quarta-feira, 17 de junho de 2020

Acidentes lexicais ou uma estética dos fonemas



Já sentistes o quão alguns termos de uma língua qualquer nos soa de modo agradável? Sim, é prazeroso não só ouvir, mas pronunciar alguns vocábulos, independentes dos verbetes a eles relacionados. Seria um fenômeno místico? Ou trata-se da estética dos fonemas? O português, língua sobre a qual tenho pretenso (o grifo é meu) domínio, não raras vezes arrebata-me em meio a uma simples frase, por conta de uma palavra que me soa de modo singular. Exemplo? Láudano. Percebestes? Além da beleza ínsita às proparoxítonas, algo mais torna-se manifesto. Não me refiro ao significado, apesar de que o mesmo pode servir de conforto aos desavisados: láudano é uma substância à base de ópio que acalma, alivia, seda. Contudo, a simples pronuncia já nos transmite sensação algo tranquilizadora. Seriam as palavras vinculadas às sensações por elas descritas?

Voltemo-nos, então, a outros idiomas. Antes porém, cabe aqui uma explicação: minha vida marítima, de certa forma, impôs-me a irresponsável obrigação de falar desajeitadamente vários idiomas. Foi assim com o espanhol, alemão, inglês, francês, japonês, servo-croata, russo, cantonês, etc. Se quiserdes, doravante chamai-me de canhestro poliglota. Na verdade, sinto-me como “O homem que falava javanês”. Teria sido eu a inspiração de Lima Barreto?  Prossigamos! No idioma alemão, sinto uma forte atração pelo termo “das Badezimmer”, isto é, o banheiro. Seria uma questão de afinidade ou algum tipo de crítica literária? No idioma francês, o termo voilà causa-me um prazer indizível, assim como o soledad do espanhol. Estai atentos: eu falo de fonemas.

É fato notório que o idioma inglês percute e repercute em todo o mundo hodierno. Quando vi-me compulsoriamente conduzido a ele (ao referido idioma), uma primeira palavra cativou-me por inteiro: entertainment. Agora imaginai o termo pronunciado não por Winston Churchill, John Wayne ou qualquer texano, mas por Anthony Hopkins, Jeromy Irons ou Sean Connery. Por puro diletantismo, elegi três palavras no idioma inglês que me provocam algo como um arrebatamento fonético. São elas: apologise, suddenly, jeopardize (não necessariamente nesta ordem). Pergunto: seria possível, a título de entertainment, reduzir a língua inglesa a estes três vocábulos? Minha veia poética incita-me a rimar apologise com jeopardize. E se algumas das possíveis leitoras criarem uma mínima expectativa em relação a este pretenso e novo Byron, eu, o improvisado bardo, vos responderia: I’m apologise, but suddenly I feel jeopardized!

Atenção: com boa vontade a licença poética justificaria quaisquer dos meus deslizes.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Farsa ou Tragédia



Em História do Cristianismo, obra organizada por Corbin, Alain Tallon diz-nos que: “Se a prática inquisitorial se revelou particularmente aterrorizante para a Europa da primeira modernidade, foi em razão de outros aspectos que não os desenvolvidos, às vezes de maneira fantasista [...]. O segredo do procedimento em que o acusado não conhece o delito que lhe é imputado (...)”.

Conseguis vós identificar alguma similaridade? Pois é, Alexandre de Moraes, em sua estupidez característica, dedica-se desavergonhadamente a fazer política partidária. Não, definitivamente não se trata de ideologia, pois ele não tem bagagem literária para isso. E nessa sua inadvertida e medonha parcialidade, ele sequer consegue ser original.  

Neste passo, seria bastante oportuna vossa observação no sentido de repreender-me, isto por ter comparado nossa realidade com o fim da Idade Média, início da Idade Moderna, vinculando, inclusive, nosso Supremo Tribunal Federal aos tribunais inquisitoriais. Data vênia, a comédia burlesca aqui desenvolvida pelo chistoso lupanar, que atende pela alcunha de STF, em muito se aproxima da trágica instituição que dizia combater o sectarismo religioso. Aqui o ministro e seus pares parecem, salvo melhor juízo, defender o sectarismo “politiqueiro”.

Mas continuemos, após este brevíssimo interlúdio: a título de informação, ocorre-me que o arremedo de ministro desconhece o mentor de toda a sua prosopopeia: Karl Marx já o dissera em o Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, “que a história se repete ou como farsa ou como tragédia”. Bem, o título de farsante Sua Excelência já não mais consegue ocultar; sua aparência e ruína estética também não conseguem maquiar a nata teratogenia.

domingo, 14 de junho de 2020

Outro lago, outros cisnes



Meu nome não é Siegfried, nem mesmo Odette. Príncipe? Eu? Nunca! Apenas um sujeito que conquistou desafetos, isto é, desagradou algum figurão dotado de poderes extramundanos. Sim, sem mover qualquer varinha, fazer uso de poções e/ou encantamentos, lançou ele sobre mim a transcendente maldição de habitar, por vezes, o corpo de um cisne. E por que o cisne, animal tão belo, de tanta graça e elegância? Simples: minha poesia desagradou; simboliza apenas o ridículo de existências vãs. Resta-me, portanto, escrever minha história nos breves momentos em que não estou à mercê das constantes metamorfoses. Passo grande parte dos dias e das noites travestido de cisne; sinto-me assim como Etienne Navarre em O Feitiço de Áquila. Infelizmente, não há fundo musical para semelhante roteiro; nem Tchaikovsky, Camille Saint Saens ou Sibelius poderia compô-lo. Também não há bailado; Maurice Bejart não seria capaz de imaginá-lo.

Mas antes mesmo de prosseguirmos, devo vos fornecer alguns dados significativos: Não habito, já que cisne, um lago qualquer. Ah, como eu gostaria que fosse o Campo de Santana, no Rio de Janeiro. Eu estaria perto de tudo: hospital, teatro, estação do Metro, VLT, da correria do centro da cidade, do relógio da Central do Brasil e da Saara. Eu desfrutaria de estúrdia companhia; ainda bem que efêmera. O lago que cumpro pena não teve origem nas lágrimas de muitas mães, mas na de diversos cidadãos decepcionados consigo mesmos e com seus muitos enganos. E o pior de tudo: o dito lago, sem receber sequer nome de batismo, situa-se em lugar distante, desértico, lúgubre... no recôndito. Perdoai-me o interregno, aproxima-se minha transformação.

I’m back! Sim, na condição de cisne, nado de lá para cá sem rumo, sem destino; ensaio alguns voos, como algumas plantinhas, algumas sementes. Costumam dizer que nós, os cisnes, vivemos em bando, mas eu não saberia dizer quantos elementos formam um bando. Afinal ali somos poucos, embora apenados a dividir destino similar. Em meu deslizar airoso, dentre meus pares, ouço vozes, vejo esgares, surpreendo queixumes, imprecações, juras, declarações de amor fadado ao fracasso... A sentenciar-me com tal maldição, olvidou-se o bruxo que essas impressões apuram ainda mais a visão caótica de uma humanidade em descensão.

A falar de minha maldição, temo que esta se estenda ad infinitum. Em meus textos, sombrios e abstratos dejetos, desagradei sobremodo no apontar falhas de caráteres, por criticar desvalores, por rebelar-me contra o cinismo, contra o desamor, por afastar-me da indiferença, da exacerbação do individualismo, da superficialidade... Minha pena só será extinta quando uma bela mulher, imune à sensibilidade por mim textualmente planeada, apaixonar-se pela autor que desliza elegante sobre as águas brandas de um lago remoto... sito apenas no âmago. Pergunto-vos: devo aguardar por minha Odette? Mais uma vez faz-se próxima a metamorfose...

A propósito, antes que o fenômeno tome corpo, devo confessar-vos: Em meus excrementos textuais e vocabulares, o que mais incomoda aos detratores - feiticeiros que condenaram-me à solidão - é o resgate de valores, o encômio à lucidez e o preito às antigas relações familiares.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A gratidão de Têmis



Senhoras e Senhores, certa estou de que não é prática comum deuses redigirem epístolas a seus súditos. No entanto, sinto-me tão comovida pelo respeito a mim demonstrado, pelo tanto que sou cultuada, que sentir-me-ia constrangida se não deixasse um registro de reconhecimento a este povo tão empenhado e zeloso em venerar-me os princípios. Sou uma Titã, filha de Gaia com meu irmão Urano. E não expresseis juízos de valor; tende sempre em mente que sou uma deusa, e entre deuses não há incesto. Casei-me com meu sobrinho Zeus, afinal ele representa o Poder. Dizei-me: De que modo poderia afirmar-me como Justiça sem o suporte e beneplácito do Poder? Sim, não fui a primeira esposa. Aliás, em geral, sempre sou deixada em segundo plano.

Meu sobrinho casou-se com Metis - a Astúcia, a Prudência - também minha sobrinha. Quando grávida, ele a devorou por inteiro. Passado algum tempo, Zeus veio a parir, espontaneamente, somente pela força de seu pensamento, a filha do casal, Palas Atena, a deusa da Sabedoria. Sim, o Poder deve nutrir-se da Astúcia, da Prudência, caso contrário será só Poder. Este é o único modo do Poder manifestar Sabedoria. Podeis perceber que minha genealogia é seletiva e atípica: aparento-me à Natureza, ao Tempo, à Astúcia, ao Poder e à Sabedoria. Não creiais, portanto, no discurso equivocado de um Sócrates que me submete às leis do Estado; também dizei não a seu discípulo Platão que fez de mim uma entidade metafísica. Tampouco levai à sério o aristocrata Aristóteles, posto que este fala em disposição de caráter e fez-me refém da Ética. Mas o pior de tudo é abdicar da vida de comodidades para sedimentar a Justiça como aqueles estoicos deslumbrados, submetendo-me à natureza.

Gente, eu represento um valor, Dikaiosýni; nada tenho de material. Sou a voz de um oráculo; aquele mesmo que em Delfos falou para o filho da parteira: “Conhece-te a ti mesmo”. Sim, mas os homens teimaram em conferir-me características ímpares: vendaram-me os olhos na tentativa de fazer-me imparcial. Como? O princípio religioso aponta a falha: seria um cego a guiar outros cegos; todos cairiam ladeira abaixo. Outrossim, fazem-me ostentar uma balança para demonstrar equilíbrio, ponderação. Esquecestes de que sou vinculada ao Poder, e o Poder cuida dos seus? Para completar obrigam-me a carregar uma espada representando força, coragem, ordem e regras a serem impostas. Não olvideis que as regras passam pelo crivo e pela interpretação de meus súditos fieis; ordens e regras serão ou não cumpridas. 

Nada obstante, apesar da minha invejável genealogia e brilhante Curriculum Vitae, um parente fez-se mais próximo de uns tempos para cá. Sim, meu primo rico, Plutão, hoje partilha meu dia-a-dia. E eu, ré confessa, confirmo que a plutocracia muito tem influenciado a mim e a meus pupilos. E quem não se deixaria arrebatar por tão lídimo companheiro nos dias de hoje?  Quereis casamento mais perfeito do que o realizado entre o Poder e a Riqueza? Logo, são baldas todas as acusações com intuito de desacreditarem os membros do Judiciário desta correta e imparcial nação. Foi-se o tempo de Justiniano, seu Corpus Juris Civilis e respectivo Digesto.

O Estado brasileiro tem muito que se orgulhar de seus representantes no poder judiciário, pois que estes primam pela integridade e lisura. Sinto-me deveras envaidecida ao ver tantos palácios exibirem em seus frontispícios o epígrafe Justiça. Sim, e que belas construções; quão soberbas as arquiteturas. Logo, as críticas - injustas, diga-se de passagem - que os ministros do Supremo Tribunal Federal vêm sofrendo, revelam apenas o despreparo e o intenso devaneio de uns poucos. O que pretendem eles? um Estado anárquico e antidemocrático? Suas Excelências estão sendo achincalhadas por conta da imensa dedicação, do incansável estudo e isenção com que têm emitido pareceres, prolatado sentenças, concedido liminares, relatado processos os mais variados, chefiado investigações, expedido mandados de busca e apreensão, intimado depoentes “debaixo de vara”.

Uma parte inexpressiva da população, o senso comum - pobres, deseducados - revolta-se com Suas Excelências porque eles têm salários compatíveis com o poder que exercem. Não são eleitos; são escolhidos. E são escolhidos porque melhores, os mais preparados, cultos, de inteligência privilegiada, detentores de notável saber jurídico. Somente eles são capazes das mais díspares interpretações deste complexo ordenamento jurídico tupiniquim. Sim, eles merecem as ditas mordomias. E porque misturarem-se ao povão baderneiro, inculto, despreparado? Outra ínfima parcela, caluniadores por excelência, acusam meus preclaros ministros e insignes representantes de estarem legislando. E por que não fazê-lo? Eles apenas colaboram com um Legislativo tão sobrecarregado. Quereis melhor exemplo de harmonia entre poderes do que este? E por que não adentrar a esfera do Executivo? Sim, ao sustarem um decreto presidencial, estão a evitar que este cometa equívocos, incorra em crimes de responsabilidade, etc.

Não só meus súditos ministros vêm sendo caluniados. Juízes de primeira instância, desembargadores, corregedores e procuradores estão sendo acusados de corrupção, venda de sentenças, de habeas corpus e de liminares. Ora bolas, insto por paciência! Por que tanta incompreensão? Porventura pensam os detratores estarem a viver em algum paraíso? Não cabe a eles julgar; isto não lhes é da alçada. Estariam incorrendo, no mínimo, em injúria preconceituosa quando aplicando a este caso o adágio popular de que “a ocasião faz o ladrão”. Estai vós outros cientes de que o direito, a ferramenta para promover Justiça, é arte. Se arte, por que não o surreal? Em suma, o que é o direito? O direito é a arte de tornar mais forte o argumento mais fraco. Se o argumento mais forte tiver origem em Plutão ... os pobres e os não apadrinhados que me perdoem. Convencei-vos de uma vez por todas: Deuses não existem para auxílio do povo! E este princípio se aplica também a semideuses, meus doutos representantes togados. Se de outro modo pensais, estais subsumidos a um sofrível pensamento retrô. Não percais de vista que, os que agem em meu nome, a Justiça, não prescindem do atributo humano. A vida a tudo relativiza. E aqui, recorro ao mais pragmático dos sofistas, Protágoras. “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, das que não são enquanto não são”.

Efcharistó!

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Ezequias



O dia e também a noite se arrastam; o tempo, o nosso tempo, evita fazer-se futuro assim como tornar-se passado. Somos apenas presente, ilhas, um arquipélago maçante, entediante. O isolamento social, o insulamento é aviltante e, quiçá, desnecessário. Vivemos o ápice de um desmando político-sanitário; o clima de insatisfação gerada pela incerteza e inépcia da administração. E como fugir desta agônica lacuna? A sétima arte cansou-se da insistente assistência; arrumações, faxinas e tudo o mais fez-se igualmente rotina. Sim, há livros. Busco romances, novelas, fantasias ... Tudo a ser lido e vivido sobre uma poltrona com ácaros.

Nem tudo é perdido. Sim, por que não? traz alento, conforto, ... a religião. A Bíblia, os relatos que a tantos incomodam. Por que será? Má consciência? Escrúpulos? Talvez preconceitos assimilados, introjetados? Outra vez pergunto-me: Por que não? Em seguida a desfolho; a princípio indolente, desleixado, negligente. Esperai! Talvez estas páginas atendam minhas aspirações, respondam minhas lucubrações. Ezequias! O segundo livro de Crônicas. A quem interessar possa, trata-se do capítulo trinta e dois. O rei da Judá prepara-se para resistir a Senaqueribe. Não, não só o desafio, o desacato, mas blasfemam e embotam ao Senhor. Os inimigos mostram-se vaidosos; são, de fato, arrogantes; atemorizam, ofendem ... Ezequias, então, ora a Deus, ... e o Senhor enviou um único anjo que destruiu cento e oitenta e cinco mil assírios.

Ergo os olhos da página. Estarrecido, suponho nos defrontar com outro, ou outros Senaqueribes. Não, não estou em Judá, não tenho pretensões a rei, tampouco sou judeu. Mas o inimigo mostra-se de modo similar, igualmente blasfemo, vaidoso, arrogante, implacável. Não, não são assírios, mas são muitos: uma legião. Eles querem nos dominar, invadir nossos lares, destruir nossas crenças, nossos valores, nossas famílias, nos escravizar. Então, de joelhos eu oro: Senhor, perdoai-me a pretensão! Não pertenço ao povo escolhido e sou neófito em termos de fé... Contudo, vinde em nosso socorro. Já não nos restam muitas escolhas. Estamos perdidos. Lançai sobre nós teu broquel protetor; pelejai pela nossa causa. Esse povo, por certo Vos louvará. Amém!

Naquela noite recolhi-me mais cedo na certeza de que minha prece não fora em vão. Sonhei! O anjo do Senhor lutara por nós. Não sei quantos infiéis, idólatras, sacrílegos ou apóstatas foram abatidos, mas dentre estes, independente de ideologias (direita, esquerda, centro, radicais ou moderados) foram mortos senadores, deputados federais, ministros do STF, governadores, deputados estaduais, juízes, prefeitos, vereadores, ex-presidentes, ex-governadores e grande parte da mídia que atende aos interesses da Nova Ordem Mundial.

Observações: A vós, que vos dedicais à prática de vincular adjetivos, talvez para provocar descrédito ou até mesmo anátema, ficam aqui alguns esclarecimentos:
a) Blasfêmia = dito ímpio ou insultante (ofensivo) contra o que se considera como sagrado; proposição dasarrazoada. Em nada insultei e certo estou de que meu texto espelha-se na razão, não é injusto e tem fundamento.
b) Ímpio = que ou quem é contra a religião; quem não respeita as coisas sagradas, sacrílego; quem ofende o que se considera digno de respeito. O texto não incorre em tal erro.
c) Heresia = divergência no tocante a fé ou a doutrina religiosa; opinião ou doutrina diferente das ideias recebidas. Também não é o caso.
d) Simonia = não comercializo com objetos sagrados ou bens espirituais; não sou nenhum mago.
e) Sacrílego = quem pratica ato profano contra coisas, pessoas ou lugares sagrados. Algo parecido?  
f) Apóstata = quem renuncia ou abandona crença religiosa. Também não é o caso.

Credunt!

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Arte e matemática



Primeiramente devemos buscar entender o que seria arte. Em desacordo com as várias tentativas filosóficas de definir e ou conceituar a arte, eu a vejo como algo tipicamente humano; seria a faculdade que alguns detêm para, através da percepção e emoções idiossincrásicas, criar objetos, textos, imagens ou sons, dotados de beleza, isto porque capazes de estimular certo interesse consciencial no espectador. Percebei que esta última oração, por acréscimo, vos fornece o objetivo da obra de arte.

E vós, tomados não só de mera curiosidade, perguntar-me-eis: Como a arte pode estimular o interesse em possíveis espectadores? Que dom é esse? Seria ele do orbe da arte mesma ou de quem a produz? Pois bem, as pessoas que se autodeclaram conhecedoras de arte, dizem-na a expressão maior da liberdade. Pergunto-lhes em contrapartida: Seria isso o suficiente? Afinal, o termo arte tem origem no latim, que significa técnica, habilidade. No idioma grego diz-se teckné. A liberdade seria capaz de suprir tal requisito, isto é, a técnica e a habilidade?

Nada obstante, uma outra corrente bem em destaque no mundo hodierno, o psicologismo, fala que arte é catarse. Creio que estes preclaros amantes da arte confundiram o enunciado aristotélico. Diz-nos Aristóteles, em sua obra, a Poética, que a arte deve provocar catarse, ou seja proporcionar algo como uma purificação nos espectadores. A criação da obra de arte não é processo originado simplesmente da catarse. O termo provém do grego kátharsis, entendido como um tipo de libertação psíquica. Pelo ponto de vista da psicanálise, podemos entender que a arte, pode provocar, através da catarse, a liberação de emoções ou sentimentos reprimidos nos observadores. 

Eis a beleza da arte: interação entre o artista e possíveis observadores. A beleza reside exatamente na reciprocidade; o sentimento que motivou o artista foi captado pelo espectador. Em face do exposto, clamo vossa atenção para: a) unicamente uma possível catarse do autor não é suficiente para provocar a catarse no observador; b) já que arte proporciona liberação de emoções e/ou sentimentos, o artista é responsável por sua criação. Teria a dita manifestação da liberdade vínculo com a responsabilidade?  

Então vós, certamente, podeis ainda questionar-me: Que critérios seriam esses a serem atendidos pelos artistas, autores, compositores, para que o objetivo da arte fosse alcançado? Bem, vimos acima que o termo arte, originado dos idiomas grego e latino, tinha como significação a técnica, a habilidade. Logo, por inferência, podemos entender que a arte pode ser ensinada. E mais uma vez estou inclinado a vos provocar: Seria o ensino da técnica e o exercício da habilidade suficientes para se “criar” um bom artista, autor, compositor, etc.? Evidente que não. Faz-se necessário ainda a sensibilidade, a boa disposição de ânimo, o bom caráter.

No entanto isso ainda não responde vossa pergunta. Vejamos, a obra de arte para ser considerada, pelo menos agradável, deve ter como supedâneo a matemática. Não, não vos exalteis. Tende calma. Explicar-me-ei. Conheceis o Quadrivium? Trata-se de o conjunto de quatro matérias ensinada nas universidades na Idade Média. A pergunta: Por que seriam ensinadas concomitantemente a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música? Arte e matemática juntas? Aristóteles pode nos responder: “A Beleza é, de fato, o objeto principal do raciocínio e das demonstrações matemáticas”.

A música tonal, intrépidos leitores, é formada por: melodia, harmonia e ritmo. Ora, a harmonia e o ritmo têm como base a matemática. Eu poderia citar-vos Pitágoras: “O Cosmo, o universo organizado, é regido por relações matemáticas”. Perdoai-me a insistência, mas alguém discordaria da beleza do universo? O mesmo Pitágoras nos dirá que a divina proporção ou proporção áurea, 1,618 é padrão de estética e beleza. As proposições constantes nos Elementos de Euclides, um grande matemático, nos Livros I a IV, que discorrem acerca de pontos, linhas retas, círculos, quadrados, triângulos, ângulos retos e retângulos, demonstra que estas são as formas estáveis da arte e da arquitetura. George Sarton, historiador da ciência, a falar sobre Os Elementos de Euclides, declarou: “criou um monumento que é tão maravilhoso em sua simetria, beleza interior e clareza como o Partenon, mas incomparavelmente mais complexo e durável”.

Voltemo-nos agora às artes plásticas e a poesia. Nas palavras de Hardy: “O matemático, tal como o pintor ou o poeta, é uma criador de padrões. Um pintor faz padrões com formas e cores, um poeta com palavras e o matemático com ideias. Todos os padrões devem ser belos. As ideias, tal como as cores, as palavras ou sons, devem ajustar-se de forma perfeita e harmoniosa”. Na poesia, a métrica é pura matemática. A poetisa Edna St. Vincent Millay, em um de seus poemas, declarou: “Só Euclides vislumbrou a Beleza nua”.

Até mesmo a ciência jurídica, desde que exercida com seriedade, integridade e isenção, pode ser entendida como arte. Há um brocardo latino que busca definir o que seja Direito Civil. Ei-lo: “Ius est ars boni et aequi”, isto é, o direito é a arte do bom (bem) e do justo (equitativo). Ao entender-se o justo, a justiça como como equilíbrio, haja vista a balança exibida por Têmis, percebe-se que no equilíbrio está implícita uma relação matemática, a partir da qual a ciência jurídica, quando bem praticada, revela-se como arte. 

Ao falar de teatro, ouso também pautar-me em Aristóteles, pois segundo o pensador, o teatro tem que ser capaz de libertar o ser humano, pois este, ao ver as paixões representadas, deve conseguir delas se libertar. Assim como no teatro, a sétima arte, o cinema, tem que ser capaz de emocionar, agradar. Eis a beleza, a catarse, a purgação provocada no público durante as apresentações. A arte, portanto, antes de tudo, deve servir de alento, emprestar ânimo, coragem. 

E uma última questão se nos revela intempestiva: Já que a arte tem como escopo agraciar seus admiradores com um novo fôlego e/ou vigor, subentende-se que ela deva interferir na realidade dos que a cultuam. Então, onde o autor deve buscar sua fonte de inspiração? Bem, ao verdadeiro talento não se deve impor limites, afinal trata-se de talento. Contudo, a criação artística, já que tem origem em observação particularizada, subjetiva, com pretensões a tornar-se objetiva, traz o cunho da idealidade. Sim, mostrar apenas o mundo real não interfere na realidade; essa seria a função do jornalista. Somente o ideal pode interferir e transformar o real. E, para justificar meu entendimento, lanço, a título de metáfora, a afirmação do grande matemático, físico, engenheiro, astrônomo e inventor Arquimedes. Disse-nos ele: “Dai-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo”. A alavanca seria a arte, o ponto de apoio a circunstância ideal e o mundo a realidade.   

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Dádivas



Minha memória, atualmente, quase que de modo constante, remete à adolescência. E lá me reencontro: magro, alguma astúcia e ares de sonhador. Bem, ao se falar em adolescentes, sei que é contumaz o uso da generalização, mas não pretendo fazê-lo, porque assim eu estaria tentando partilhar com outros as responsabilidades de minhas ações. E foram essas - as consequências das minhas atitudes - as preocupações de meu pai. Todavia, com sua maneira ímpar de educar, já passada a fase do chinelo, papai contava histórias que dizia terem sido a ele contadas e/ou por ele vivenciadas. Hoje, no entanto, ocorreu-me que fazia uso de um outro recurso: os presentes.

No início da adolescência, creio que antes dos treze anos, recebi, como presente de Natal, uma bússola. Confesso que fiquei maravilhado, afinal era uma bússola de verdade, em estojo de metal com tampa que basculava. Lembro-me do sucesso atingido junto aos colegas de turma no ginásio. O brinde fez, inclusive, com que me voltasse mais ao estudos, afinal eu precisava dominar o assunto para cada vez mais angariar respeito e admiração. E o aparelho era tratado com muito cuidado; quando transportado, eu o fazia com atenção redobrada.

No ano seguinte, não sei ao certo, recebi outro presente: uma luneta. Não, a finalidade não era estabelecer qualquer concorrência entre os brindes, mas provocar sempre mais e mais o desejo de aprender, o crescimento intelectual. Bem, como recebera ordem expressa de não retirar a luneta de casa, até porque o transporte da mesma era dificultoso, acolhia amiúde visitas dos colegas de classe nos fins de semana. O sucesso também foi retumbante; não só entre os rapazes, mas também entre as moças que passaram a olhar-me com um certo e então ainda indefinido brilho no olhar. Eu, contaminado não só por semblantes maravilhados, mas também por boa dose de vaidade, deixa-me discorrer sobre os mares da Lua.

Bem, os brindes não só fizeram de mim um aluno interessado, mas também alguém muito popular. E essa popularidade levou-me a ingressar na banda do colégio. Desnecessário falar que, depois de amealhar quantia suficiente, papai comprou-me o instrumento: um trompete! E lá estava eu a solar o Hino Nacional quando na banda marcial e, nas horas vagas, a tocar boleros, blues, sambas-canções, marchinhas de carnaval, etc. Não obstante, esse sucesso não me fez bem. Vaidade de vaidades, diria Salomão em seu Eclesiastes. Perdi-me, meu ego em muito ultrapassou-me. Aquela, poder-se-ia dizer, minha catástrofe particular, levou-me a abandonar o colégio.

Contudo, não fora esse o objetivo de meu pai. As ferramentas para meu crescimento me foram oferecidas; eu não as soube aproveitar; eu as desvirtuei. E o arrependimento, esse companheiro implacável dos insensatos, usou de seu guante para asfixiar-me. Retomadas se fizeram necessárias; resgates ingentes se revelaram. E assim foi feito. Porém, conhecendo bem o meu pai e com a experiência me facultada pelos anos, posso vos afiançar que os objetos a mim doados não eram simples presentes, mas dádivas. E aqui estabeleço a diferença: o presente é um brinde que tem como finalidade agradar o presenteado; a dádiva vai mais além, ela assume o papel de legado, pois transmite algo que transcende o objeto em si.

Sim, a bússola não se resumia a agulha magnética para indicar o norte; aquela bússola proporcionava-me a escolha de um rumo, uma orientação. Que circunstâncias, que valores me nortearam então? A luneta, por sua vez, não ficava adstrita a observação dos astros; o telescópio deveria colocar-me em contato com uma realidade extramundana, com uma dimensão que ia além da materialidade do mundo; na verdade, com a idealidade. Parece que, a mundanidade de então corrompera-me. E o instrumento? Por que a música? Sim, não só a música, mas as artes em geral têm como objeto arrancar-nos do real e lançar-nos numa dimensão alentadora. A arte é isso: é ferramenta para encorajar, acalentar, confortar. E se não fosse pelo ânimo proporcionado pela arte, eu não teria realizado qualquer correção de rumo, não teria adentrado a esfera do ideal e não me sentiria ditoso por ter convivido com meu pai.