Este meu exercício escrevinhador (ou seria rabiscador?), por vezes, faz-me presa de circunstâncias inusitadas e também embaraçosas. Creio poder falar em teofania. O inusitado seria em função de relações com seres mitológicos ou numa experiência mística; o embaraçoso estaria justamente no trato com tais deuses, ainda mais quando estes se mostram estranhos ao nosso cotidiano.
E lá estou eu a preencher páginas e
mais páginas com rabiscos, delírios, garatujas. Tratar-se-ia de escrita ideográfica?
O certo é que, naquele momento, o talento fizera-se distante e a criatividade
optara por segui-lo. Então, cerro os olhos como em sentida prece; talvez um
lamento com o intelecto a ser investigado, algo muito invasivo até para os momentos
de reflexão.
Penso ter intuído o pigarro típico de
pensadores. Leve toque em meu ombro esquerdo fez-me abrir os olhos. Lá está
ele: o corpo de ser humano com a cabeça de pássaro. O bico pontudo do ser
desconhecido move-se ágil quando ele a mim se apresenta: “Sou Thoth, um deus,
teu deus e de todos os que se entregam à sabedoria e às artes. Dizem-me um
mago, mas fato é que, quando os seres terrenos mostravam-se ágrafos, eu lhes
forneci a escrita hieroglífica, ou seja, a comunicação, o saber através da
arte”.
Eu já ouvira falar de Thoth, se bem
que em sua versão latina, Hermes Trismegisto, autor do Caibalion, isto é, um
conjunto de escritos conhecidos como Leis Herméticas, que abrigam informações
sobre ciência, artes, filosofia e religião. A contragosto, infiro que as Leis
Herméticas - 7 no total - não teriam aceitação ou reconhecimento em dias
atuais, posto que ao explicar o funcionamento do Universo, Hermes Trismegisto
dos latinos ou o Thoth dos egípcios discorre, em sua sétima lei, sobre gênero.
A título de esclarecimento fornecerei explicação resumida da tal Lei. Diz-nos o
autor que “Nenhuma criação física, espiritual ou mental é possível sem a
observação desse princípio. Absolutamente tudo tem as energias feminina e
masculina”. A busca da harmonia envolve o equilíbrio entre essas duas energias.
Todavia, gerações pós-modernas, cooptadas pelo “politicamente correto”
chamariam Thoth de homofóbico.
Mas deixemos de lado a estreiteza de
algumas mentes e continuemos em nosso descortinar deste meu, até então,
ignorado deus. Hermes Trismegisto também escrevera a famosa Tábua de Esmeralda,
onde, além de reiterar as sete Leis Herméticas, trata da criação do universo.
Nada obstante, Thoth interviu em meus pensamentos para recitar sua frase mais
conhecida: “O homem nada sabe, mas é chamado a tudo conhecer”. Semelhante
máxima revela-se bem próxima do mantra aristotélico: “Todos os homens têm, por
natureza, o desejo de conhecer”. Em meio
a meus devaneios de um “contador de histórias subdimensionado”, aquele deus com
cabeça de pássaro falou-me do mentalismo. Segundo ele, “O todo é mente; o
universo é mental”, pois que tudo parte da mente. Apliquemos, pois, tais
energias na busca da felicidade; a vida interior estaria no controle de tudo. E
a exteriorização dessa força interior dar-se-ia através de palavras. E Thoth
instava comigo pelo uso de boas palavras.
Neste momento vós me perguntais: “Mas
o que são boas palavras?” Eu vos respondo: São palavras formadoras de belas
mensagens, capazes de gerar ações reveladoras de bons atributos nos falantes e
naqueles com quem estes mantêm saudável convivência. Busquemos elencar,
portanto, algumas destas boas palavras. Ei-las: gratidão, perdão, respeito,
amor, reciprocidade, equilíbrio, união, gentileza, verdade, honestidade,
integridade etc. Eu poderia ainda elencar um sem número de verbetes, contudo,
perceber-se-á, sem muito esforço, que o ápice dos atributos cumulará não só no
mais saudável, mas no que é capaz de criar um mundo distante de tantas
imperfeições: A luz; luz que emana dos que cultuam as boas palavras, porque estas os transformam em seres de luz. E agora entendo
pertinente citar: “Vós sois a luz do mundo;...” (Mt. 5:14).
Bem, a partir deste trecho receberei a
pecha de apóstata. Fazer o que? Entendo que escritos religiosos
complementam-se. Mas como já o disse anteriormente, deixemos de lado a
estreiteza de raciocínios e concentremo-nos em algo mais saudável.
Hodiernamente as pessoas buscam a luz de modo equivocado; as pessoas querem
estar sob o foco, sob os holofotes. O moderno é ter seguidores nas redes
sociais, é ser celebridade, receber likes,
ter compartilhamento, reconhecimento etc.
Certamente essa não foi a proposta do
Evangelho, mas sim que sejamos a fonte de toda a luz que viria iluminar o
mundo, ou seja, criá-lo de modo a buscar a perfeição. Sim, nossas atitudes dão
origem a nossa própria luz e nenhuma verdadeira luz ficará apagada ou
dissimulada, afinal “não se pode esconder uma cidade sobre um monte; nem se
acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador e dá a luz a
todos os que estão na casa” (Mt. 5:14 e 15). Vossa boa luz vos servirá de
destaque e será refletida para todo o mundo, mundo este por vós criado. “Assim
resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras
e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt. 5:16). Vossas ações, geradas
a partir da vossa luz, não só influenciarão na criação de um mundo melhor, como também servirão de exemplos aos que vos são próximos. Aqui podemos perceber algo similar ao
imperativo categórico: “Age de tal forma que a máxima de tua ação possa
transformar-se em lei universal”. (Immanuel Kant).
As boas palavras reportadas por Thoth,
que orientam as boas ações, seriam nada mais que os tesouros ajuntados no céu.
Nada corroerá tuas boas ações, tuas boas obras, teu justo pensar. Teu interior
potencialmente criador é teu tesouro, e “onde estiver o vosso tesouro, ali
estará também o vosso coração” (Mt. 6:21). Tudo vai depender, evidentemente, do
modo como olhas para o mundo. A primeira coisa a iluminar o mundo é o olhar de quem
o contempla. É de teus olhos que parte a luz que alumia o mundo; essa luz
revelar-se-á por todo o teu corpo. Ora, “A candeia do corpo são os olhos; de
sorte que, se teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se porém os
teus olhos forem maus, todo o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que
em ti há são trevas, quão grande serão tais trevas!” (Mt. 6: 22 e 23). Eis o
viver na verdadeira luz! Estar sob os holofotes da vaidade ou ter prazer nos elogios
hipócritas e interesseiros é viver nas trevas
Repentinamente a sala foi invadida por
densa nuvem: fumaça, o perfume, ambiente esfumarado, uma nebulosidade estranha.
A figura de Thoth começou a dissolver-se diante de mim. Ele ainda estendeu-me a
mão; eu acedi e, em respeito, estendi-lhe a minha. Algo me foi dado. Desviei o
olhar do vulto que se desfazia e observei a palma de minha mão: ali uma antiga
pena me fora ofertada; a pena da asa de alguma águia, a pena de Thoth!
Que lindo, primo. Experiência extraordinária.
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