sábado, 27 de março de 2021

A Gelatina e a Valquíria


Recordo-me vagamente de alguém ter declarado que doentes mentais adoram gelatina. Seria de fato, ou trata-se apenas do divagar de mais uma pseudociência especulativa? E se assim o for; por qual motivo? Seriam as cores? A transparência? A substância instável, flexível, fugaz? Bem, isso não significa que todos os apreciadores de gelatina sejam doentes mentais. Engano-me? Todavia, vós outros perguntais por que meu interesse em tema tão desinteressante. Então, resta-me segredar: Adoro gelatina! E ouço solícita e amiudadamente a sentença hipócrita e nada original: “não há porque te preocupares com isso”. Sério?

Bem, como pretendo nada omitir, confesso-vos: sou dado a alguns desvarios. Nada prejudicial. Apenas quimeras de lúdico coração; talvez fantasias de uma fase heroica latente e mal resolvida. E tudo começou quando ouvi Richard Wagner enquanto guiava meu automóvel. Sim, eu desconhecia a recomendação. Segundo o músico Jonathan Berger, a música de Wagner sequestra nossa percepção, cria uma dimensão espaço/ temporal paralela. Eis, portanto, meu vício: adoro sentar-me ao volante, a saborear significativas porções de gelatina, tendo “A Cavalgada das Valquírias” como fundo musical.

Então dá-se a transformação: daquele momento em diante torno-me algo como um(a) Valquíria, ou seja, personifico o herói virtuoso. Já não mais estou em meu carro, mas monto um cavalo alado. Preciso combater o mal, a perversão, a egolatria, a arrogância, a vaidade, o egoísmo, a leviandade. Com minha espada lidero outros combatentes cavaleiros. Perseguimos e caçamos implacavelmente a escória que, graças a ordenamentos jurídicos e posições adquiridas por favorecimentos repreensíveis e duvidosos, julgam-se deuses; punimos de modo exemplar os que fazem-se paladinos e declaram-se defensores de vítimas ideadas; expurgamos a sociedade da súcia que dela busca locupletar-se. Aos que perecem na refrega, meus iguais, lhes sirvo hidromel e cerveja antes de conduzi-los ao Valhala (Salão dos Mortos).

Neste momento poderíeis perguntar-me: E quando tua luta terá fim? Responder-vos-ia por certo: Enquanto Wagner e sua música absorverem-me por completo, perdurará este meu empenho em derrotar o mal, muito embora o auxílio deste delirante processo. Parece-me que o simples fato de querer destruir o molesto já reduz sua influência perniciosa; a vontade em eliminá-lo atenua sobremodo seus efeitos danosos. Minhas lutas, no entanto, carecem de continuidade. As interrupções não tem como causa o fim da ingestão gelatinosa ou a falta de combustível, mas a necessidade em refazer-me das ofensas proferidas pelos que se fazem alvos de minha lida. A vós outros, no entanto, os ofendidos, afetados, injuriados, faço minhas as palavras de Cícero: “oderint, dum metuant”.  


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