domingo, 14 de junho de 2020

Outro lago, outros cisnes



Meu nome não é Siegfried, nem mesmo Odette. Príncipe? Eu? Nunca! Apenas um sujeito que conquistou desafetos, isto é, desagradou algum figurão dotado de poderes extramundanos. Sim, sem mover qualquer varinha, fazer uso de poções e/ou encantamentos, lançou ele sobre mim a transcendente maldição de habitar, por vezes, o corpo de um cisne. E por que o cisne, animal tão belo, de tanta graça e elegância? Simples: minha poesia desagradou; simboliza apenas o ridículo de existências vãs. Resta-me, portanto, escrever minha história nos breves momentos em que não estou à mercê das constantes metamorfoses. Passo grande parte dos dias e das noites travestido de cisne; sinto-me assim como Etienne Navarre em O Feitiço de Áquila. Infelizmente, não há fundo musical para semelhante roteiro; nem Tchaikovsky, Camille Saint Saens ou Sibelius poderia compô-lo. Também não há bailado; Maurice Bejart não seria capaz de imaginá-lo.

Mas antes mesmo de prosseguirmos, devo vos fornecer alguns dados significativos: Não habito, já que cisne, um lago qualquer. Ah, como eu gostaria que fosse o Campo de Santana, no Rio de Janeiro. Eu estaria perto de tudo: hospital, teatro, estação do Metro, VLT, da correria do centro da cidade, do relógio da Central do Brasil e da Saara. Eu desfrutaria de estúrdia companhia; ainda bem que efêmera. O lago que cumpro pena não teve origem nas lágrimas de muitas mães, mas na de diversos cidadãos decepcionados consigo mesmos e com seus muitos enganos. E o pior de tudo: o dito lago, sem receber sequer nome de batismo, situa-se em lugar distante, desértico, lúgubre... no recôndito. Perdoai-me o interregno, aproxima-se minha transformação.

I’m back! Sim, na condição de cisne, nado de lá para cá sem rumo, sem destino; ensaio alguns voos, como algumas plantinhas, algumas sementes. Costumam dizer que nós, os cisnes, vivemos em bando, mas eu não saberia dizer quantos elementos formam um bando. Afinal ali somos poucos, embora apenados a dividir destino similar. Em meu deslizar airoso, dentre meus pares, ouço vozes, vejo esgares, surpreendo queixumes, imprecações, juras, declarações de amor fadado ao fracasso... A sentenciar-me com tal maldição, olvidou-se o bruxo que essas impressões apuram ainda mais a visão caótica de uma humanidade em descensão.

A falar de minha maldição, temo que esta se estenda ad infinitum. Em meus textos, sombrios e abstratos dejetos, desagradei sobremodo no apontar falhas de caráteres, por criticar desvalores, por rebelar-me contra o cinismo, contra o desamor, por afastar-me da indiferença, da exacerbação do individualismo, da superficialidade... Minha pena só será extinta quando uma bela mulher, imune à sensibilidade por mim textualmente planeada, apaixonar-se pela autor que desliza elegante sobre as águas brandas de um lago remoto... sito apenas no âmago. Pergunto-vos: devo aguardar por minha Odette? Mais uma vez faz-se próxima a metamorfose...

A propósito, antes que o fenômeno tome corpo, devo confessar-vos: Em meus excrementos textuais e vocabulares, o que mais incomoda aos detratores - feiticeiros que condenaram-me à solidão - é o resgate de valores, o encômio à lucidez e o preito às antigas relações familiares.

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