quarta-feira, 31 de março de 2021

Arte, artimanha, aliciamento

 

É notório o empenho de várias redes de TV, nacionais ou estrangeiras, por levar ao público programas de calouros. O The Voice é um show de talentos que teve origem na Holanda e seu formato foi copiado por diversos outros países, inclusive o Brasil. O Canta Comigo é a versão brasileira do original britânico All Together Now. Então, a pergunta que não quer calar: Por que? Há, de fato, tanto interesse dos profissionais midiáticos em descobrir e promover talentos? O culto à arte é assim tão premente? Afinal, as produções são caras, dispendiosas, pois envolvem cenários, orquestras, figurinos, prêmios, hospedagens, viagens, etc. O que há por trás de tudo isso?

Vou tentar resumir. Pessoas, talentosas ou não, buscam cumprir as demandas estabelecidas pelo trato social, ou seja, querem a notoriedade, querem a fama, a glória, o poder. Enfim: querem tornar-se celebridades. A arte, para estes, mostra-se apenas como um meio. Contudo, a arte não está vinculada à fama; arte é conforto, é alento. O canto é para muitos oportunidade de se notabilizar. Não vos enganeis: a arte já vem sendo usada como meio há muito tempo; a contracultura catapultou e notabilizou a incompetência. E eu vos pergunto: seres humanos sabem lidar com a fama, com a glória? Evidente que não; conta-se a dedo os que não se notabilizam escravizados à vaidade.

E pela ótica “empresarial”: qual seria o preço a ser cobrado em proporcionar fama e notabilizar alguém? Competência? Talento? Estai atentos! A arte é explorada por empresários inescrupulosos, pois é artimanha para o aliciamento. E como se dá o processo? Simples, a vaidade torna mais fácil e eficaz o trabalho de cooptação, pois na tentativa de tornar-se célebre, de conquistar fama, os participantes acabam por abrirem mão de princípios e/ou valores. Posso citar a meu favor os “Reality Shows”. O meio, o ambiente “artístico”, em si, carece de probidade, de integridade.  Eis o aliciamento. Depois de pouco tempo, já com alguma fama conquistada, não vos alarmeis em ver noticiada a nudez da ex-candidata, ou a possível overdose de um candidato que potencialmente teria algum futuro. “Vaidade, tudo é vaidade e correr atrás do vento”. (Ec. 2.17)   

terça-feira, 30 de março de 2021

As Mensageiras

 

Não é raro permitir-me sair às ruas quando acicatado por problemas que me parecem insolúveis ou mesmo quando incentivado por preocupações outras. Então deixo-me vagar sem rumo, sem conduta ou objetivos. Este meu vagar há muito deixou de ser insólito; é como uma busca alicerçada em fantasias; é como se as divagações pudessem trazer respostas e/ou soluções.

As respostas, de fato, não vêm; as soluções não me são apontadas. Todavia, algo como mensagens positivas acercam-se de mim. Sim, dentre as inquietações e ao desassossego, surge o adejar de uma ou mesmo de várias borboletas. O ruflar perceptível, porque revestido de cores, apresenta-se, apressa-se, mostra-se errante ...  Aí está a criatividade, a mudança ... E por que não a alegria e liberdade para fazê-las? As soluções fazem-se presentes neste revolutear alegre e colorido; as mensagens parecem implícitas. Eis a transformação, minha renovação!

De fato, borboletas evidenciam sinais de transformação. Há como uma similaridade à raça humana, haja vista as mudanças anatômicas. Tudo inicia com os ovos, assim como nós enquanto gestados. A fase larval assemelha-se à nossa infância, na qual somos ainda bastante frágeis. A pupa pode ser entendida como nossa adolescência; situamo-nos bem próximos à fase adulta. Por fim a condição de total desenvolvimento, na qual manifestamos alegria e criatividade; uma transformação que clama por liberdade, porque considera-se ser em evolução.

Ao observá-las, permito-me relembrar não só das transformações vividas, mas também de quantas ainda se farão necessárias. A certeza a invadir-me, a trazer-me conforto, reside exatamente na incerteza desse mister. E o mais importante: as borboletas se solidarizam conosco. Até por uma questão de sobrevivência, além do néctar encontrado nas flores, a panapanã precisa de outros nutrientes... então pousa em nossos corpos, tendo como objetivo sugar nossas lágrimas e suor.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Navegar é preciso

 

A frase proferida pelo general romano Pompeu ainda no século I a.C., mostra-se sobremodo pertinente ao panorama marítimo brasileiro: “Navigare necesse, vivere non est necesse”. Com a tradução do poeta italiano Petrarca, no século XIV, a sentença passa a declarar: “Navegar é preciso”. Fernando Pessoa, por sua vez, entende o termo preciso no sentido de exatidão, pois navegar implica precisão, cálculos, o que de certo modo opõe-se à imprecisão da vida. Todavia, atenhamo-nos ao processo de expansão econômica objetivado pela Roma antiga: Navegar é necessário, é indispensável ao desenvolvimento de qualquer nação. 

Nosso litoral soma mais de 7.000 km; a carga movimentada corresponde apenas a 11% do total; temos 175 instalações portuárias. Destas, apenas 8 se destacam e a maioria no sul e sudeste do país. Então perguntamo-nos: O que está errado? O que pode melhorar? Voltemos, de início, nosso olhar, às demais instalações: são portos subaproveitados, haja vista as más administrações, a falta de insumos, o sucateamento de equipamentos, a falta de dragagem nos canais. Nossas tarifas portuárias são caras e o serviço prestado deixa muito a desejar. Pelo aspecto econômico, sabemos que portos bem movimentados significam grande quantidade de empregos diretos e indiretos. A modernização dos portos, seria, salvo melhor juízo, quase que condição sine qua non para melhoria de nosso percentual de navegabilidade.

Por outro lado, a arte de navegar, que pressupõe instrução (conhecimentos pontuais) carece de divulgação. Torna-se imprescindível, portanto, difundir não só a profissão marítima, mas também despertar o interesse da população em relação à Marinha Mercante; faz-se mister o amadurecimento e conscientização no tocante à sua importância. Aos jovens deve ser apresentada a vida marítima. A Marinha Mercante não deve ser encarada apenas como mais uma oportunidade de emprego, mas como ferramenta relevante para modernização e desenvolvimento do país.

A vós outros, que apesar de encantados e seduzidos pelo mar, ainda persistis na hesitação, ouso utilizar-me de certa paráfrase, com a devida vênia de Fernando Pessoa: “Para navegar, basta existir”.

sábado, 27 de março de 2021

A Gelatina e a Valquíria


Recordo-me vagamente de alguém ter declarado que doentes mentais adoram gelatina. Seria de fato, ou trata-se apenas do divagar de mais uma pseudociência especulativa? E se assim o for; por qual motivo? Seriam as cores? A transparência? A substância instável, flexível, fugaz? Bem, isso não significa que todos os apreciadores de gelatina sejam doentes mentais. Engano-me? Todavia, vós outros perguntais por que meu interesse em tema tão desinteressante. Então, resta-me segredar: Adoro gelatina! E ouço solícita e amiudadamente a sentença hipócrita e nada original: “não há porque te preocupares com isso”. Sério?

Bem, como pretendo nada omitir, confesso-vos: sou dado a alguns desvarios. Nada prejudicial. Apenas quimeras de lúdico coração; talvez fantasias de uma fase heroica latente e mal resolvida. E tudo começou quando ouvi Richard Wagner enquanto guiava meu automóvel. Sim, eu desconhecia a recomendação. Segundo o músico Jonathan Berger, a música de Wagner sequestra nossa percepção, cria uma dimensão espaço/ temporal paralela. Eis, portanto, meu vício: adoro sentar-me ao volante, a saborear significativas porções de gelatina, tendo “A Cavalgada das Valquírias” como fundo musical.

Então dá-se a transformação: daquele momento em diante torno-me algo como um(a) Valquíria, ou seja, personifico o herói virtuoso. Já não mais estou em meu carro, mas monto um cavalo alado. Preciso combater o mal, a perversão, a egolatria, a arrogância, a vaidade, o egoísmo, a leviandade. Com minha espada lidero outros combatentes cavaleiros. Perseguimos e caçamos implacavelmente a escória que, graças a ordenamentos jurídicos e posições adquiridas por favorecimentos repreensíveis e duvidosos, julgam-se deuses; punimos de modo exemplar os que fazem-se paladinos e declaram-se defensores de vítimas ideadas; expurgamos a sociedade da súcia que dela busca locupletar-se. Aos que perecem na refrega, meus iguais, lhes sirvo hidromel e cerveja antes de conduzi-los ao Valhala (Salão dos Mortos).

Neste momento poderíeis perguntar-me: E quando tua luta terá fim? Responder-vos-ia por certo: Enquanto Wagner e sua música absorverem-me por completo, perdurará este meu empenho em derrotar o mal, muito embora o auxílio deste delirante processo. Parece-me que o simples fato de querer destruir o molesto já reduz sua influência perniciosa; a vontade em eliminá-lo atenua sobremodo seus efeitos danosos. Minhas lutas, no entanto, carecem de continuidade. As interrupções não tem como causa o fim da ingestão gelatinosa ou a falta de combustível, mas a necessidade em refazer-me das ofensas proferidas pelos que se fazem alvos de minha lida. A vós outros, no entanto, os ofendidos, afetados, injuriados, faço minhas as palavras de Cícero: “oderint, dum metuant”.  


segunda-feira, 22 de março de 2021

A Locusta

 

A primeira vez que ouvi o termo era ainda menino; meu pai o usou em conversa com um de nossos vizinhos. Mesmo sem conhecer seu significado, o vocábulo pareceu-me - e ainda parece - elegante, de agradável sonoridade e bem acorde com situações ou pessoas de destaque. No entanto, eu não dispunha de um dicionário; não deveria interromper a conversa dos adultos. Pus-me, então, na condição de atento ouvinte, a buscar exata definição para a palavra.

Meu pai e seu interlocutor diziam que, em geral, são solitários, mas sob certas circunstâncias, tornam-se abundantes, modificam comportamentos e hábitos a ponto de andarem aos bandos. Nesse momento, inferi que, na verdade, tratava-se de pessoas com maus hábitos. Sim, seriam pessoas famosas graças a seus maus costumes. Papai e seu vizinho prosseguiram em suas considerações; disseram que a lacusta a tudo devora, invade, consome e por fim evade-se. Enfim, seria uma chaga, um mal que precisava ser eliminado, um câncer a ser extirpado.   

Em face do conceito apresentado, entendi: eles falavam de políticos!  

domingo, 21 de março de 2021

Paranormal

 

A viagem fora demorada; quase nove horas. A primeira parte do percurso tivera início no Rio de Janeiro. Hosana quando na chegada em Juiz de Fora. Zanzei desordenadamente naquela cidade; a segunda e última parte da jornada ainda demoraria. Vi praças, monumentos; com a Polaroide tirei fotos, registrei lugares e detalhes. Entrei num café e procurei ler o jornal local. Além da beberagem uma mostra do bom queijo mineiro. Sentado, pus-me a pensar: fazia anos que não via a parentalha, talvez não reconhecesse boa parte deles. O tempo fluiu e teve lugar o novo embarque. A derradeira parte, pensei com alguma alegria. E a viagem prosseguiu, com solavancos, poeira, suor e cansaço.

Chegamos! alguém avisou com solicitude. Pus-me de pé e aguardei que outros reunissem as muambas e apeassem. Desci desconfiado. Seria esperado? Uma senhora surgiu, encarou-me, murmurou meu nome e aguardou pela minha reação. Aproximei-me; ela desfez-se num sorriso. Era uma prima de meu pai. Abraçamo-nos efusivamente como se íntimos fôssemos. Pusemo-nos a caminhar e a trocar informações acerca dos familiares ausentes. A cidadezinha era um nada: pequeníssima, ínfima, minúscula. Mas ali residia - ou jazia? - minha origem. Uma charrete conduziu-nos por quase uma légua.

Enfim uma casa, uma sala, uma sombra, a cadeira onde eu pudesse sentar. Abraços outros corroboraram o quanto eu era bem-vindo. E havia um quarto pra mim reservado. Instava por bom banho; o banheiro era único, mas havia uma cama para chamar de minha. Descansei por cerca de uma hora. Retornei ao convívio dos parentes. Sentamo-nos à mesa: comidas, doces, bebidas. Sim, o fumo de rolo lá mesmo produzido. Éramos, a contar comigo, oito pessoas ao redor da mesa. Alguém falou em imortalizar aquele momento com uma foto, mas o lembrado artista lambe-lambe encontrava-se distante. Sim, em minha bagagem repousava a Polaroide, a máquina de revelação instantânea. O grupo fez-se mais denso, enquanto eu me exibia como pretenso fotógrafo.

Todos sorriam. Ao afastar-me à procura de melhor ângulo, bati com as costas contra um armário de madeira rústica. Então, após o aviso de atenção, acionei o botão da máquina. Poucos minutos de impaciência a aguardar pelo resultado. De início o papel em branco, logo sombras surgiram, desenharam-se vultos e ... pronto! Como mágica a imagem da família em torno da imensa mesa. Admirei o grupo estampado na foto. Alguém solicitou que eu trocasse de lugar, para que também pudesse ser fotografado. Rapidamente instruí o rapaz, filho de uma prima e introduzi-me ao desordenado e coeso conjunto. O rapaz bateu a foto, aguardou o surgimento da imagem e entregou-a à matriarca da família.

Minha tia-avó deixou escapar um grito abafado. Todos a ela se voltaram. A velhinha permanecia estática, olhos arregalados a contemplar a foto. Os demais se interrogavam mudamente: mas enfim, o que houve? Aproximei-me com a primeira foto nas mãos. Estupefato percebi o que acontecia: além das sete pessoas, outra criatura apresentara-se. A imagem estava esmaecida e distante; um vulto sobre os ombros da pessoa mais situada à esquerda do grupo. Eu não a conhecia nem reconhecia, mas de uma coisa tinha certeza: até o momento ela não esteve presente. A matriarca então falou: “parece muito com minha irmã; ela morreu faz três anos!” Mostrei a primeira foto, a senhora comparou e confirmou.

Tudo mudo, silêncio sepulcral. Fomos transportados do interior de Minas para os bastidores de Poltergeist. Como poderíamos chamar o fenômeno? Psicocinesia silenciosa? Não, a mulher morrera; é mais fácil falar em assombração... se bem que, aquilo estava mais para Gasparzinho, o fantasminha camarada. Em meio ao pânico, alguém falou em padre, em benzer a casa, em exorcismo. O que é isso, minha gente? estão a demonizar um ente querido? Pensei em Ghostbusters, os caça-fantasmas. Quando já imaginava as presenças de Dan Aykroyd e Bill Murray no casarão, observei que, por trás do grupo havia um janelão com os postigos abertos. O vidro da janela esteve exatamente atrás do ombro direito da pessoa que posara à esquerda; o vidro apenas refletira a foto de um grande retrato que encimava o armário de madeira rústica.  

sábado, 20 de março de 2021

Minha titulação

 

Posso vos afiançar que não se trata de denominação honorífica ou algo que o valha; nada está ligado a meu currículo acadêmico; careço de título ou nome e muito menos exibo ou desfruto de alguma fidalguia. Apenas sou intitulado, aliás algo bastante peculiar em dias de hoje. A mim são atribuídos adjetivos, substantivos adjetivados (não necessariamente nesta ordem) e pasmai: até neologismos. Bem, e para que o presente introito não dê margem a mais uma designação bizarra, adianto-me com novo parágrafo.

De início, devo confessar que não sou muito fã dessa tecnologia que certamente nos expõe; à Internet dou importância relativa. Sou contra o uso de aplicativos, senhas, impressões dactiloscópicas, transferências bancárias, arquivos documentais, etc. Evito comentar certas particularidades por redes sociais que, afinal de contas, só a mim interessam; evito postar fotos que só tem importância para mim e para os meus. Sou daquela teoria ultrapassada de que “roupa suja se lava em casa”. E de ninguém escondo meu estado de apreensão. Pois bem, em conversa com um desses jovens que escovam os dentes pela manhã com o aparelho celular, recebi como resposta que “minha visão retrógrada, além de tudo, depõe contra o (isso é no mínimo risível) desenvolvimento fisiológico humano. Ainda com cara de idiota, pergunto por quê? E a resposta: “o cérebro realiza sinapses porque, em verdade, somos um aglomerado de algoritmos. A celeridade do mundo moderno exige que o cérebro humano se utilize de recursos para que o viver seja possível”.  E os adjetivos: quadrado, reacionário, caturra.

Uma outra característica que ostento é ser admirador da arte e cultura humanas. Não só adoro livros, mas coleciono selos, moedas, cédulas, cartões; interesso-me, enfim, pelo que pode explicar meu passado. Certa feita, recebi de presente uma pequena escultura de Poseidon. Ora, creio que o fato de ter passado tanto tempo na Marinha justifique meu interesse pelo deus grego responsável pelos mares. E lá estava Poseidon sobre minha escrivaninha em meu gabinete. Então recebi a visita de certo aluno, que além de filosofia, cursava teologia em determinado seminário. Na semana seguinte, pelos corredores da faculdade, corria à solta os títulos a mim designados: idólatra, sacrílego, apóstata.  

Em face da idade, e por já apresentar alguma disfunção orgânica, decidi, até mesmo para evitar o uso frequente de muitos medicamentos, reorganizar minha dieta. Pois bem, optei por evitar a ingestão de carne. Não, não sou vegano; alimento-me com ovos, leite e derivados. Mas os predicativos parecem nos preceder. Ora, os predicativos, nesse caso, são sempre do sujeito; nunca do objeto. Pelo menos resta-me o consolo de que nas frases em que meu nome figure, o verbo utilizado será necessariamente o de ligação. Bem, e como por vezes os adjetivos fazem-se ausentes, ou velados, meus críticos se valem de neologismos. Aqui vai: ovolácteovegetariano. (Acho que é assim que escreve).

Bem, pelo exposto, já podeis traçar meu perfil. Aqui valho-me da terminologia do politicamente correto para falar de minha idade: eu diria meia idade, isto é, melhor idade. Então, por dedução, deveis concluir que cultuo alguns valores tidos como ultrapassados; sou do tempo em que as canções tinham por base a musicalidade tonal, ou seja, melodia, harmonia e ritmo; arte e cultura para mim tem por fito trazer alento, conforto; educação para mim é determinante, pois deve haver respeito, hierarquia; nas relações cotidianas, não abro mão da integridade, honestidade, justiça: posições de destaque na sociedade devem-se dar em função do mérito; politicamente, venero minha pátria e gostaria que meu país figurasse em primeiro lugar no mundo. Em suma, chamam-me fascista.    

sexta-feira, 19 de março de 2021

Eureka

 

Dizem-me alguém antenado, ligado às demandas sociais e atento às exigências da moda. Talvez tenha sido esse o espírito a conduzir-me nas estafantes pesquisas. Mas enfim, consegui. Sim, descobri uma vacina! Não, não duvideis de minha capacidade investigativa, afinal, nos dias de hoje não mais se exige o rigor dos currículos de outrora. Basta ter em mente o fato de que Bill Gates abandonou sua vidinha de hacker para tornar-se cientista; o diretor da OMS (HWO soa mais sofisticado), não é médico e sim um requintado agente de saúde (com todo respeito aos agentes de saúde); no Brasil, não há necessidade de ser ou ter sido juiz para tornar-se ministro do Supremo Tribunal Federal, basta declarar-se alguém de “notável saber jurídico” e receber o aval de ínclitos senadores.

Minha pesquisa, apesar de acerbas críticas, obedeceu a todas as etapas em seu desenvolvimento: na fase laboratorial, o agente infeccioso foi identificado dentre centenas de moléculas, onde definimos métodos para compor a vacina; na fase pré-clínica foram realizados testes in vitro, bem como experimentos com animais (ratos, macacos, morcegos e gafanhotos); a etapa clínica teve três fases distintas: foram testados 50 involuntários (muito bem pagos) no tocante a efeitos colaterais e intensidade nas dosagens; a eficácia da vacina em um número maior de humanas cobaias; avaliação da eficiência e segurança no público alvo. Nessa última fase, embora possa demorar muitos anos, tenho recebido imensa colaboração do povo, que graças ao “jeitinho brasileiro”, e de modo inconsciente, expõe-se ao vírus. Sim, não me reporto só aos bailes funks, aos trens e ônibus superlotados, mas também às filas nos bancos para receberem o auxílio do governo.

Quando, no despertar da pandemia, convidado a participar de única e determinada reunião com empresários da indústria farmacêutica e seus respectivos pesquisadores, fui orientado no sentido de que medicamentos preventivos não trariam o retorno financeiro desejado; a vacina sim, atenderia a toda a nossa “demanda” e demais expectativas. A OMS chancelou a ata de nossa reunião ao vir a público condenar tratamentos com substâncias já utilizadas amiúde em países do terceiro mundo. A OMS também colaborou sobremaneira com a politização da epidemia.  

Bem, agora estou buscando aprovação da droga para uso emergencial, mas já recebi a visita de um certo senador que, a troco de vultoso percentual, vai entrar com pedido junto ao STF para que, a partir de uma decisão (monocrática ou colegiada), as autoridades sanitárias sejam obrigadas a aprovarem a droga em até 5 dias. Em breve entrarei em contato com o Ministério da Saúde, de modo a oferecer meu imunizante, se bem que, no contrato, deve constar cláusula similar a exigida pela Pfizer, ou seja, não devo ser responsabilizado por quaisquer efeitos colaterais. Não obstante, minha vacina não tem apresentado a criação de coágulos como a de Oxford; talvez queda de cabelo, de dentes e sangramento de gengiva. Mas quem vai se importar com isso, não é mesmo?

A boa notícia: serei indicado ao Oscar (perdão, lapso na escrita) ao Nobel. Afinal, 1 milhão de dólares vem mesmo a calhar. Explico-me: o senador, meu mecenado, muito bem relacionado com os suecos, não vai dar “impulso” apenas à minha criação, mas no mesmo combo ele irá entrar com um projeto junto ao legislativo, para que eu seja indicado ao Nobel de Medicina, enfim, antes mesmo de dedicar-me com afinco às pesquisas, sou alguém sobremodo preocupado com o bem estar da população (risos). Não haverá problema algum; não vos enganeis, pois para os representantes da Fundação Nobel, vacinados gratuitamente com meu medicamento, o fulcro da avaliação vincula-se simplesmente ao “politicamente correto”.   

A propósito, desde ontem venho apresentando sintomas característicos do Covid19. Não, não vos afligis; já providenciei a dose necessária de Ivermectina.  

quinta-feira, 18 de março de 2021

Passatempo

 

Agora, que a vida teima em nada me apresentar como novidade, busco preencher o ócio fazendo-me diletante. Não só a literatura é tratada como atividade terapêutica, mas a música faz-se ouvir amiúde pelas salas que me servem de refúgio. A arte de escrever, por sua vez, tem como origem memórias um tanto ofuscadas: algo distante, um quase esquecimento, retalhos vãos, enfim... E dentre estes fugidios lapsos ocorre-me a atividade derivada favorita de meu pai, creio que também para fugir do marasmo que teima em nos visitar ao fim da jornada. Sim, o hobby tem por finalidade fazer com que o tempo escoe; não há divertimento, o hobby é apenas refectivo.

Sim, papai tinha um hobby: a fotografia, algo que de certo modo aproximava-se de seu ganha pão. Toda sua vida profissional fora ligada à Fotogrametria; fora operador restituidor, e isso na época em que os aparelhos óticos demandavam perícia de seus operadores. Os originais, feitos à mão em papel canson, eram capazes de expressar relevo, haja vista a exatidão com que se traçavam as curvas de nível. Mas esta profissão extinguiu-se, assim como tantas outras. Hoje delega-se aos computadores toda e qualquer responsabilidade pelas informações contidas na altimetria e planimetria.       

E nos fins de semana papai voltava-se à fotografia. Devo vos alertar que à época, as máquinas fotográficas exigiam do fotógrafo conhecimentos hoje esquecidos graças à tecnologia que substituiu ASAs e DINs por Pixels. O então fotógrafo deveria preparar sua câmera atentando para luminosidade, velocidade, sensibilidade do filme, distância do objeto, etc. A máquina de papai era uma Adox de fabricação alemã; eu cheguei a manuseá-la. Mas seu hobby não se limitava a fotografar; ele também revelava os filmes e as fotos que eventualmente tirava.

Um esquecido banheiro cedera lugar a acanhado laboratório. Na porta de entrada, no alto e presa ao alisar, a luz, que quando acesa, servia de alerta para o aviso em nanquim: Não entre! Dentro do recinto, por ocasião do uso, a escuridão que me cativava, só minimizada pela vermelhidão de certa lâmpada. E lá estavam os equipamentos: a copiadora manual, a pequena guilhotina, um ampliador, prateleiras com caixas de papel fotográfico, bandejas e vidros bojudos para colocar reveladores, fixadores, rebaixadores, etc.

Neste momento dou-me conta de que não sei o que foi feito desse mini laboratório que trazia tanto prazer a papai. Meu velho morreu faz dezoito anos... Curiosa nossa existência: durante a vida damos tanto valor a certas coisas... e quando morremos essas coisas são vendidas ou doadas ou jogadas no lixo. Os materiais de nossos hobbies deveriam nos acompanhar além túmulo; ter o mesmo destino dos artefatos que acompanhavam o sepultamento dos antigos faraós. Todavia, alguém, por certo, justificará o sumiço dos petrechos dizendo-o apenas um passatempo; nada tão importante.    

quarta-feira, 17 de março de 2021

Dessarte

Ao assistir pela TV certa comédia romântica - não me recordo do título no momento - teria o personagem principal declarado que “é impossível não amar aos que ouvem Puccini”. Pergunto-me: a melodia seria a causa? o amor apenas consequência? A meu ver, amar é o que nos torna sensíveis, suscetíveis de experimentar emoções, impressões. Evidentemente, que a declaração não faz de Puccini um único exemplar; outros compositores também são capazes de proporcionar o referido bem estar.

No entanto, voltemo-nos a outras manifestações artísticas: como não assimilar a “magia” do inaudito presente nas páginas de Cervantes? Como não ficar impressionado com as pinturas de Michelangelo ou de um Vermeer? De que modo tornarmo-nos indiferentes às emoções presentes na trama de um Ésquilo ou de um Sófocles? Como não experimentar certa comoção diante dos escultores de Rhodes ou de um Auguste Rodin? Conseguis perceber? A arte fala de si mesma; não tem como fito promover seu autor. Talvez sejam essas as características que predicam os clássicos. A arte, portanto, é nada tangível; é para ser admirada, não interpretada. Não obstante, uma certeza revela-se: o artista deve ter o amor como fundamento.

Do exposto, pode-se extrair o objetivo fundamental nas manifestações da arte: proporcionar bem estar, conforto, alento. Então sou tomado de algum embaraço, pois afinal nem toda manifestação artística tem semelhante capacidade. Muito pelo contrário, atualmente consideram arte o que é impactante, o que provoca mal estar, o que constrange... Enfim, isso ainda seria arte? Ou tratar-se-ia de uma arte subdimensionada? Ora, o subdimensionar pressupõe o apequenar de algo; é atribuir menores dimensões. Certa questão se me afronta: este apequenar estaria vinculado a falta de talento? A falta de talento não apenas apequena, mas subverte a arte, minimiza o amor que lhe serve de sustento. E essa subversão se autodestrói.

Bem, parece que agora não mais falamos de arte, mas de seu aniquilamento. E qual seria a proposta deste abatimento? O que pode o reduzido, o abatido, objetivar? Simples: o apequenar também de seres humanos. A arte subdimensionada não mais se ocupa em facultar ânimo ou vigor, mas desespero, uma angústia infligida, cultivada.  A falta de talento, no entanto, não deverá ser entendida como causa primeira; não creio que assim o seja. Simplesmente a ausência de talento tem como origem a falta de amor; mas não o amor à fama, ao ego, à vaidade. A pós-modernidade, igualmente subdimensionada, carece de amor à própria arte.


quinta-feira, 4 de março de 2021

A síndrome de Drácula

 

A lançar mão do método dedutivo, se bem que longe de fazer-me um novo Sherlock Holmes, percebo o engano de vários pesquisadores, assim como o de várias agências de inteligência. Explico-me: o vírus não é chinês! O Covid19 é romeno! E mais: exatamente da região da Transilvânia. Ou seja, um conterrâneo do Conde Drácula. E pauto minha assertiva no pensamento quase homogêneo de tantos prefeitos e governadores brasileiros, pois que assinaram decretos estabelecendo um tal de “lockdown”, que deverá vigorar entre oito da noite e cinco da manhã, exatamente quando a vampirada (no caso, a virulada) sai a caça de suas vítimas.  

Estai tranquilos, pois o vírus não ataca durante o dia; ele não se interessa em visitar farmácias, padarias, supermercados, agências bancárias, transportes coletivos, escolas; o elemento pandêmico não possui automóvel e não necessita de combustível. Ele também não vai a salão de beleza ou academia; o vírus nada tem de fitness. Ele, o Coronavírus, tal e qual todo bom brasileiro, adora praia, restaurante, um barzinho e chope gelado ao cair da tarde.

A mudar ligeiramente de assunto, conseguis perceber que atitudes estúrdias em muito se aproximam do risível, do ridículo? Pergunto-vos: como tratar com o leviano, com o estroina? A politização, ou melhor a ideologização na administração pública parece, de modo singular, criar óbices à capacidade abstrativa. E o pior é que os ideologizados têm o amparo de leis e de forças coatoras. Bem, e com isso, Drácula, ou melhor, o Covid vai arrebanhando suas vítimas, enquanto os administradores / legisladores, sob a égide do poder judiciário, desmoralizam, culpam e caftinam o governo federal.