quarta-feira, 1 de julho de 2020

Logradouros


Desembarquei do Metrô na estação Cinelândia ainda inebriado com a presteza e comodidade do mundo atual. Percebo, não sei se a contragosto, o quanto alterou-se nossa relação com o tempo; nossa parceria desfez-se. Meu compromisso muito distava e deixei-me conduzir pelas escadas rolantes que encimavam. Fim da linha! Olhei ao redor; estava próximo à Rua do Passeio. Para lá dirigi-me e adentrei os jardins do Passeio Público. Respirei o saudável ar que soe habitar estes lugares; experimentei o refrigério de um clima ameno em julhos possíveis. Zanzei pelas arestas e faces do estranho e ajardinado polígono adornado de árvores das mais variadas espécies. Próximo, ao que me pareceu uma araucária, vi desenhar-se a pouco mais de um metro de altura algo como um arco de luz. Imediatamente recordei-me dos primeiros versos de Somewhere Over the Rainbow. Não, não se tratava de um arco-íris. No entanto ... buscava eu por uma canção de ninar? Ensejava tornar meus sonhos realidade? Mas queria transpô-lo, e assim o fiz.

Subitamente passei a respirar outra atmosfera; sim, o lugar era o mesmo, se bem que pude perceber detalhes que não percebera momentos antes. Estranho ... onde as grades que limitavam os jardins? Na verdade eu caminhava por algum lugar no passado. Mas como seria isso possível? Posteriormente, com a ajuda de alguns amigos de inteligência acima da média e repetidas consultas ao Google, descobri que poderia tratar-se de uma dobra espacial do tempo, algo relacionado com a Teoria da Relatividade de Einstein, pois que grandes massas de gravidade aglomeradas criam fendas no espaço-tempo. Enfim, transitava eu pelos idos do século XIX.

Bem, neste caso, é imperioso corrigir-me. Eu desembarcara no Campo da Ajuda e agora transitava folgadamente pelos jardins que ocultavam o aterro da antiga Lagoa do Boqueirão da Ajuda. Mas ... algo incomodava-me: pessoas cruzavam e olhavam-me como se eu fosse uma aberração ou objeto exótico; cochichavam, disfarçavam sorrisos. Sim, claro, os trajes que eu usava: blazer de cor diferente da calça escura, camisa social sem gravata. O correto para a época seria trajar fraque e cartola; seriam outras cores, outras texturas. Curioso é como a moda, de alguma forma, nos situa no espaço-tempo. Mas que fazer? Meu espírito investigativo tornou-me presa daquela improvável situação.

Apesar do vivido mal-estar, simpático senhor aproximou-se a esbanjar solidariedade. Educadamente pegou-me pelo braço e propôs que continuássemos a caminhar e conversar. Acedi. Dizia-me ele que, muito embora meus trajes não estivessem afinados às circunstâncias, a imperativos estéticos e modismos, eles não deveriam servir-me de rótulos. Oswaldo Medeiros, esse era seu nome, não se sentia envergonhado de andar em minha companhia; ofereceu-se, inclusive, para mostrar-me a cidade. Eu sorri diante do que pareceu-me um tipo de contradição lógica: eu conheceria o agora de um tempo que futuramente pensava-me conhecedor. Mais uma vez concordei.

Saímos em direção ao campo de Santo Antônio, ou melhor, Largo da Carioca. O Teatro Municipal ainda não existia... Enquanto andávamos pela rua do Piolho, atual rua da Carioca, pude ao longe descortinar a Praça Real da Sé Nova, ou melhor, o Largo de São Francisco. Ao final da rua do Piolho, chegamos ao Campo da Lampadosa, atualmente Praça Tiradentes. Vagando por rua sem expressão, cujo nome não me recordo, mas que hoje é conhecida por Avenida Passos, cruzamos a esquina da Rua da Cadeia, atual Assembleia, e entramos na rua do Hospício, a Buenos Aires dos dias atuais, até a esquina da rua da Vala, ou seja, a Uruguaiana. Naquela esquina, permiti-me um laivo de achincalhe: qual seria o desfecho de um romance iniciado na esquina da rua da Vala com rua do Hospício? Mas, assim declaram os intelectuais de plantão, o ridicularizar é recurso da ignorância. Desviamo-nos à direita e retomamos a direção do campo de Santo Antônio ou, se preferirdes, o Largo da Carioca. Lá, subimos a escadaria para o Convento de Santo Antônio, onde Oswaldo disse-me precisar fazer suas orações.

Afastei-me a buscar o conforto das árvores. O lugar estava deserto; eu ainda atônito com o que por si só sucedia. Caminhei a esmo. Mais à frente, próximo a frondoso oiti, outro arco luminoso. Imaginei que este me levaria de volta ao futuro. Pergunto-me: por que seres humanos têm tanto interesse no futuro quando sequer conseguem conviver com o passado? E outra vez a cantarolar Somewhere Over the Rainbow atravessei o portal. Desta feita fui lançado ao início do século XX. Sim, era o mesmo Convento de Santo Antônio, mas parte do morro fora posto abaixo. Largo da Carioca e ... lá estava a Avenida Rio Branco, ou melhor, a Avenida Central esplendidamente arborizada. Por ali caminhei com aquela mesma roupagem a causar-me embaraços. Nada obstante, pude desfrutar da belíssima arquitetura do Teatro Municipal. Repentinamente fui assaltado por imensa crise de saudosismo: estava diante do Palácio do Monroe. Percebestes o absurdo? Eu lamentava a ausência de algo por tê-lo presente.

E a pergunta que não quer calar? Por onde andaria o Palácio do Monroe? Nosso primeiro prêmio internacional de arquitetura demolido. Contam as más línguas que fora considerado obra eclética. Brasileiros, atentai! Nossa natureza é diversa; nossa composição e tendências diferem. E isso justificaria nossa extinção? O que motivou tal descalabro, assim dizem, foi porque o palácio fora construído pelo pai de um desafeto do então Presidente da República. Nego-me terminantemente a crer em tal versão, se bem que, de um modo ou de outro estaria justificado o meu horror pelo ser humano. Tanto causa-me asco a possibilidade de um presidente mandar destruir o monumento por motivo tão torpe, quanto a criatividade de alguém por inventar e disseminar semelhante notícia.

Galguei as escadarias do palácio e sentei-me próximo a um dos leões esculpidos e que alegoricamente guardavam os pórticos. Eu buscava resposta plausível para o referido desmando. Porém veio o cansaço, o sono, o enfado. Com a cabeça amparada no ventre marmóreo da escultura adormeci. Despertei no hospital não sei quanto tempo depois. Certifiquei-me do retorno aos presentes dias; disseram-me ter sido vítima de um desmaio à saída da estação. Sim, o hospital era o Souza Aguiar, nome dado em homenagem ao projetista e arquiteto responsável pelo Palácio do Monroe. Tive alta e pus-me à caminho. Em verdade, a cada dia que passa, sigo por um mundo que me soa sobremodo estranho. Talvez isso explique meu refúgio no passado. 

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