Meu nome não é Siegfried, nem mesmo
Odette. Príncipe? Eu? Nunca! Apenas um sujeito que conquistou desafetos, isto
é, desagradou algum figurão dotado de poderes extramundanos. Sim, sem mover
qualquer varinha, fazer uso de poções e/ou encantamentos, lançou ele sobre mim
a transcendente maldição de habitar, por vezes, o corpo de um cisne. E por que
o cisne, animal tão belo, de tanta graça e elegância? Simples: minha poesia
desagradou; simboliza apenas o ridículo de existências vãs. Resta-me, portanto,
escrever minha história nos breves momentos em que não estou à mercê das
constantes metamorfoses. Passo grande parte dos dias e das noites travestido de
cisne; sinto-me assim como Etienne Navarre em O Feitiço de Áquila. Infelizmente,
não há fundo musical para semelhante roteiro; nem Tchaikovsky, Camille Saint
Saens ou Sibelius poderia compô-lo. Também não há bailado; Maurice Bejart não seria
capaz de imaginá-lo.
Mas antes mesmo de prosseguirmos, devo
vos fornecer alguns dados significativos: Não habito, já que cisne, um lago
qualquer. Ah, como eu gostaria que fosse o Campo de Santana, no Rio de Janeiro.
Eu estaria perto de tudo: hospital, teatro, estação do Metro, VLT, da correria
do centro da cidade, do relógio da Central do Brasil e da Saara. Eu desfrutaria
de estúrdia companhia; ainda bem que efêmera. O lago que cumpro pena não teve
origem nas lágrimas de muitas mães, mas na de diversos cidadãos decepcionados
consigo mesmos e com seus muitos enganos. E o pior de tudo: o dito lago, sem
receber sequer nome de batismo, situa-se em lugar distante, desértico,
lúgubre... no recôndito. Perdoai-me o interregno, aproxima-se minha
transformação.
I’m
back! Sim, na
condição de cisne, nado de lá para cá sem rumo, sem destino; ensaio alguns voos,
como algumas plantinhas, algumas sementes. Costumam dizer que nós, os cisnes,
vivemos em bando, mas eu não saberia dizer quantos elementos formam um bando.
Afinal ali somos poucos, embora apenados a dividir destino similar. Em meu
deslizar airoso, dentre meus pares, ouço vozes, vejo esgares, surpreendo
queixumes, imprecações, juras, declarações de amor fadado ao fracasso... A
sentenciar-me com tal maldição, olvidou-se o bruxo que essas impressões apuram
ainda mais a visão caótica de uma humanidade em descensão.
A falar de minha maldição, temo que
esta se estenda ad infinitum. Em meus
textos, sombrios e abstratos dejetos, desagradei sobremodo no apontar falhas de
caráteres, por criticar desvalores, por rebelar-me contra o cinismo, contra o
desamor, por afastar-me da indiferença, da exacerbação do individualismo, da
superficialidade... Minha pena só será extinta quando uma bela mulher, imune à
sensibilidade por mim textualmente planeada, apaixonar-se pela autor que desliza
elegante sobre as águas brandas de um lago remoto... sito apenas no âmago. Pergunto-vos:
devo aguardar por minha Odette? Mais uma vez faz-se próxima a metamorfose...
A propósito, antes que o fenômeno tome
corpo, devo confessar-vos: Em meus excrementos textuais e vocabulares, o que
mais incomoda aos detratores - feiticeiros que condenaram-me à solidão -
é o resgate de valores, o encômio à lucidez e o preito às antigas relações
familiares.
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