quarta-feira, 29 de julho de 2020

Teorias informativas



Dou início a este breve texto citando Honoré de Balzac em sua obra “As Ilusões Perdidas”, de 1843. Diz-nos Balzac: “A imprensa trafica com a verdade”. Parece-me que esta prática é secular; quiçá recurso didático para cooptar seguidores, aliciar desatentos, congraçar incautos. A aplicação deste expediente em dias atuais, a mim me parece, salvo melhor juízo, imensamente fácil, pois dado às propagandas midiáticas, tecnologias em excesso, etc., convivemos com gerações de literófobos. O eminente escritor francês não conviveu com este estimulado vício. Mas deixemos Balzac descansar em paz.

Acabo de receber do R7, portal de notícias via internet, matéria deveras intrigante. O título fala em Teorias de Conspiração para desacreditar o surto epidêmico / pandêmico do Covid19. Fala de interesses ocultos que pregam o abandono do uso obrigatório de máscaras, da oposição às possíveis vacinas, da desconfiança com a grande indústria farmacêutica, dos cuidados com o 5G, da volta à velha rotina do cotidiano, alertando-nos, inclusive, para o interesse da Nova Ordem Mundial em sujeitar o mundo a novos valores; tudo isto valendo-se das redes sociais. Discorrem sobre as manifestações populares em torno do mundo em apoio a tais teorias. Curioso, não? A quantidade de seres humanos que absorveram a ideia... Para explicar o fenômeno, eles apelam para a psicologia. (já percebestes que todo o desmando convoca sempre “especialistas” para justificá-lo? E, em geral, esse “especialista” é psicólogo; ou seria psicologista?) Valem-se também da sociologia, ou seja, alguém de orientação esquerdista que usa a ideologia como aporte para a pesquisa. 

Sim, eles citam suas fontes; entrevistas com personagens “ilustres” como Mariluz Congosto, Alejandro Romero, Guillermo Fouce, tão desconhecidos como os protagonistas das redes sociais que eles tanto criticam. E vão além, pois enaltecem Bill Gates e George Soros, como se estes fossem exemplos de virtude, integridade e honestidade. (Pausa para irrisão). Acredito que, para uma matéria isenta, deveriam ser citadas pandemias como a peste negra, que matou até 60% da população; a gripe espanhola, que tirou a vida de ¼ da população mundial; a varíola 30%; a febre tifoide 20%. Em 2017, só no Brasil foram registrados 219 milhões de pessoas contaminadas com malária; destas, 435 mil foram à óbito. Nada foi noticiado. A Covid19 apresenta uma taxa de 3% de óbitos em todo o globo. Quantos cidadãos no Brasil morrem em portas de hospitais sem atendimento? Por favor, explicai-me o porquê do alarde. Preocupação repentina com o ser humano? Se assim for, a mídia estará assimilando o cinismo como adjetivo.

Aos responsáveis pela matéria, pergunto: quem tem mais interesse em desacreditar as redes sociais? Resposta simples: a grande mídia. E por que o povo optou por dar mais crédito ao que é veiculado nas redes sociais, arriscando-se, inclusive, a tornar-se cúmplice de falsas notícias? Resposta igualmente simples: Estamos de volta à Balzac; a grande mídia não é isenta, ela manipula informações; tem interesse em divulgar somente o que deseja que seja conhecido. Se houvesse, de fato, interesse em informar e não formar ou deformar leitores, ouvintes e /ou telespectadores, as redes sociais desempenhariam apenas papel coadjuvante. Infelizmente, a mídia presta um desserviço, isso porque está à serviço de alguém, alguns, algures.

terça-feira, 28 de julho de 2020

O Novo Normal



Curioso é como certas circunstâncias são capazes de levarem filósofos itinerantes ou ocasionais a buscarem novos conceitos. Seria eu um deles? Filosofastros e seus respectivos filosofemas, segundo Arthur Schopenhauer - não me reporto a Hegel - que antes questionavam o que seria o normal, agora buscam conceituar o novo normal. Não, a culpa não é do dissimulado e pretenso pensador, mas da filosofia mesma que permite esse assalto, essa intimidade, essa interação. Em verdade, estes desleais encantam-se a tal ponto com a filosofia, que a usam - ou pensam usá-la - indiscriminada e irresponsavelmente em qualquer temática, incluindo sexo, drogas e Rock and Roll.

A busca pelo conceito de “o novo normal” nada mais é do que uma tentativa de resgate do antigo normal. E o que seria o antigo normal? Seres humanos querem segurança, querem sobreviver, e, se possível, de modo agradável. E para ser normal, isso deve ter aceitação quase que unânime. Não busqueis eufemismos, não procureis máscaras, não apeleis para uma retórica barata. Seres humanos são, em face do desenvolvimento e culturas, ortodoxos. A heterodoxia é até admirada, mas nunca amplamente assimilada. Daí advém o adjetivo extravagante. Ser extravagante é ser efêmero.

E por falar nisso, extravagante é dizer-se satisfeito diante do novo contexto social e tentar torná-lo normal. Pergunto-vos: Seria o ser humano, de fato, um ser social? Ou seria apenas sociável? Estes sim, devem ser os conceitos a serem observados. Temos pesquisas a nos revelar que a convivência forçada aumentou sobremaneira o número de agressões, divórcios, etc. isso seria típico da sociabilidade humana? O ser humano associa-se porque a sociedade é utilitarista, e nada mais.

Bem, então fica aqui registrada minha estulta e antiquada colaboração àqueles que voltam-se ao reaprendizado necessário para conviverem com “o novo normal”: a) Sede como a montanha: impassível, inamovível; mantende vossa face inalterável ante ao vento e/ou qualquer outra intempérie. b) Sede como o Sol, isto é, não vos importeis com os que venham ferir-se por vossa luminosidade. c) Sede como o fogo constante, perene, independente de quem, ao vosso contato, saia mal cozido ou queimado. Enfim, d) Reduzi-vos ao mais simples, ao desprendimento, ao esvaziamento de si. Então, independente do mundo, da sociedade, indiferente ao rótulo de normal ou novo normal, experimentarás uma completa disponibilidade, o que implica liberdade, despreocupação e perfeito equilíbrio interior.     

sábado, 4 de julho de 2020

Causo de caserna



Anos setentas. Eu servia a Gloriosa, a Marinha de Guerra. Fim de semana e eu de serviço no Corpo da Guarda no Centro de Instrução ...  Noite de sábado. Um marinheiro alterado, ébrio talvez, a falar alto e com ares de desacato. O oficial de serviço o repreende, chama o suboficial, avisa da punição e manda que o evento conste em Diário. O suboficial era homem de meia idade e não muito polido. Em geral, os suboficiais são pessoas que vieram das mais humildes patentes, “de baixo”, como costuma-se dizer; são pessoas simplórias e não tão letradas, se bem que honestas e muito responsáveis.

O Diário não permite qualquer tipo de rasura; é documento a ser consultado em situações as mais diversas. A rasura o descaracterizaria como registro e, destarte, como documento probatório. Pois bem, o suboficial busca as informações necessárias para o preenchimento do referido registro. Informa-se da punição, data, horário, circunstâncias, etc. Sim, e o mais importante: o nome e patente daquele que foi punido. Chamava-se Waldemir Diogo da Silva, cujo nome de guerra era simplesmente Diogo.

A sabedoria popular costuma dizer que: “quando a responsabilidade aumenta, o diabo atenta”. E desta feita não foi diferente. O suboficial, a empenhar-se na caligrafia, preenchia atentamente o referido diário quando apercebeu-se do equívoco: o nome de guerra do protagonista fora grafado errado; ao invés de Diogo, ele escrevera Digo. O suboficial exasperou-se. Pôs-se a andar pelo recinto; a irritação o invadira, o tomara. O sargento, a desempenhar a função de Ronda, ao observar o desespero do colega, mostrou-se solidário e propôs uma solução. Disse o sargento: “Chefe, faz uma ressalva!”

Imensamente agradecido o suboficial dispôs-se a fazer a ressalva. Ei-la: “Aonde digo Digo, não digo Digo, digo Diogo”.  

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Privado do inexistente



É quase incessante a sensação de vácuo; uma lacuna que se me invade. Busco identificá-la, mas baldas se mostram as tentativas. Há algo como um atraso, um delay entre mim e o mundo. Sim, podemos falar em contumaz inconstância; eu e o mundo quase sempre não nos identificamos. Distrações? Recurso simplório, trivial. Passatempos? A ingenuidade do lúdico. Fugas? Não existe perspicácia no evadir-se, até porque é óbvio tratar-se de evasão. Discursos, palestras motivacionais? A falácia como expediente. Certifico-me: o mundo me guarda rancor; tem por mim profundo desprezo. Quisera também conculcá-lo; quisera também evitá-lo. Mas, qual ... bobagens!

Então sinto-me privado, desapossado do ignoto. Ou não seria, de fato, desconhecido? Sim, refugio-me exatamente no que conceituam como obscuro. Apático e plangente compreendo que os seres humanos construíram um mundo despojado de Deus. E a questão: teria Deus resolvido abster-se do mundo? Não, simplesmente o mundo abstém-se de Deus; o mundo é falto de Deus. Chamam-No irreal, ineficaz, nulo, sem importância ou valor; dizem-No inexistente. O mais curioso é que, independente da crença, da posição ou ideologia, o mundo necessita dessa não existência. O que seria de nós apartados desse irreal?

Enfim posso compreender o porquê da vacuidade do mundo: estar privado do Inexistente!

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Logradouros


Desembarquei do Metrô na estação Cinelândia ainda inebriado com a presteza e comodidade do mundo atual. Percebo, não sei se a contragosto, o quanto alterou-se nossa relação com o tempo; nossa parceria desfez-se. Meu compromisso muito distava e deixei-me conduzir pelas escadas rolantes que encimavam. Fim da linha! Olhei ao redor; estava próximo à Rua do Passeio. Para lá dirigi-me e adentrei os jardins do Passeio Público. Respirei o saudável ar que soe habitar estes lugares; experimentei o refrigério de um clima ameno em julhos possíveis. Zanzei pelas arestas e faces do estranho e ajardinado polígono adornado de árvores das mais variadas espécies. Próximo, ao que me pareceu uma araucária, vi desenhar-se a pouco mais de um metro de altura algo como um arco de luz. Imediatamente recordei-me dos primeiros versos de Somewhere Over the Rainbow. Não, não se tratava de um arco-íris. No entanto ... buscava eu por uma canção de ninar? Ensejava tornar meus sonhos realidade? Mas queria transpô-lo, e assim o fiz.

Subitamente passei a respirar outra atmosfera; sim, o lugar era o mesmo, se bem que pude perceber detalhes que não percebera momentos antes. Estranho ... onde as grades que limitavam os jardins? Na verdade eu caminhava por algum lugar no passado. Mas como seria isso possível? Posteriormente, com a ajuda de alguns amigos de inteligência acima da média e repetidas consultas ao Google, descobri que poderia tratar-se de uma dobra espacial do tempo, algo relacionado com a Teoria da Relatividade de Einstein, pois que grandes massas de gravidade aglomeradas criam fendas no espaço-tempo. Enfim, transitava eu pelos idos do século XIX.

Bem, neste caso, é imperioso corrigir-me. Eu desembarcara no Campo da Ajuda e agora transitava folgadamente pelos jardins que ocultavam o aterro da antiga Lagoa do Boqueirão da Ajuda. Mas ... algo incomodava-me: pessoas cruzavam e olhavam-me como se eu fosse uma aberração ou objeto exótico; cochichavam, disfarçavam sorrisos. Sim, claro, os trajes que eu usava: blazer de cor diferente da calça escura, camisa social sem gravata. O correto para a época seria trajar fraque e cartola; seriam outras cores, outras texturas. Curioso é como a moda, de alguma forma, nos situa no espaço-tempo. Mas que fazer? Meu espírito investigativo tornou-me presa daquela improvável situação.

Apesar do vivido mal-estar, simpático senhor aproximou-se a esbanjar solidariedade. Educadamente pegou-me pelo braço e propôs que continuássemos a caminhar e conversar. Acedi. Dizia-me ele que, muito embora meus trajes não estivessem afinados às circunstâncias, a imperativos estéticos e modismos, eles não deveriam servir-me de rótulos. Oswaldo Medeiros, esse era seu nome, não se sentia envergonhado de andar em minha companhia; ofereceu-se, inclusive, para mostrar-me a cidade. Eu sorri diante do que pareceu-me um tipo de contradição lógica: eu conheceria o agora de um tempo que futuramente pensava-me conhecedor. Mais uma vez concordei.

Saímos em direção ao campo de Santo Antônio, ou melhor, Largo da Carioca. O Teatro Municipal ainda não existia... Enquanto andávamos pela rua do Piolho, atual rua da Carioca, pude ao longe descortinar a Praça Real da Sé Nova, ou melhor, o Largo de São Francisco. Ao final da rua do Piolho, chegamos ao Campo da Lampadosa, atualmente Praça Tiradentes. Vagando por rua sem expressão, cujo nome não me recordo, mas que hoje é conhecida por Avenida Passos, cruzamos a esquina da Rua da Cadeia, atual Assembleia, e entramos na rua do Hospício, a Buenos Aires dos dias atuais, até a esquina da rua da Vala, ou seja, a Uruguaiana. Naquela esquina, permiti-me um laivo de achincalhe: qual seria o desfecho de um romance iniciado na esquina da rua da Vala com rua do Hospício? Mas, assim declaram os intelectuais de plantão, o ridicularizar é recurso da ignorância. Desviamo-nos à direita e retomamos a direção do campo de Santo Antônio ou, se preferirdes, o Largo da Carioca. Lá, subimos a escadaria para o Convento de Santo Antônio, onde Oswaldo disse-me precisar fazer suas orações.

Afastei-me a buscar o conforto das árvores. O lugar estava deserto; eu ainda atônito com o que por si só sucedia. Caminhei a esmo. Mais à frente, próximo a frondoso oiti, outro arco luminoso. Imaginei que este me levaria de volta ao futuro. Pergunto-me: por que seres humanos têm tanto interesse no futuro quando sequer conseguem conviver com o passado? E outra vez a cantarolar Somewhere Over the Rainbow atravessei o portal. Desta feita fui lançado ao início do século XX. Sim, era o mesmo Convento de Santo Antônio, mas parte do morro fora posto abaixo. Largo da Carioca e ... lá estava a Avenida Rio Branco, ou melhor, a Avenida Central esplendidamente arborizada. Por ali caminhei com aquela mesma roupagem a causar-me embaraços. Nada obstante, pude desfrutar da belíssima arquitetura do Teatro Municipal. Repentinamente fui assaltado por imensa crise de saudosismo: estava diante do Palácio do Monroe. Percebestes o absurdo? Eu lamentava a ausência de algo por tê-lo presente.

E a pergunta que não quer calar? Por onde andaria o Palácio do Monroe? Nosso primeiro prêmio internacional de arquitetura demolido. Contam as más línguas que fora considerado obra eclética. Brasileiros, atentai! Nossa natureza é diversa; nossa composição e tendências diferem. E isso justificaria nossa extinção? O que motivou tal descalabro, assim dizem, foi porque o palácio fora construído pelo pai de um desafeto do então Presidente da República. Nego-me terminantemente a crer em tal versão, se bem que, de um modo ou de outro estaria justificado o meu horror pelo ser humano. Tanto causa-me asco a possibilidade de um presidente mandar destruir o monumento por motivo tão torpe, quanto a criatividade de alguém por inventar e disseminar semelhante notícia.

Galguei as escadarias do palácio e sentei-me próximo a um dos leões esculpidos e que alegoricamente guardavam os pórticos. Eu buscava resposta plausível para o referido desmando. Porém veio o cansaço, o sono, o enfado. Com a cabeça amparada no ventre marmóreo da escultura adormeci. Despertei no hospital não sei quanto tempo depois. Certifiquei-me do retorno aos presentes dias; disseram-me ter sido vítima de um desmaio à saída da estação. Sim, o hospital era o Souza Aguiar, nome dado em homenagem ao projetista e arquiteto responsável pelo Palácio do Monroe. Tive alta e pus-me à caminho. Em verdade, a cada dia que passa, sigo por um mundo que me soa sobremodo estranho. Talvez isso explique meu refúgio no passado.