quarta-feira, 22 de maio de 2019

O Colecionador



Há que se fazer, de início, uma notável distinção dentre aqueles que se propõe a colecionar. Afinal, existem colecionadores e colecionadores, distinção esta presente em toda e qualquer atividade laboral e/ou profissional. No entanto, se de outro modo preferirdes, há colecionadores do bem e colecionadores do mal. Ora, assim como não podemos increpar a numismática ou a filatelia, não devemos cortejar a compulsão de Frederick Clegg, colecionador de borboletas, personagem de John Fowles no romance “O Colecionador”, onde este busca manter junto a si seu objeto contemplativo: a bela Miranda. É pertinente, inclusive, apontar - segundo a psicologia - o viés egoísta presente em alguns dos que têm o coligir por hábito. 
 
Evidente que não me reporto aos que colecionam revistas velhas, roupas antiquadas, carros antigos, máquinas obsoletas, etc., enfim, aos que demonstram serem aficionados pelo vetusto, isto porque o vetusto é histórico, é cultural. Tampouco dirijo-me aos acumuladores. Entretanto, como caracterizar uma estranha compulsão? Ora, por ser compulsão já soa de certo modo ... eu não diria estranho, mas atípico. E vos pergunto: como caracterizar aquele que coleciona bulas de remédios? Sim, exatamente isso: bulas de remédios! Percebei que dirigi-me a um único sujeito: “aquele”, pois que, parece-me, ser caso singular. Mas discorramos um pouco mais sobre semelhante talento. Ora, se colecionar é demonstrar certo fascínio pelo antigo, será que colecionar bulas de remédios antigos implicaria algum “saudosismo” pelas doenças antigas? Patético, direis vós em uníssono. No entanto, conheci um cidadão, já entrado em anos, que quando interpelado acerca do avanço da medicina, ele dizia a ostentar alguma vaidade: “Eu sou do tempo da galopante; H1N1 não me apavora”.

Mas Feijó, esse era o nome do nosso insólito personagem colecionador, desenvolvera tal faceta quando viajava na marinha mercante. Sua função a bordo era a de taifeiro. Nas horas vagas, contudo, auxiliava o enfermeiro Julião na limpeza da enfermaria. Julião, zeloso de seu ofício, observava não só a validade dos medicamentos, mas também a posologia, a composição e seus efeitos secundários. Dessarte, Feijó, através de conversas informais com o profissional de saúde, passou a nutrir certo interesse pelas informações disponibilizadas nas bulas dos medicamentos. Com o tempo, incorporou-se ao vocabulário do taifeiro termos como bicarbonato de sódio, carbonato de magnésio, lactose, amido, celulose microcristalina, dióxido de silício, dióxido de titânio, fosfato de cálcio dibásico, estearato de magnésio, polimetacrilicocopoliacrilato de etila, hidróxido de sódio, etc
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Bem, em meio a toda esta Babel alopática, destaca-se o saudável da coleção que nos foi legada por Feijó: Sabíeis que o Biotônico Fontoura já tem mais de 100 anos? Que o Óleo de Fígado de Bacalhau é amplamente utilizado como complemento alimentar nos países nórdicos e que é um dos componentes da Emulsão Scott? Que, de início, o extrato de Cannabis trazia estampado em seu rótulo o aviso “Veneno”? Não nos esqueçamos do Anapyon, do 1 Minuto, do Regulador Xavier, do Calcigenol Irradiado. E, neste momento, saudoso faço-me para vos convidar a uma breve viagem no tempo. Vinde; tomai vossos lugares! “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado”.    

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