Da felicidade
Soa a campainha. Eu
atendo com indolência. Uma menina de 13 ou 14 anos - talvez menos, pois a
necessidade desgasta e torna célere o envelhecimento - macérrima, de olhar
sofrido, rosto e olhar abatido, de vestido surrado e pés no chão, revela-se-me
em toda a sua insatisfação, sua não-saciedade, não-abundância, completa
carência. Solicita-me ajuda em forma de alimento.
Livro-me da
insensibilidade, da apatia e peço que aguarde. Tenho pressa, pois a carência
desconhece a serenidade, o equilíbrio. E volto com os alimentos; não só um, mas
dois, três, quatro pacotes.
Então percebo a
satisfação naquele inexpressivo olhar. Não houve sorriso, frases feitas, slogans
vinculados a uma possível intervenção divina; apenas um humilde agradecimento.
Eu a vejo voltar-me as costas, abraçar os pacotes e abandonar a rua com seu
passo marcado pelo cansaço.
Então percebo a
felicidade. É relação; é interdependência. Não falo da felicidade de um ou de
outro. Falo da relação felicidade; a felicidade simplória de uma carência
suprida; a felicidade em suprir tal carência. Na verdade, uma reciprocidade.
Uma carência era o alimento; outra carência era a de suprir a primeira. Ao se
preencher uma carência, supre-se outra carência. A felicidade, portanto, está
em proporcionar meios para que alguém consiga também sentir-se feliz. As
pessoas não carecem de felicidade, pois a felicidade é o fim colimado. As
pessoas carecem de meios para atingirem um desideratum.
Bem, mas agora falemos de
carência. A carência deve ser entendida como falta, ausência, privação,
necessidade, precisão. A falta de amizade é carência, a falta de amor é
carência; a ausência de um pai, de uma mãe é carência; a privação da liberdade
é carência; a necessidade do pão é carência; a precisão de medicamentos é carência.
Aquele que conquista a
liberdade, experencia o ineditismo; aquele que recebe o alimento conhece a
saciedade; ao que preenche uma ausência, desfruta sua proximidade; aquele que
vivencia o amor, celebra-o, e por meio dele realiza-se; o que recebe medicamentos
ensaia um abrandamento. Mas percebam, mesmo com a expectativa de uma
perpetuidade, não há o risco de se experimentar o tédio.
Entretanto, enganam-se
aqueles que vinculam o poder, a glória, a riqueza e a fama à felicidade, pois
todas essas exigências são complementares; são condições que acrescentam algo
ao que se já tem. Ora, o poder é dispor de algum tipo de força ou autoridade,
pois trata-se de conquista gradual; a glória também é adquirida e pressupõe
méritos; a fama advém da reputação, de certa notoriedade; a riqueza implica
grande quantidade. Portanto, em nada disso há o ineditismo, pois presume-se uma
condição prévia. Além do que são estados que estimulam vaidades; vaidades que
criam a ilusão de perenidade. Poder, riqueza, glória e fama podem até conhecer
alguma realização e celebração, mas tudo se torna tedioso, justamente porque
tornam-se presas da não-saciedade.
Enfim, não há relação
felicidade onde não há carência!
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