Há que se fazer, de início, uma
notável distinção dentre aqueles que se propõe a colecionar. Afinal, existem
colecionadores e colecionadores, distinção esta presente em toda e qualquer
atividade laboral e/ou profissional. No entanto, se de outro modo preferirdes, há
colecionadores do bem e colecionadores do mal. Ora, assim como não podemos
increpar a numismática ou a filatelia, não devemos cortejar a compulsão de
Frederick Clegg, colecionador de borboletas, personagem de John Fowles no romance
“O Colecionador”, onde este busca manter junto a si seu objeto contemplativo: a
bela Miranda. É pertinente, inclusive, apontar - segundo a psicologia - o viés
egoísta presente em alguns dos que têm o coligir por hábito.
Evidente que não me reporto aos que
colecionam revistas velhas, roupas antiquadas, carros antigos, máquinas
obsoletas, etc., enfim, aos que demonstram serem aficionados pelo vetusto, isto
porque o vetusto é histórico, é cultural. Tampouco dirijo-me aos acumuladores. Entretanto, como caracterizar uma
estranha compulsão? Ora, por ser compulsão já soa de certo modo ... eu não
diria estranho, mas atípico. E vos pergunto: como caracterizar aquele que
coleciona bulas de remédios? Sim, exatamente isso: bulas de remédios! Percebei
que dirigi-me a um único sujeito: “aquele”, pois que, parece-me, ser caso
singular. Mas discorramos um pouco mais sobre semelhante talento. Ora, se
colecionar é demonstrar certo fascínio pelo antigo, será que colecionar bulas
de remédios antigos implicaria algum “saudosismo” pelas doenças antigas?
Patético, direis vós em uníssono. No entanto, conheci um cidadão, já entrado em
anos, que quando interpelado acerca do avanço da medicina, ele dizia a ostentar
alguma vaidade: “Eu sou do tempo da galopante; H1N1 não me apavora”.
Mas Feijó, esse era o nome do nosso
insólito personagem colecionador, desenvolvera tal faceta quando viajava na
marinha mercante. Sua função a bordo era a de taifeiro. Nas horas vagas,
contudo, auxiliava o enfermeiro Julião na limpeza da enfermaria. Julião, zeloso
de seu ofício, observava não só a validade dos medicamentos, mas também a
posologia, a composição e seus efeitos secundários. Dessarte, Feijó, através
de conversas informais com o profissional de saúde, passou a nutrir certo interesse
pelas informações disponibilizadas nas bulas dos medicamentos. Com o tempo, incorporou-se
ao vocabulário do taifeiro termos como bicarbonato de sódio, carbonato de
magnésio, lactose, amido, celulose microcristalina, dióxido de silício, dióxido
de titânio, fosfato de cálcio dibásico, estearato de magnésio,
polimetacrilicocopoliacrilato de etila, hidróxido de sódio, etc
.
Bem, em meio a toda esta Babel alopática,
destaca-se o saudável da coleção que nos foi legada por Feijó: Sabíeis que o
Biotônico Fontoura já tem mais de 100 anos? Que o Óleo de Fígado de Bacalhau é
amplamente utilizado como complemento alimentar nos países nórdicos e que é um
dos componentes da Emulsão Scott? Que, de início, o extrato de Cannabis trazia
estampado em seu rótulo o aviso “Veneno”? Não nos esqueçamos do Anapyon, do 1
Minuto, do Regulador Xavier, do Calcigenol Irradiado. E, neste momento, saudoso
faço-me para vos convidar a uma breve viagem no tempo. Vinde; tomai vossos
lugares! “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu
lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum
Creosotado”.
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