quarta-feira, 17 de março de 2021

Dessarte

Ao assistir pela TV certa comédia romântica - não me recordo do título no momento - teria o personagem principal declarado que “é impossível não amar aos que ouvem Puccini”. Pergunto-me: a melodia seria a causa? o amor apenas consequência? A meu ver, amar é o que nos torna sensíveis, suscetíveis de experimentar emoções, impressões. Evidentemente, que a declaração não faz de Puccini um único exemplar; outros compositores também são capazes de proporcionar o referido bem estar.

No entanto, voltemo-nos a outras manifestações artísticas: como não assimilar a “magia” do inaudito presente nas páginas de Cervantes? Como não ficar impressionado com as pinturas de Michelangelo ou de um Vermeer? De que modo tornarmo-nos indiferentes às emoções presentes na trama de um Ésquilo ou de um Sófocles? Como não experimentar certa comoção diante dos escultores de Rhodes ou de um Auguste Rodin? Conseguis perceber? A arte fala de si mesma; não tem como fito promover seu autor. Talvez sejam essas as características que predicam os clássicos. A arte, portanto, é nada tangível; é para ser admirada, não interpretada. Não obstante, uma certeza revela-se: o artista deve ter o amor como fundamento.

Do exposto, pode-se extrair o objetivo fundamental nas manifestações da arte: proporcionar bem estar, conforto, alento. Então sou tomado de algum embaraço, pois afinal nem toda manifestação artística tem semelhante capacidade. Muito pelo contrário, atualmente consideram arte o que é impactante, o que provoca mal estar, o que constrange... Enfim, isso ainda seria arte? Ou tratar-se-ia de uma arte subdimensionada? Ora, o subdimensionar pressupõe o apequenar de algo; é atribuir menores dimensões. Certa questão se me afronta: este apequenar estaria vinculado a falta de talento? A falta de talento não apenas apequena, mas subverte a arte, minimiza o amor que lhe serve de sustento. E essa subversão se autodestrói.

Bem, parece que agora não mais falamos de arte, mas de seu aniquilamento. E qual seria a proposta deste abatimento? O que pode o reduzido, o abatido, objetivar? Simples: o apequenar também de seres humanos. A arte subdimensionada não mais se ocupa em facultar ânimo ou vigor, mas desespero, uma angústia infligida, cultivada.  A falta de talento, no entanto, não deverá ser entendida como causa primeira; não creio que assim o seja. Simplesmente a ausência de talento tem como origem a falta de amor; mas não o amor à fama, ao ego, à vaidade. A pós-modernidade, igualmente subdimensionada, carece de amor à própria arte.


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