim, um aristocrata, nascido em berço nobre (outra coincidência: karl Marx também nascera em berço de ouro) e que experimentou o empobrecimento da família; teve que ocupar-se com o comércio, uma profissão mal vista pela sociedade grega de então. Detalhe, no mínimo, curioso: não foram poucas as batalhas vitoriosas e bem sucedidas em que Solon liderou os atenienses. (Ué, o pai da democracia, um militar?) (Mais risos). O que mais chamava a atenção em seus discursos: as acusações de corrupção entre os dirigentes da época (quanta similaridade). Todavia, foram as propostas apresentadas para minimizar e/ou pôr fim às questões socioeconômicas que fizeram com que o povo lhe conferisse poder absoluto.

E que propostas eram essas?  Ele anistiou dívidas dos camponeses, proibiu a escravidão por dívidas, libertou pequenos proprietários escravizados por conta de dívidas, aboliu a hipoteca sobre pessoas ou bens (Eis o início do populismo - só faltou o vale-gás e o auxílio emergencial). Ele também dividiu a sociedade pelo critério censitário (divisão por classes sociais de acordo com a renda), criou um tribunal de justiça onde o povo, através de representantes, poderia julgar algumas questões (não, nada de STF). Ele impôs limites às grandes propriedades agrárias, reformou as instituições políticas e deu direito a voto aos trabalhadores (sem dificuldades, percebe-se um contemplar à cidadania e algo de politicamente correto). Ufa, mas o cara era bom mesmo! Solon era pessoa moderada, educada, íntegra.

De fato, Solon aliviou o sofrimento dos mais pobres, mas manteve os privilégios dos mais ricos. Afinal, ele era um eupátrida! (um bem nascido). Ele manteve, igualmente, os privilégios políticos proporcionais às riquezas; distribuiu cargos públicos aos arcontes, cargos esses repartidos entre o executivo, o religioso, o militar e o judicial. Criou o Conselho dos 400, isto é, representantes das cidades-estados, que se reuniam em assembleias (uma espécie de senado ou câmara) com o poder de destituir ou punir os arcontes (e haja impeachment!). Paralelamente, determinou que os integrantes do Conselho não poderiam optar pela neutralidade, sob pena de perderem a cidadania (ninguém recorreu ao Supremo a alegar desrespeito aos direitos humanos). Não, Solon não agradou a todos. Os radicais queriam plena igualdade e (pasmai) uma reforma agrária (não havia MST). Os aristocratas não concordavam com o perdão das dívidas; entendiam que as medidas deveriam ser apenas paliativas. De certo modo pressionado, ao término de sua gestão, negou transformar-se num tirano e foi viver no Egito com todas as mordomias de qualquer ex político, seja ele bem ou mal nascido.

Bem, e a democracia? A democracia é este faz de conta, não sei se saudável ou insalubre. Democracia é farsa, é encenação. Se o político que a conduz for bom ator, tratar-se-á de uma peça de sucesso; se o político for um mau ator, estaremos às voltas com uma tragédia. Cabe a nós, meros espectadores, aclamar, vaiar, ovacionar, pois nem mesmo nossas aspirações através do difundido sufrágio universal modificarão quaisquer circunstâncias.

domingo, 10 de julho de 2022

Mudança de paradigma

 

Ainda não intui o fenômeno como um todo; apenas percebo sintomas. E os sintomas não são aprazíveis. Explico-me: tenho enorme dificuldade em gostar das canções atuais; ritmos, melodias, a própria poesia que pretende dar ânimo às músicas me soam cansativas. Há como um quê de monotonia; algo repetitivo, não digerível... As danças a exibirem um sensualismo barato. Mas as dificuldades vão além da expressão artística. Os esportes manifestam algo de agressividade. Películas cinematográficas - creio que agora uma extinta sétima arte - expõem somente a perversão de uma humanidade doentia, e isso recebe a alcunha de realismo. O dia-a-dia a revelar apenas indivíduos a colocarem seus interesses acima das sociedades que os abrigam. As relações sócio afetivas bem como as econômico-políticas pautadas na tecnologia parece-me simplesmente aviltante. Enfim, o cotidiano me é incômodo.

Então eu busco entender. O que é isso? Seria um desviver? Sim, parece-me que vivo uma outra vida dentro desta mesma vida. Não, não há como adaptar-me; é tudo agressivo, estranho, instável. Sinto-me como no desfrutar do improvável. As imposições tecnológicas fazem-me lembrar de Isaac Azimov, mas oponho-me relutantemente a tal circunstância. A fazer uso de recurso linguístico tecnológico utilizado pela inconsequente juventude, declaro: #NÃO À DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA. Entendo, então tratar-se de um novo paradigma; estou a viver uma quebra de paradigmas, mesmo sem estar pronto para isso. Ainda a copiar o linguajar dos jovens, digo: Não estou nessa vibe! Quiçá nunca esteja pronto para tais mudanças; mudanças que expendem palavras, gestos, cores, ritmos, sensações, mas excluem valores.

Uma última questão: seria apenas resultado natural da idade?