Senhoras e Senhores, certa estou de
que não é prática comum deuses redigirem epístolas a seus súditos. No entanto,
sinto-me tão comovida pelo respeito a mim demonstrado, pelo tanto que sou
cultuada, que sentir-me-ia constrangida se não deixasse um registro de
reconhecimento a este povo tão empenhado e zeloso em venerar-me os princípios. Sou
uma Titã, filha de Gaia com meu irmão Urano. E não expresseis juízos de valor;
tende sempre em mente que sou uma deusa, e entre deuses não há incesto. Casei-me
com meu sobrinho Zeus, afinal ele representa o Poder. Dizei-me: De que modo
poderia afirmar-me como Justiça sem o suporte e beneplácito do Poder? Sim, não
fui a primeira esposa. Aliás, em geral, sempre sou deixada em segundo plano.
Meu sobrinho casou-se com Metis - a
Astúcia, a Prudência - também minha sobrinha. Quando grávida, ele a devorou por
inteiro. Passado algum tempo, Zeus veio a parir, espontaneamente, somente pela
força de seu pensamento, a filha do casal, Palas Atena, a deusa da Sabedoria.
Sim, o Poder deve nutrir-se da Astúcia, da Prudência, caso contrário será só
Poder. Este é o único modo do Poder manifestar Sabedoria. Podeis perceber que
minha genealogia é seletiva e atípica: aparento-me à Natureza, ao Tempo, à Astúcia,
ao Poder e à Sabedoria. Não creiais, portanto, no discurso equivocado de um
Sócrates que me submete às leis do Estado; também dizei não a seu discípulo
Platão que fez de mim uma entidade metafísica. Tampouco levai à sério o aristocrata
Aristóteles, posto que este fala em disposição de caráter e fez-me refém da
Ética. Mas o pior de tudo é abdicar da vida de comodidades para sedimentar a
Justiça como aqueles estoicos deslumbrados, submetendo-me à natureza.
Gente, eu represento um valor,
Dikaiosýni; nada tenho de material. Sou a voz de um oráculo; aquele mesmo que
em Delfos falou para o filho da parteira: “Conhece-te a ti mesmo”. Sim, mas os
homens teimaram em conferir-me características ímpares: vendaram-me os olhos na
tentativa de fazer-me imparcial. Como? O princípio religioso aponta a falha:
seria um cego a guiar outros cegos; todos cairiam ladeira abaixo. Outrossim,
fazem-me ostentar uma balança para demonstrar equilíbrio, ponderação.
Esquecestes de que sou vinculada ao Poder, e o Poder cuida dos seus? Para
completar obrigam-me a carregar uma espada representando força, coragem, ordem
e regras a serem impostas. Não olvideis que as regras passam pelo crivo e pela
interpretação de meus súditos fieis; ordens e regras serão ou não cumpridas.
Nada obstante, apesar da minha
invejável genealogia e brilhante Curriculum Vitae, um parente fez-se mais
próximo de uns tempos para cá. Sim, meu primo rico, Plutão, hoje partilha meu
dia-a-dia. E eu, ré confessa, confirmo que a plutocracia muito tem influenciado
a mim e a meus pupilos. E quem não se deixaria arrebatar por tão lídimo
companheiro nos dias de hoje? Quereis
casamento mais perfeito do que o realizado entre o Poder e a Riqueza? Logo, são
baldas todas as acusações com intuito de desacreditarem os membros do
Judiciário desta correta e imparcial nação. Foi-se o tempo de Justiniano, seu
Corpus Juris Civilis e respectivo Digesto.
O Estado brasileiro tem muito que se
orgulhar de seus representantes no poder judiciário, pois que estes primam pela
integridade e lisura. Sinto-me deveras envaidecida ao ver tantos palácios
exibirem em seus frontispícios o epígrafe Justiça. Sim, e que belas
construções; quão soberbas as arquiteturas. Logo, as críticas - injustas,
diga-se de passagem - que os ministros do Supremo Tribunal Federal vêm sofrendo,
revelam apenas o despreparo e o intenso devaneio de uns poucos. O que pretendem
eles? um Estado anárquico e antidemocrático? Suas Excelências estão sendo
achincalhadas por conta da imensa dedicação, do incansável estudo e isenção com
que têm emitido pareceres, prolatado sentenças, concedido liminares, relatado processos
os mais variados, chefiado investigações, expedido mandados de busca e
apreensão, intimado depoentes “debaixo de vara”.
Uma parte inexpressiva da população, o
senso comum - pobres, deseducados - revolta-se com Suas Excelências porque eles
têm salários compatíveis com o poder que exercem. Não são eleitos; são
escolhidos. E são escolhidos porque melhores, os mais preparados, cultos, de
inteligência privilegiada, detentores de notável saber jurídico. Somente eles
são capazes das mais díspares interpretações deste complexo ordenamento
jurídico tupiniquim. Sim, eles merecem as ditas mordomias. E porque
misturarem-se ao povão baderneiro, inculto, despreparado? Outra ínfima parcela,
caluniadores por excelência, acusam meus preclaros ministros e insignes representantes
de estarem legislando. E por que não fazê-lo? Eles apenas colaboram com um
Legislativo tão sobrecarregado. Quereis melhor exemplo de harmonia entre
poderes do que este? E por que não adentrar a esfera do Executivo? Sim, ao
sustarem um decreto presidencial, estão a evitar que este cometa equívocos,
incorra em crimes de responsabilidade, etc.
Não só meus súditos ministros vêm
sendo caluniados. Juízes de primeira instância, desembargadores, corregedores e
procuradores estão sendo acusados de corrupção, venda de sentenças, de habeas
corpus e de liminares. Ora bolas, insto por paciência! Por que tanta incompreensão?
Porventura pensam os detratores estarem a viver em algum paraíso? Não cabe a
eles julgar; isto não lhes é da alçada. Estariam incorrendo, no mínimo, em
injúria preconceituosa quando aplicando a este caso o adágio popular de que “a
ocasião faz o ladrão”. Estai vós outros cientes de que o direito, a ferramenta para
promover Justiça, é arte. Se arte, por que não o surreal? Em suma, o que é o
direito? O direito é a arte de tornar mais forte o argumento mais fraco. Se o
argumento mais forte tiver origem em Plutão ... os pobres e os não apadrinhados
que me perdoem. Convencei-vos de uma vez por todas: Deuses não existem para
auxílio do povo! E este princípio se aplica também a semideuses, meus doutos
representantes togados. Se de outro modo pensais, estais subsumidos a um sofrível
pensamento retrô. Não percais de vista que, os que agem em meu nome, a Justiça,
não prescindem do atributo humano. A vida a tudo relativiza. E aqui, recorro ao
mais pragmático dos sofistas, Protágoras. “O homem é a medida de todas as
coisas, das que são enquanto são, das que não são enquanto não são”.
Efcharistó!
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