quarta-feira, 10 de junho de 2020

A gratidão de Têmis



Senhoras e Senhores, certa estou de que não é prática comum deuses redigirem epístolas a seus súditos. No entanto, sinto-me tão comovida pelo respeito a mim demonstrado, pelo tanto que sou cultuada, que sentir-me-ia constrangida se não deixasse um registro de reconhecimento a este povo tão empenhado e zeloso em venerar-me os princípios. Sou uma Titã, filha de Gaia com meu irmão Urano. E não expresseis juízos de valor; tende sempre em mente que sou uma deusa, e entre deuses não há incesto. Casei-me com meu sobrinho Zeus, afinal ele representa o Poder. Dizei-me: De que modo poderia afirmar-me como Justiça sem o suporte e beneplácito do Poder? Sim, não fui a primeira esposa. Aliás, em geral, sempre sou deixada em segundo plano.

Meu sobrinho casou-se com Metis - a Astúcia, a Prudência - também minha sobrinha. Quando grávida, ele a devorou por inteiro. Passado algum tempo, Zeus veio a parir, espontaneamente, somente pela força de seu pensamento, a filha do casal, Palas Atena, a deusa da Sabedoria. Sim, o Poder deve nutrir-se da Astúcia, da Prudência, caso contrário será só Poder. Este é o único modo do Poder manifestar Sabedoria. Podeis perceber que minha genealogia é seletiva e atípica: aparento-me à Natureza, ao Tempo, à Astúcia, ao Poder e à Sabedoria. Não creiais, portanto, no discurso equivocado de um Sócrates que me submete às leis do Estado; também dizei não a seu discípulo Platão que fez de mim uma entidade metafísica. Tampouco levai à sério o aristocrata Aristóteles, posto que este fala em disposição de caráter e fez-me refém da Ética. Mas o pior de tudo é abdicar da vida de comodidades para sedimentar a Justiça como aqueles estoicos deslumbrados, submetendo-me à natureza.

Gente, eu represento um valor, Dikaiosýni; nada tenho de material. Sou a voz de um oráculo; aquele mesmo que em Delfos falou para o filho da parteira: “Conhece-te a ti mesmo”. Sim, mas os homens teimaram em conferir-me características ímpares: vendaram-me os olhos na tentativa de fazer-me imparcial. Como? O princípio religioso aponta a falha: seria um cego a guiar outros cegos; todos cairiam ladeira abaixo. Outrossim, fazem-me ostentar uma balança para demonstrar equilíbrio, ponderação. Esquecestes de que sou vinculada ao Poder, e o Poder cuida dos seus? Para completar obrigam-me a carregar uma espada representando força, coragem, ordem e regras a serem impostas. Não olvideis que as regras passam pelo crivo e pela interpretação de meus súditos fieis; ordens e regras serão ou não cumpridas. 

Nada obstante, apesar da minha invejável genealogia e brilhante Curriculum Vitae, um parente fez-se mais próximo de uns tempos para cá. Sim, meu primo rico, Plutão, hoje partilha meu dia-a-dia. E eu, ré confessa, confirmo que a plutocracia muito tem influenciado a mim e a meus pupilos. E quem não se deixaria arrebatar por tão lídimo companheiro nos dias de hoje?  Quereis casamento mais perfeito do que o realizado entre o Poder e a Riqueza? Logo, são baldas todas as acusações com intuito de desacreditarem os membros do Judiciário desta correta e imparcial nação. Foi-se o tempo de Justiniano, seu Corpus Juris Civilis e respectivo Digesto.

O Estado brasileiro tem muito que se orgulhar de seus representantes no poder judiciário, pois que estes primam pela integridade e lisura. Sinto-me deveras envaidecida ao ver tantos palácios exibirem em seus frontispícios o epígrafe Justiça. Sim, e que belas construções; quão soberbas as arquiteturas. Logo, as críticas - injustas, diga-se de passagem - que os ministros do Supremo Tribunal Federal vêm sofrendo, revelam apenas o despreparo e o intenso devaneio de uns poucos. O que pretendem eles? um Estado anárquico e antidemocrático? Suas Excelências estão sendo achincalhadas por conta da imensa dedicação, do incansável estudo e isenção com que têm emitido pareceres, prolatado sentenças, concedido liminares, relatado processos os mais variados, chefiado investigações, expedido mandados de busca e apreensão, intimado depoentes “debaixo de vara”.

Uma parte inexpressiva da população, o senso comum - pobres, deseducados - revolta-se com Suas Excelências porque eles têm salários compatíveis com o poder que exercem. Não são eleitos; são escolhidos. E são escolhidos porque melhores, os mais preparados, cultos, de inteligência privilegiada, detentores de notável saber jurídico. Somente eles são capazes das mais díspares interpretações deste complexo ordenamento jurídico tupiniquim. Sim, eles merecem as ditas mordomias. E porque misturarem-se ao povão baderneiro, inculto, despreparado? Outra ínfima parcela, caluniadores por excelência, acusam meus preclaros ministros e insignes representantes de estarem legislando. E por que não fazê-lo? Eles apenas colaboram com um Legislativo tão sobrecarregado. Quereis melhor exemplo de harmonia entre poderes do que este? E por que não adentrar a esfera do Executivo? Sim, ao sustarem um decreto presidencial, estão a evitar que este cometa equívocos, incorra em crimes de responsabilidade, etc.

Não só meus súditos ministros vêm sendo caluniados. Juízes de primeira instância, desembargadores, corregedores e procuradores estão sendo acusados de corrupção, venda de sentenças, de habeas corpus e de liminares. Ora bolas, insto por paciência! Por que tanta incompreensão? Porventura pensam os detratores estarem a viver em algum paraíso? Não cabe a eles julgar; isto não lhes é da alçada. Estariam incorrendo, no mínimo, em injúria preconceituosa quando aplicando a este caso o adágio popular de que “a ocasião faz o ladrão”. Estai vós outros cientes de que o direito, a ferramenta para promover Justiça, é arte. Se arte, por que não o surreal? Em suma, o que é o direito? O direito é a arte de tornar mais forte o argumento mais fraco. Se o argumento mais forte tiver origem em Plutão ... os pobres e os não apadrinhados que me perdoem. Convencei-vos de uma vez por todas: Deuses não existem para auxílio do povo! E este princípio se aplica também a semideuses, meus doutos representantes togados. Se de outro modo pensais, estais subsumidos a um sofrível pensamento retrô. Não percais de vista que, os que agem em meu nome, a Justiça, não prescindem do atributo humano. A vida a tudo relativiza. E aqui, recorro ao mais pragmático dos sofistas, Protágoras. “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, das que não são enquanto não são”.

Efcharistó!

Nenhum comentário:

Postar um comentário