Porque não me ufano do meu
país:
Carta aberta de um professor
de filosofia.
Fernando Monteiro
Acredito estarmos vivendo um
momento ímpar da história política do país, mas o que mais me aflige é o
descaso que o governo e seus integrantes devotam ao cidadão brasileiro. O clima
não é só de insegurança, mas de desrespeito, de cinismo, de imoderação.
Sinto-me, e creio que como tantos outros, agredido, aviltado, acuado,
hostilizado, ofendido, e o pior de tudo é não conseguir vislumbrar uma saída
para todo esse cenário torpe. Não há uma escolha possível, pois as possibilidades
se revelam como impossíveis. Por incrível que possa parecer, até a vontade de
exercer a cidadania está inviabilizada; não há como ser cidadão dentre a
escória institucional que se instalou no país. A tentativa de exercer a
cidadania por certo será interpretada ou como radicalidade, ou reacionarismo,
ou fanatismo, ou fascismo, ou qualquer outro título de conotação degenerada e banalizada
com o fito de ofender, agredir, vilipendiar. O simples fato de morar neste país
mostra-se, no mínimo, como um desafio diário, onde somos fáceis presas da
marginalização em todos os níveis, independente se na escala governamental ou
popular.
O desmando a que estamos
entregues é de tal modo amplo que se poderia justificar qualquer revolta de
origem popular. Assistimos, e de certa maneira placidamente, a troca de
acusações entre governo e oposição. A presidente, acusada de mascarar o balanço
orçamentário de modo a transformar o que é deficitário em superavitário visando
sua reeleição, está ameaçada de impeachment, porque semelhante atitude implica
crime de responsabilidade. Encarregados de julgar o referido processo, temos um
congresso, onde em média 50% de seus integrantes são alvos de investigação,
inclusive por homicídio. Temos um partido político que prima por desfrutar do
poder, apenas como coparticipe, haja vista não ter, e já há algum tempo, nenhum
interesse em disputar as eleições presidenciais.
Mas os deputados e senadores
permanecem em seus exercícios legislativos sem serem incomodados por conta dos
mecanismos constitucionais que assim o permitem. A retórica que subjaz é o
“devido processo legal”, a “ampla defesa” e o “contraditório”. A isso se alia o
instituto do “foro privilegiado”, onde a turba de malfeitores se alicerça. A
arbitrariedade se traveste de discricionariedade. E como os processos
arrastam-se anos até que se tenha trânsito em julgado, os acusados desfrutam de
todas as suas prerrogativas, estampando um sorriso misto de cinismo e descaso,
tripudiando sobre nossa impotência jurídico-constitucional. Com isso está
instaurada a “República da Impunidade”. Alguns crimes são perpetrados já com a
certeza da impunidade. Agora, imaginem, há um projeto que propõe um
semiparlamentarismo ou semipresidencialismo. Mas, na verdade, tal projeto em
nada se aproxima do parlamentarismo ou presidencialismo, apenas trata-se de um
recurso escuso para transferir atribuições do executivo ao legislativo, como se
o legislativo fosse uma instituição confiável.
Nossa constituição, que
recebe a epígrafe de “Constituição Cidadã”, isto porque encobre grande
ressentimento, revela simplesmente o despreparo de um povo que brinca de democracia.
O brasileiro, de um modo geral, até por sua falta de vivência política,
confunde democracia com desmando. Se um governo qualquer é eleito por
princípios que se assemelham aos democráticos, é interpretado pelo povão como
algo que não deve ser alvo de investigação. Nossa constituição, preocupada em
excesso com direitos sociais, mostra-se agora leniente e bastante permissiva. Todavia,
apesar dos clichês, slogans e frases de efeito que bradam por democracia - o
povo adora chavões -, na prática, o que percebemos é uma velada oligarquia
hereditária. As famílias buscam se perpetuar no poder através de seus
descendentes; a tônica da política brasileira é a mesma de 1808 quando na
chegada da família real no Brasil, ou seja, a troca de favores, o compadrio, o
tráfico de influência. E essa cultura desaguou no coronelismo, que independente
do estágio atual de informações e/ou desenvolvimento tecnológico vige até os
dias de hoje.
O judiciário não dista muito
desse descompromisso. Nossa Corte Suprema, formada por egrégios juristas,
parece ter-se tornado refém de ideologias, o que a impede de julgar com
parcimônia, olvidando, portanto, um princípio norteador do direito: a equidade.
Evidentemente que a Constituição é um instrumento político, mas a Corte Suprema
tem que analisar os fatos e denúncias afeitos à Constituição por um prisma
unicamente jurídico, e não deixar-se conduzir por interesses partidários.
Quando tal postura é observada, o que se tem é um avilte à própria
Constituição. Vemos o judiciário como um todo embasado numa retórica peculiar,
eivado de verborragia acintosa, onde abunda a falácia criminosa e
desconcertante, abrilhantada pelo gongorismo que põe em destaque artigos da
Constituição, citados e interpretados através de uma hermenêutica casuística e
tendenciosa.
Nossa ductilidade política e
eleitoral admite o financiamento de campanhas, o que facilita a corrupção e a
compra de votos. Os empresários financiadores das campanhas, por sua vez,
contam com uma contrapartida, isto é, com a leniência por parte do governo
financiado. Um dos maiores investidores nas campanhas são as companhias de
mineração, o que culminou no desastre ambiental de Mariana. E este é o governo
que diz se preocupar com a ecologia, o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
Nossa carga tributária é uma das maiores do mundo, o que se mostra como óbice à iniciativa privada. Consequentemente há uma procura pelo emprego público, o que provoca inevitável inchaço da máquina estatal. Quando o governo anuncia um “ajuste fiscal”, sabemos de antemão que seremos vitimados pela criação de mais um imposto. Enquanto isso, os banqueiros, independente da situação econômica vigente, apresentam seus balanços faraônicos, graças a juros escorchantes ao qual o povo vive submetido. Isso implica diretamente num agravamento da tão falada má distribuição de renda. Nossa altíssima taxa de juros, que visa o investimento externo, compactua com os altos juros bancários e das administradoras de cartões de crédito.
Os tributos arrecadados são
utilizados apenas como fontes recursais do Estado, que, por seu turno, não tem
como contrapartida os serviços pelos quais cobra para realizar. Parece não haver
a menor preocupação em se questionar a responsabilidade objetiva do Estado,
pois apesar dos impostos arrecadados, nossas estradas e ruas jazem esburacadas,
o lixo acumulado e em muitos lugares os esgotos correm a céu aberto. A
insegurança dos cidadãos se amplia a cada momento. Nosso sistema previdenciário
está falido, graças à ingerência do próprio Estado e necessita de uma devassa,
de uma auditoria séria. Nosso sistema de saúde adoeceu e está em fase terminal:
faltam leitos, faltam médicos, faltam medicamentos; nos hemocentros faltam
bolsas para coleta. E isso permite a proliferação dos planos de saúde que cada
vez mais excluem e erguem barreiras entre as classes sociais. Este é o governo
que diz ter como meta os Direitos Humanos. Mas o desmando é justificado por
outra falácia: alguns artigos de nossa Constituição, e evidentemente seus parágrafos
e incisos, devem ser encarados apenas como um dever-ser. Temos uma lei maior
que propõe, mas não se compromete; reconhece que deve haver direitos, mas não
os garante.
Nossa educação está sem
rumos. Apesar do relevante percentual sobre o PIB aplicado à Educação, somos
reféns de tecnocratas; criam-se ideais educacionais, deixando de lado a questão
pragmática do ensino. O governo acredita que faz sua parte somente quando
libera verbas, mas a qualidade do ensino é péssima. Não há uma meta educacional
a ser perseguida com seriedade. Os programas lançados pelo governo apenas
mascaram lamentáveis resultados. Não se dá a devida ênfase ao ensino
fundamental; seus professores são mal preparados e mal remunerados. Com isso
proliferam as escolas particulares, o que, enquanto empresa, visam apenas o
lucro. E mais uma vez percebe-se uma maneira covarde de discriminação. No
ensino médio não é diferente. O ensino superior, muito contemplado pelo
governo, também goza de substancial desprestígio, exceto pouquíssimas instituições,
isto porque, e não por falta de salários dignos, não há comprometimento dos docentes
com a causa educacional, o que pode ser explicado pelos critérios de admissão:
os candidatos a professores nas universidades públicas, principalmente no que tange
às provas de títulos, análise de currículos e entrevistas, submetem-se
passivamente aos caprichos de uma banca que usa o argumento espúrio da
subjetividade para aprovar e dar posse a seus apadrinhados.
Na tentativa de apresentar melhor
resultados e dizer-se Pátria Educadora, o governo disponibiliza recursos para
que a população tenha acesso ao ensino superior em instituições particulares.
Todavia, as instituições particulares fazem da educação um produto qualquer,
onde os discentes são vistos apenas como clientes. Com isso observamos que a
educação no Brasil, através das instituições, sejam governamentais ou
particulares, assemelha-se ao objeto que passa por uma linha de montagem, onde
o produto final é simplesmente o analfabetismo funcional. A falta de critério
para abrir cursos de nível superior e/ou conceder licença ao funcionamento de
faculdades particulares cria expectativa nos jovens, que depois de formados vão
perceber o engodo de que foram vítimas, não só em face do restrito mercado de
trabalho, mas em virtude da dívida criada com a própria educação.
Nossas grandes empresas
estão sendo devastadas, haja vista o escândalo que envolve a Petrobrás, que
apresenta uma dívida na ordem dos 32 bilhões de dólares. Mais uma vez se
percebe a protocolar “ingenuidade” de um governo que, para conseguir apoio nas
casas do Congresso, estabelece acordos e leiloa cargos como contrapartida.
Então, é criada uma espécie de “balcão de negócios”, onde as empresa estatais,
empresas de capital misto, fundações, agências reguladoras etc., tornam-se
cabides de emprego para os partidos da base governista. Outrossim, apesar de
todas as exigências da lei de licitações, observamos, sobretudo, as
empreiteiras arroladas em um esquema de propinas e extorsões que extrapolam
qualquer expectativa de corrupção.
Entendo que num sistema
republicano a colaboração e presença marcante da imprensa e da intelectualidade
são de suma importância. Contudo, a tão afamada liberdade de imprensa no Brasil
tornou-se um recurso inócuo, pois que a imprensa afiliou-se a ideologias.
Parece que nossa imprensa não percebeu que ao eleger uma ideologia qualquer
coloca em si mesma a mordaça que tanto teme. Nossos intelectuais não são
diferentes, pois que também se vincularam a discursos ideológicos que lhes
servem de obstáculo. A liberdade de expressão, tão fundamental a uma
democracia, afina-se não mais com o livre pensar, mas torna-se refém de
interesses.
Este é, grosso modo, o
panorama nada alentador em que nós, brasileiros, vivemos imersos. O que se pode
ainda esperar desse clima de total ingerência, onde uma nação ferreteada por
sérios problemas de ordem econômica - haja vista a recessão, o nível de
desemprego e as graves questões sociais - estão sendo deixadas de lado em nome
de uma movimentação política que esbanja mau-caratismo? Evidentemente que o
povo brasileiro tem uma atuação política jamais vista, mas é algo tardio e
sobremodo ingênuo. Percebe-se que a maioria das pessoas que comparecem às
passeatas, seja contra ou pró impeachment, não sabe ao certo o que está
ocorrendo; o povo é apenas massa de manobra. E aí reside minha maior
preocupação, porque pior que a situação atual é uma possível e iminente guerra
civil se o impeachment se confirmar.
Só me resta neste momento, e
em face da possibilidade do pedido de asilo político feito por um ex-presidente
para fugir das investigações de que é alvo, suplicar a qualquer nação que me
conceda asilo, pois que não há condições de sobrevida no caos que se instalou
neste país, tendo-se em conta a insegurança, a orgia e caducidade de nossas
instituições ditas republicanas.
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