domingo, 7 de janeiro de 2024

Hieros Logos (Palavra Divina)

 

Tenhamos como ponto de partida as considerações pitagóricas. Da relação com a realidade surgem dois elementos primordiais: palavra e número. A palavra teria como função apresentar a verdade daquilo que é; essa mesma verdade manifestaria certa relação matemática. Assim se explica, parece-me, a necessidade imposta pela totalidade das nações, no que tange ao aprendizado do idioma e da matemática como fundamentos educacionais. Todavia, palavra e número deixaram de lado a característica da apresentação para assimilarem característica meramente funcional, isto é, representacional. O número, mais pontualmente, passou a primar pelo quantitativo. Ora, toda e qualquer representação é funcional.

A tentativa por abandonar o mito e suas representações funcionais, ou seja, sua ortodoxia e tautegoria, encontra na cabala uma solução possível no resgate da instância fusional. A cabala - ligada à mística - literalmente, significa “receber” ou “algo recebido”. Santo Agostinho, por sua vez, no século IV de nossa era, teria proferido algo como: “A ininteligibilidade dos números impede o entendimento de muitas passagens figuradas e místicas das Escrituras”. Bem, a título de exemplo, abordo algumas passagens das escrituras que envolvem sempre o mesmo arithmós (número), enquanto qualidade, relação, função, lei, ordem, regra, processo, fluxo, ritmo e proporção.

Senão vejamos: o dilúvio demorou 40 dias; os hebreus, depois do êxodo, passaram 40 anos a vagar no deserto; Moisés passou 40 dias em recolhimento também no deserto; tanto Saul, quanto Davi e seu filho Salomão governaram por 40 anos. Se nos voltarmos ao Novo Testamento, Jesus Cristo sofreu tentações e jejuou por 40 dias no deserto; foram 40 o número de chibatadas aplicadas ao nazareno; a Quaresma, período do ano litúrgico em algumas religiões cristãs, corresponde a 40 dias compreendidos entre a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa. Em verdade, o número 40 aparece 133 vezes nos textos bíblicos. Voltemo-nos, portanto, a entender o arithmós 40.   

O algarismo 4 pode significar provação, transformação, preparação, estabilidade, método, realismo, perseverança, calma, ordem. Já o 0, após um numeral qualquer, tem a função precípua de potencializá-lo. Logo, o dilúvio pode ser entendido como provação; o êxodo como transformação; os reinados de Saul, Davi e Salomão como método, ordem; os dias de tentação como preparação; as chibatadas como realismo; a Quaresma como estabilidade. Não obstante, pode-se perceber que o termo deserto é algo muito presente nos textos bíblicos, isto porque o deserto simboliza a busca interior e lugar ideal para o relacionar-se com a divindade.

A instância fusional (relativa a fusão) das palavras desempenha papel fundamental para o entendimento dos textos bíblicos. A Bíblia nos fala de que não só Sara, esposa de Abraão, mas também Rebeca, esposa de Isaac, e Raquel, esposa de Jacob, eram estéreis. Justamente eles, os patriarcas responsáveis pela descendência do povo hebreu. Não, não há contradição, pois a palavra esterilidade implica o não provimento; na simbologia da esterilidade, contudo, reside todo o potencial da ação salvadora de Deus; Deus torna-se, então, o símbolo para provimento de um povo.

Outro exemplo, a meu ver o de mais difícil compreensão segundo a literalidade, trata-se de uma possível imolação de Isaac. Sara não conseguia engravidar (esterilidade simbólica), o que permitiu que Agar, a criada, gerasse um filho para dar descendência a Abraão. Nasceu Ismael, Yishma’el - “Deus ouve”. Sim, Deus ouvira as súplicas do casal. Mas Sara, muito embora idosa, conseguiu engravidar. Nasceu Isaac, Yitzhak, que significa “ele irá rir”, “como Deus ri”, “filho da alegria”. Com o nascimento de Isaac, Agar e o filho Ismael foram expulsos do acampamento, isto porque Agar passara a desprezar sua senhora Sara. A meu ver o nó górdio para justificar a rivalidade entre muçulmanos e judeus.

A dificuldade maior, no entanto, está em entender o pedido de Deus para que Abraão sacrificasse o pequeno Isaac. A cabala judaica diz-nos que a “Tora fala por metáforas, por enigmas muito particulares”. Na verdade, o Isaac a ser sacrificado seria o “filho interior de Abraão”, pois o patriarca, apesar do filho do riso, dera origem a um herdeiro íntimo, “nascido não só do riso, mas também da mágoa, da cólera, dos medos e sonhos não realizados”, afinal Ismael, de fato seu primogênito, fora banido, segundo sua decisão pessoal. Deus pede a Abraão que “renunciasse a isso, a suas emoções e pensamentos” negativos, “que desatasse os nós do seu espírito, que extinguisse uma parte de si próprio”, até porque Deus prometera a Ismael uma descendência igualmente numerosa.  

Em suma, feliz ou infelizmente, a interpretação de textos sagrados, através do estudo da simbologia, da vera apresentação (não representação) e da instância fusional vem dirimir dúvidas, explicar lendas, milagres e extinguir mistérios. Seria isso "saudável" para os religiosos?  

 

As partes entre parênteses no penúltimo parágrafo foram extraídos do livro O Último Cabalista de Lisboa de Richard Zimler.

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