segunda-feira, 1 de junho de 2020

Dádivas



Minha memória, atualmente, quase que de modo constante, remete à adolescência. E lá me reencontro: magro, alguma astúcia e ares de sonhador. Bem, ao se falar em adolescentes, sei que é contumaz o uso da generalização, mas não pretendo fazê-lo, porque assim eu estaria tentando partilhar com outros as responsabilidades de minhas ações. E foram essas - as consequências das minhas atitudes - as preocupações de meu pai. Todavia, com sua maneira ímpar de educar, já passada a fase do chinelo, papai contava histórias que dizia terem sido a ele contadas e/ou por ele vivenciadas. Hoje, no entanto, ocorreu-me que fazia uso de um outro recurso: os presentes.

No início da adolescência, creio que antes dos treze anos, recebi, como presente de Natal, uma bússola. Confesso que fiquei maravilhado, afinal era uma bússola de verdade, em estojo de metal com tampa que basculava. Lembro-me do sucesso atingido junto aos colegas de turma no ginásio. O brinde fez, inclusive, com que me voltasse mais ao estudos, afinal eu precisava dominar o assunto para cada vez mais angariar respeito e admiração. E o aparelho era tratado com muito cuidado; quando transportado, eu o fazia com atenção redobrada.

No ano seguinte, não sei ao certo, recebi outro presente: uma luneta. Não, a finalidade não era estabelecer qualquer concorrência entre os brindes, mas provocar sempre mais e mais o desejo de aprender, o crescimento intelectual. Bem, como recebera ordem expressa de não retirar a luneta de casa, até porque o transporte da mesma era dificultoso, acolhia amiúde visitas dos colegas de classe nos fins de semana. O sucesso também foi retumbante; não só entre os rapazes, mas também entre as moças que passaram a olhar-me com um certo e então ainda indefinido brilho no olhar. Eu, contaminado não só por semblantes maravilhados, mas também por boa dose de vaidade, deixa-me discorrer sobre os mares da Lua.

Bem, os brindes não só fizeram de mim um aluno interessado, mas também alguém muito popular. E essa popularidade levou-me a ingressar na banda do colégio. Desnecessário falar que, depois de amealhar quantia suficiente, papai comprou-me o instrumento: um trompete! E lá estava eu a solar o Hino Nacional quando na banda marcial e, nas horas vagas, a tocar boleros, blues, sambas-canções, marchinhas de carnaval, etc. Não obstante, esse sucesso não me fez bem. Vaidade de vaidades, diria Salomão em seu Eclesiastes. Perdi-me, meu ego em muito ultrapassou-me. Aquela, poder-se-ia dizer, minha catástrofe particular, levou-me a abandonar o colégio.

Contudo, não fora esse o objetivo de meu pai. As ferramentas para meu crescimento me foram oferecidas; eu não as soube aproveitar; eu as desvirtuei. E o arrependimento, esse companheiro implacável dos insensatos, usou de seu guante para asfixiar-me. Retomadas se fizeram necessárias; resgates ingentes se revelaram. E assim foi feito. Porém, conhecendo bem o meu pai e com a experiência me facultada pelos anos, posso vos afiançar que os objetos a mim doados não eram simples presentes, mas dádivas. E aqui estabeleço a diferença: o presente é um brinde que tem como finalidade agradar o presenteado; a dádiva vai mais além, ela assume o papel de legado, pois transmite algo que transcende o objeto em si.

Sim, a bússola não se resumia a agulha magnética para indicar o norte; aquela bússola proporcionava-me a escolha de um rumo, uma orientação. Que circunstâncias, que valores me nortearam então? A luneta, por sua vez, não ficava adstrita a observação dos astros; o telescópio deveria colocar-me em contato com uma realidade extramundana, com uma dimensão que ia além da materialidade do mundo; na verdade, com a idealidade. Parece que, a mundanidade de então corrompera-me. E o instrumento? Por que a música? Sim, não só a música, mas as artes em geral têm como objeto arrancar-nos do real e lançar-nos numa dimensão alentadora. A arte é isso: é ferramenta para encorajar, acalentar, confortar. E se não fosse pelo ânimo proporcionado pela arte, eu não teria realizado qualquer correção de rumo, não teria adentrado a esfera do ideal e não me sentiria ditoso por ter convivido com meu pai. 

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