terça-feira, 27 de setembro de 2022

Lenda Urbana


Ainda bem jovem, talvez pelo fato de interessar-me sobremodo por literatura (realidade diversa daquela do atualíssimo contágio freireano), fui desafiado no sentido de escrever uma fábula. Difícil? As dificuldades, assim cria, seriam as mesmas no que tange à redação de qualquer texto, se bem que, em se tratando de literatura, a fábula é composição que se vale de personagens animais para narrar um fato que oculte uma verdade moral. Até aí tudo bem, mas o professor veio com um mote que, a meu ver, era extremamente complexo. Não porque eu fosse um menino, mas pela temática em si. Pois bem, a fábula deveria discorrer sobre uma situação política qualquer. Como? Pergunto-vos. Como falar de moralidade dentro do panorama político? Moralidade e política são termos excludentes... Dificuldade similar seria caracterizar animais de políticos. Naquela época não havia leis que protegessem os interesses animais... Todavia, aventurei-me. A seguir, passo a vos transcrever a antiga fábula que, não livre de críticas, foi dita invencionice, ficção, mitologia, intriga... Anos mais tarde, no entanto, a reler meus alfarrábios, passei a entendê-la, a pretensa fábula, como lenda urbana. 

“Agora eu era uma coruja que passava dias e noites a observar os habitantes daquele lugar. Era uma cidade de carneiros, todos brancos e fofinhos. A cidadezinha, encravada no cimo de pequena serra (um serrote?), tinha pouco mais de três mil habitantes (carneiros); todos viviam felizes. Até que um dos carneiros, certo dia, tomado de imensa vaidade, quis ser melhor do que os outros, seus iguais. O que fez ele, então? Começou a ler. Mas o fato de ler não é problema, e sim o que ler. Que tipo de leitura era aquela? A referida leitura corrompeu o desavisado carneiro e o transformou numa raposa. Que coisa horrível; ninguém mais o reconhecia. Ele queria governar seus ex parceiros; não queria devorá-los, mas usá-los. Sim, então dentre o rebanho escolheu aquela com quem mais simpatizava e a tomou como esposa. Feito isso, precisava também transformá-la em raposa. A esposa ovelha entregou-se aos tais livros até transformar-se na raposa consorte. Desse modo, a raposa macho assumiu a prefeitura da cidadezinha.

Politicamente, foi um desastre; o governante só pensava em tirar proveito, em se dar bem. Em ninguém confiava, exceto na esposa. E vieram os filhos, um, dois, três raposinhos... que cresciam. Os períodos eleitorais tinham lá os resultados manipulados, compra de votos e tudo mais. Raposão já governara quase oito anos; não desejava deixar o cargo. Então, de repente, como do nada, surgiu um raposo forasteiro que do casal se aproximou. Conversa vai conversa vem, tornaram-se íntimos. E raposão perguntou ao recente amigo, o recém chegado, como permanecer no cargo. O estranho respondeu como se esperasse pela pergunta, muito embora escolhesse as palavras para que o Prefeito não se aborrecesse. O mais novo aliado aconselhou uma separação do casal; ele ficaria dois mandatos no poder e a ex esposa (tudo uma grande farsa) ficaria outros dois mandatos, se bem que ele, o atual prefeito, permanecesse no controle. E para afastar quaisquer especulações por parte das ovelhas, ela se casaria (também uma grande farsa) em segundas núpcias. Raposão, coçou o queixo pontudo e perguntou com quem a esposa se casaria nesta falsa segundas núpcias. O forasteiro espreguiçou-se e respondeu que estava ali para somar.

E o plano foi colocado em ação. A raposa consorte relutou um pouco mas acabou por consentir. Durante o mandato da esposa, o marido continuava a dar as ordens. Os filhos, os três raposos, desfrutavam de cargos de confiança e comissionados. Na verdade, não de direito, mas de fato eram cargos vitalícios. Os demais cargos eram distribuídos de modo aleatório, pois Raposão, enquanto sem mandato, de casa, desempenhava o difícil papel de eminência parda. Dos mais de três mil habitantes, quatrocentos e tantos eram funcionários da prefeitura. A raposa consorte, tendo que ter vida social e estar sempre acompanhada do falso novo marido, tornou-se alcoólatra. E assim a cidadezinha viveu sua sina por mais de vinte anos quase que em total anonimato.

Aniversário da cidade. Festa na praça, tudo decorado e superfaturado. A igreja a badalar os sinos de modo a reiterar o convite aos habitantes. De longe viriam grupos de pagode, tocadores de forró pé-de-serra, casais sertanejos; todos acarneirados. Determinada hora, no coreto principal, a Sra. Prefeita, já a exalar odores e vapores etílicos, dá início a seu decorado discurso improvisado. A seu lado o novo cônjuge, o raposo forasteiro. O ex marido e ex prefeito, no lado oposto à praça, assistia cabisbaixo ao deprimente espetáculo. Enquanto a mulher vocifera ao microfone um palrar desprovido de sentido, o atual marido dá início a uma série de movimentos semelhantes a um stripper. Que loucura! Ovelhas entreolham-se; carneiros entreolham-se. Tudo estranho: o raposo marido despe-se com alguma dificuldade. Súbito não mais existe a raposa; as roupas bem justas escondiam um mastim. A mulher se cala. O enorme cão ladra e a pega pela gola da blusa; a prefeita se urina todinha. O cãozarrão então declara com a pata apontada para Raposão: - ‘Tu, esta senhora aqui (sacudiu a raposa), que nunca deixou de ser tua mulher, e teus rebentos, podeis vos considerar presos! Terminados estão os vossos desmandos’.

Não obstante minha condição de coruja, desconheço o fim que levaram as raposas, ou melhor, os ex ovinos maquiados de raposas. Parece-me que o grande mastim começou a colocar as coisas no lugar. Bem, e como aqui se trata de uma fábula - ou seria lenda urbana? - está a faltar uma moral para a história. Então lá vai: ‘Tanto o bem como o mal são frutos colhidos do conhecimento’”.    


domingo, 25 de setembro de 2022

Bonum Ruinam (Uma boa queda)

 

A arrogância caminha lado a lado com a insensatez; a vaidade anda pari passu com a inconsequência. Faz-se necessário, assim creio, a narrativa de caso concreto para melhor fundamentar minha teoria. Então vamos a ele!

Era uma vez um homem comum, alguém que se dizia metalúrgico (pelo menos andava infiltrado no sindicato dos metalúrgicos). Durante anos disse lutar por aquela classe, depois ampliou a abrangência de sua oratória para toda a classe trabalhadora. Por fim, intentou tornar-se presidente do país. Criou um partido político a verter em sua oratória o estreito laço entre ética e política. Foram muitas as vezes em que concorreu ao cargo, até que um dia... Pois bem, foi eleito e também reeleito. O país, de início, tornou-se refém das promessas feitas durante os anos de luta política do candidato. O então presidente da república tornou-se conhecido e respeitado em todo o mundo. Mas, como a quase totalidade dos políticos, ele olvidou os compromissos das promessas. Um segundo mandato foi recamado com escândalos de corrupção. Ao término do segundo mandato, foi substituído por uma ex terrorista anistiada, também filiada àquele partido dito de trabalhadores. Em verdade, nunca houve projeto político, mas sim projeto de poder; o país fora aparelhado.

O projeto de poder, entretanto, trazia velada e implicitamente certo acordo (seria acordo de cavalheiros?): o partido do ex metalúrgico ficaria a revezar no poder com um outro partido maquiado de oposição. E como o acordo fora quebrado, houve um golpe muito bem planejado: a sucessora sofreu impeachment, tendo seus direitos políticos preservados - elegibilidade - o que revelava a gritante armação. A Constituição Federal fora agredida com a anuência do então Presidente da Suprema Corte. Com o impeachment, assume a presidência alguém sem o menor cacoete de administrador para cumprir o mandato tampão. É bom ressaltar que parte do golpe foi dar início a uma operação no nível federal, onde políticos ligados ao partido do ex metalúrgico eram investigados, acusados e presos. As acusações pareciam obedecer a certo preceito, ou seja, eram baseadas num recurso assimilado pelo direito penal conhecido como “delação premiada”. Este fora um projeto aprovado pela câmara e senado e teve como autor o presidente tampão, quando deputado federal. Mas a coisa fugiu ao controle: as delações começaram a envolver pessoas do dito partido de oposição agora no poder.  

E o escândalo tomou vulto; a população pode ver o nível de corrupção instalado no país. Após várias acusações, julgamento e tal, o ex presidente e ex metalúrgico foi preso e condenado. Após o término do mandato tampão, chegou ao poder o inesperado; alguém que não fazia parte dos esquemas, ardis e conchavos. A situação conheceu seu momento maior. Pois bem, este governo inusitado agradou. Todavia, foi desaprovado pelos “tradicionais agraciados” pelo esquema instalado, do qual destacam-se, além dos políticos de carreira e ministros da suprema corte, artistas, músicos, jornalistas, a grande mídia e mais uma gama de apadrinhados. Os partidos políticos ditos de “oposição” passaram a contemplar, cotidianamente, o Supremo Tribunal Federal com pedidos de liminares, processos e denúncias contra o Presidente com a maior aprovação popular. Então teve lugar o ativismo judicial que, a pretextar lealdade à Constituição, agride-a de modo contumaz. E o povo presenciou o cúmulo do absurdo: o Tribunal Constitucional, a acatar as reivindicações da “canalhocracia” em pânico, resolveu anular todos os julgamentos do ex metalúrgico e ex presidente transcorridas já em segunda e terceira instâncias, com a falácia juridiques de que as cortes que o sentenciaram não eram abalizadas a fazê-lo. Bem, as acusações não foram retiradas, mas o agora ex detento tornou-se elegível.

A disputa, segundo as pesquisas, mostra-se acirrada, se bem que, como acreditar em institutos de pesquisa associados à mídia tradicional? Mas a coisa parece já estar delineada, caso haja, de fato, lisura nas apurações e operacionalidade das urnas eletrônicas. O Presidente inusitado deve ser reeleito.

Uma coisa preocupa-me; melhor, mais de uma: O ex metalúrgico, ex presidente e ex presidiário ainda não se convenceu de que seu momento é passado. Sua arrogância, vaidade e presunção tornam-no insensato, impedem-no de uma melhor percepção; a revolta por suposta injustiça o bloqueia cognitivamente (saberá ele o que é isso?). Minha primeira preocupação: Ele não suportará uma derrota nas urnas. Creio ter chegado o momento de torcer para que alguém o torne inelegível antes do pleito. A prisão seria a desculpa ideal para ele não ter que justificar-se diante de si mesmo. Minha segunda preocupação: se o ex detento - não eleito - vier a óbito, vitimado, talvez, por um enfarto fulminante, a esquerda, a mídia, os artistas, músicos e seus sequazes culparão aquele que conquistou o respeito da opinião pública. Só restará, então, o STF indiciar o chefe do executivo por homicídio qualificado.   

sábado, 24 de setembro de 2022

Classificados

 

Ainda não sei ao certo se o que sinto é raiva ou decepção. Recobro a calma e explico-me: Faço parte daquele extenso número de pessoas que vivem no “desvio” (entenda-se desemprego), haja vista a pandemia, a guerra, etc. Se bem que minha realidade preceda, e muito, aos recentes eventos sócio-econômico-sanitários. Pois bem, creio que o “nada fazer” proporcione um “fazer qualquer coisa”, inclusive a manter o foco na busca alucinante por um possível emprego. E para isso servem jornais. Sim, na qualidade de “vintage”, confesso-me um antecedente do Sine ou Linkedin. Então, descubro uma verdade: A busca obstinada nos leva a descobrir o não buscado. (Devo colocar entre aspas? Ora bolas, a frase é de minha autoria!)

Não raramente surpreendo-me a folhear jornais, mesmo que antigos e/ou desatualizados. Atenção aos que primam por críticas! (lacradores, na verdade). Mesmo na era da informatização e do QR Code, existem jornais impressos! Estes, creio eu, são publicados para satisfazer à geração que ainda valoriza as relações pessoais. E lá estava eu, em plena praça, sob sol escaldante, a ler a página de empregos/classificados. De repente a grande surpresa: o anúncio declarava ter duas vagas para professor de filosofia. O que é isso minha gente? Não consegui desviar meus olhos do impresso. Gostaria de ter grifado, mas a caneta ficara em casa. Vi-me assaltado por uma hipersudorese, ou como dizem os nordestinos, eu suava mais que tampa de chaleira.

Depois de refazer-me, deixar de arfar, ofegar, palpitar ou coisa parecida, passei a mão diversas vezes pela cabeleira branca e tonsa, dispondo-me a ler o anúncio com a devida atenção. Eu queria calma, sim, muita calma naquela hora. A primeira oferta dizia: “Busca-se filósofo, graduado em filosofia ou professor de filosofia para ministrar palestras em sede de partido político. O objetivo é aliar o estudo filosófico às demandas socioeconômico-políticas, a ter por base a democracia, a visão iluminista e o estado democrático de direito. Dar-se-á preferência ao candidato que tiver especialização em Filosofia da práxis”. Eu não sabia se ria ou chorava. A filosofia fora degradada; estava sendo usada para doutrinação. Quis xingar alguém, mas os passantes não deveriam ser penalizados... Com a revolta a capitular, optei por ler o segundo anúncio antes de dar fim ao periódico. E lá estava: “Procura-se filósofo bem antenado, elegante, simpático, intelectualizado, para compor júri de programam de auditório. Salário condizente com a capacidade avaliativa e a boa aceitação do público”  

Bem, eu gostaria de escrever, mesmo que um breve final, mas faltam-me palavras. Infelizmente, em face do exposto, podemos apenas traçar um perfil mal delineado da filosofia e seus representantes: ou ferramenta de doutrinação ou make-up de banalização. Eis uma das consequências do projeto gramsciano: a vulgarização do conhecimento.     

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Saul e a política

 

Sempre pareceu-me arriscado discorrer sobre entidades bíblicas, haja vista a carência de informações, mesmo em face das benvindas atualizações fornecidas pela arqueologia e antropologia. E a história de Saul, primeiro rei de Israel, não seria diferente, pois data aproximadamente de 3.060 anos. Pois bem, Saul, filho de Quis, homem de posses da tribo de Benjamim, fora escolhido por Deus para governar Israel, isso porque o povo clamava por um rei. E por mais incrível que possa parecer, foi a procura por jumentas extraviadas que possibilitou a aproximação entre o jovem Saul e o profeta Samuel, este já alertado pelo Senhor acerca do encontro com o benjamita, a menor das tribos de Israel.

Além de informar a Saul sobre o paradeiro das jumentas, Samuel convidou-o para sua casa. Lá o visitante ocupou lugar de honra à mesa, facultando ao anfitrião o estreitamento de laços. Ao raiar do dia seguinte, Samuel despertou o jovem hóspede que dormira no eirado, levou-o às cercanias da cidade e o ungiu. Após a sagração, Saul foi instruído sobre as pessoas que encontraria, sobre os procedimentos a serem realizados e o fato de profetizar quando apossado pelo Espírito do Senhor. Holocausto e ofertas pacíficas fizeram-se necessárias. A presença do Senhor, doravante junto a Saul, faria dele um outro homem.

Em Mispá, dias mais tarde, Samuel convocou o povo e indicou Saul como rei de Israel, afinal o povo hebreu exigira ser governado por um rei; o Senhor fora, de certo modo, preterido pelo povo escolhido. Muito embora a indicação não ter sido do agrado de todos (filhos de Belial, homens malignos sempre existiram), Saul mostrou-se bastante competente ao vencer a batalha contra os amonitas. Então Samuel, mais uma vez reuniu o povo e, em Gilgal, Saul foi proclamado rei perante o Senhor. Com o passar do tempo, o rei, jovem desconhecido e de pequena família, ganhou a confiança do povo em face dos resultados de suas campanhas militares vitoriosas contra os inimigos de Israel.

Neste ponto, uma pergunta mostra-se pertinente: Saul era apenas bom estrategista e guerreiro ou, de fato, homem temente a Deus? Os frequentes atritos e inúmeras batalhas com os filisteus acabaram por revelar um outro Saul. Não o Saul religioso, mas o Saul político; não a política conceituada por Aristóteles como a ciência do bem governar, mas a política próxima de nossos dias, isto é, a arte do tornar possível. Exemplo disso está quando os filisteus reuniram-se para atacar os soldados de Israel. Saul, ainda em Gilgal solicitara a presença de Samuel. Com o atraso do profeta, Saul resolve, ele mesmo, oferecer sacrifícios, algo de competência exclusiva dos sacerdotes. Interrogado por Samuel, que chegara logo depois, asseverou que vira o povo espalhando-se e o exército filisteu na iminência de um ataque. Ou seja, Saul coloca suas preocupações acima de tudo; ele pareceu usar dos sacrifícios ao Senhor para tirar proveito pessoal; o Senhor, nesse caso, tornou-se apenas um meio para atingir determinado fim.

Em outra oportunidade, Saul recebe de Samuel ordens expressas para castigar Amaleque pelo que fez a Israel; ter-se oposto a Israel quando este subia do Egito. O versículo é bem explícito: “Vai, pois, agora e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver; nada lhe poupes, porém matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos”. (1 Samule15: 3) Saul convocou o povo, dirigiu-se à cidade de Amaleque, armou emboscadas e atacou. Todavia, manteve vivo Agague, rei dos amalequitas, assim como poupou os animais de boa procedência. Ao ser interpelado por Samuel, que fora alertado por Deus, declarou Saul que havia dado ouvidos à voz do Senhor e ter seguido o caminho por Ele indicado, ao trazer Agague preso. Neste passo fica evidente que a intenção de Saul, muito embora argumentar valendo-se da referência ao Senhor, foi de colocar os interesses do Estado - sua própria vontade - acima dos interesses de Deus. Acerca dos animais, alegou Saul que o povo tomara do despojo ovelhas e gados para oferecer em sacrifícios ao Senhor em Gilgal. E aqui está presente a tônica do populismo: Saul busca agradar ao povo - uma espécie de governo estilo pão e circo - apesar das ordens expressas de Deus. O rei de Israel revelou-se como um primeiro exemplar dos politiqueiros atuais, ou seja, um populista. A orientação platônica mostra-se oposta: “O bom governante é aquele que faz o que o povo precisa e não o que o povo quer”.

A vanglória de Saul o afastou definitivamente de Deus, e ele tinha ciência disso. O rei não esconde sua preocupação com a opinião do povo; ele foi invadido por profunda vaidade.  Depois de ter rasgado a orla do manto de Samuel disse: “Pequei; honra-me, porém, agora, diante dos anciãos do meu povo e diante de Israel; e volta comigo para que adore ao Senhor teu Deus”. (1 Samuel 15: 30) Atentai para a declaração de Saul: “... adore ao Senhor TEU Deus”; somente o Deus de Samuel, não mais o dele. Saul abandonou a fé em prol da política e governou por 42 anos; período marcado por diversas guerras, ornadas por momentos de depressão, manifestação de raiva e loucura, bem como o aconselhamento de feiticeiras.   

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Esboço fitoterápico

 

E mais uma vez regredi no tempo; um simples vegetal encarregou-se de fazê-lo. Calculo, por alto, que já não olhava para uma folha de saião há mais de 50 anos. Mas a planta, a folha-da-fortuna, não viera sozinha; vários foram os personagens que lhe serviram de companhia. Lá estavam as tias, a mãe e a velha avó; todas militantes no tratamento fitoterápico tão em voga nos anos cinquentas, sessentas...setentas? Não! Minha família não dispunha sequer de remediada fortuna; o tratamento com ervas era algo recursal. Remédios sempre foram caros; já as folhas e medicamentos homeopáticos eram vendidos na “bacia das almas”. (Vali-me da expressão em homenagem a vovó, se bem que ela mesma o evitasse por considerá-lo ultrapassado).

Veio-me à mente, e de modo vago, o herbanário ou ervanário, próximo de nossa casa, que usava um tipo de avental sempre sujo ou manchado; sei lá. Recordo-me não só do saião, mas também do pinhão roxo, da babosa, da erva-doce, do capim-santo, da cidreira. Dos homeopáticos lembro-me do acônito, da beladona, da arnica, do hamamelis... Dentre os vegetais, o que eu mais gostava era de cana-do-brejo. Na falta do que fazer, creio eu, vivia a mastigar cana-do-brejo. Talvez isso explique meus cálculos renais; o excesso de oxalato de cálcio. Mas o saião tinha emprego quase que constante, haja vista auxiliar no tratamento da gastrite, má digestão, ter efeito diurético, ser antibacteriano, ajudar no combate a problemas respiratórios, na tosse, na bronquite...

Meu reencontro com a folha de saião deu-se em virtude de certa senhora dispor-se a auxiliar-me no meu “passar mal”. Sim, eu tivera uma “crise” de refluxo; coisa horrível, sensação horrível; um desastre sociossanitário que obrigava-me a despender à rodo (excedi-me?) expressiva quantia para obter o medicamento. A dita senhora falou-me em fazer um chá e mostrou-me a folha. E lá estava o saião; não o saião recurso medicamentoso, mas o saião companheiro de infância. De um modo intuitivo comecei imediatamente a devorar algumas das folhas e... pasmai: o mal gastroesofágico despareceu quase que instantaneamente.   

Bem, vencida a crise de refluxo e de saudosismo, acho melhor parar por aqui, muito embora meu prazer tenha se resumido a esta inusual fitoterapia literária. Todavia, a se levar em conta os óbices do mundo atual, posso ser acusado - quem o sabe? - de falsidade ideológica e/ou exercício ilegal da medicina. “Se persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado”.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Desabafo


Podeis até duvidar, mas afianço-vos de que o mundo perdeu o sentido. Cercania e além mudaram de cores; a vida assimilou outros tons. As conversas são entediantes; as pessoas só falam de si mesmas. No contágio social, uma dissimulada agressividade. As artes não mais confortam, não mais trazem alento. Na música falta o vigor; até mesmo os clássicos se me tornaram maçantes. O teatro é um misto de tragicomédia e farsa. A sétima arte dissipa técnica e esbanja um realismo artificial. Nos esportes é evidente o promover de eus. Passeios e viagens mascaram divagações. Na cultura, o perigo de contágio por comorbidades.

Dou-vos o direito de duvidar, mas meus únicos prazeres hoje são: tomar sorvete e comer chocolate.


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Der Weingeist schläft


 

De repente novo destino: Alemanha, Hamburger Hafen, o porto de Hamburgo. Nossa carga de suco de laranja abasteceria parte do mercado alemão. Hamburgo, Baixa Saxônia, cidade portuária localizada às margens do rio Elba. O porto, o maior do país, é conhecido como “Portal do Mundo”, Weltportal. Na condição de turista, depois de degustar um café e observar a paisagem do lago Binnenalster, deixei-me vagar pela avenida Jungfernstieg até a parte antiga da cidade, Altstad, onde tive a oportunidade de orar em uma igreja do século XVIII, a Igreja de São Miguel, oder Kirche San Miguel.

Todavia, minhas orações não obtiveram êxito para impedir a sedução. Explico-me: Fui convidado e não consegui resistir à tentação de conhecer uma vinícola, vinícola esta localizada na cidade de Werder, distante 150 Km de Hamburgo. E lá estava eu, neófito no país, na língua, nos costumes e na enologia, abancado em certo taxi guiado por motorista espanhol. El conductor, a pesar de hablar mucho, hizo que el viaje fuera divertido y rápido. Súbito: Llegamos! - disse o motorista a sorrir.

À entrada da vinícola, senti-me como a ingressar na recém visitada igreja de São Miguel. Em verdade, nós, os quatro companheiros de vida marítima, fomos envolvidos por um ambiente singular. Entre os enormes barris de carvalho, com capacidades próximas dos 360 litros, algumas luzes mortiças a indicar passagens escurecidas. No cruzamento dos corredores, em geral, a mesa iluminada por única vela a disponibilizar uma faca e um naco de queijo. Em minha primeira aula de enologia aprendi que, embora o vinho não estrague com o calor, a incidência de luz e/ou altas temperaturas podem estimular reações químicas que alterariam as características da bebida.

Nosso sommelier, de nacionalidade alemã, conversava conosco em inglês. Pareceu-me pessoa bastante comedida, muito embora o esforço em mostrar-se simpático. Dentre uma explicação ou outra nosso anfitrião perguntou-nos, já que pela vez primeira numa vinícola, se tínhamos alguma vontade oculta. Any hidden will? Sem hesitação, ergui meu braço e falei do desejo de deitar-me no chão, de boca aberta, para experimentar um pouco do vinho diretamente do barril. Herr Diehl (o nome de nosso anfitrião) sorriu, apontou para o barril próximo e disse: Deite-se! Assim o fiz. Enquanto aguardava o momento azado e lúdico para abrir a boca e provar do líquido, certo pensamento apresentou-se-me: eu, marítimo visitante brasileiro, estava a trocar nosso inocente suco de laranja por algumas goladas de vinho. Esdrúxula permuta! Não pude furtar-me ao sorriso.

A experiência durou poucos segundos; eu não suportaria uma maior quantidade da bebida. Houve alguns risos, o princípio de alguma morna galhofa. Enfim, esse seria o apanágio da cultura latina e subtropical. Contudo, nosso sommelier levou o dedo à boca como a exigir silêncio. A frase, quase mergulhada em sussurro, que acompanhou o gesto foi: Der Weingeist schläft! - o espírito do vinho dorme! E para concluir meu aprendizado: som, vozes ou ruídos altos causam vibrações; tais vibrações não são bem vindas, pois provocam movimentações nas membranas que recobrem a superfície do líquido, o que pode corromper a fermentação, e esta modificar o sabor característico.

Terminada a visita, terminado o intensivo curso... sem diploma, sem méritos ou encômios. Retornamos a Hamburgo no carro guiado pelo falante espanhol. Agora era a voz do motorista que vibrava altissonante; aquilo também não era bem-vindo; aquela pessoa mutilava-me os pensamentos; aquilo modificava-me, fermentava-me. Meu espírito não buscava dormir; apenas queria alguma paz... Não sei se a inconveniente companhia precedida por uma aula de enologia pode ser responsabilizada pela mudança que se fez em mim.  Prova disso foi a frase que não mais me abandonaria: Der Weingeist schläft. O espírito do vinho dorme. Creio que por conta desta frase tenha me voltado ao estudo da língua alemã.    


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Conceito e Preconceito

 

Está em alta atribuir a oponentes, adversários e rivais em pensamento a alcunha de preconceituoso, isto é, aquele que tem ou age baseado em preconceitos. Mas o que seria preconceito? Apenas intolerância? Não, pode tratar-se de uma ideia forjada antecipadamente, carente de seriedade ou imparcialidade. Então pergunto: e o conceito? Simples: conceito é uma opinião, ideia ou juízo que se faz de algo ou alguém. Ora, nesse caso, a opinião, a ideia ou o juízo, em si mesmos, pressupõem pré-conceitos, ou seja, algo que antecede o conceito. Será? Bem, Hans Georg Gadamer assevera-nos que todo conceito é forjado a partir de um preconceito (pré-conceito). O preconceito não é um obstáculo à verdade, mas sim condição da própria verdade.  

Atentai, ó raça de indolentes pensadores: ao não gostar de certo ritmo, ao não assimilar certos valores, ao não admitir certas atitudes, as pessoas não estão a demonstrar preconceitos, mas sim manifestando seus próprios conceitos, algo que deve ser observado, segundo o aporte do respeito, ínsito na tão decantada democracia. Infelizmente, a nocividade de uma abrangente parcela da sociedade, estabeleceu, a partir de ideologias outras, uma “coleção” de gostos, valores, juízos, sabores, estes embasados numa aberração chamada “politicamente correto”. Diante disso, o apodo de preconceituoso vem presentear àqueles que, não partidários desse modismo nas relações sociais, passam a ser encarados como desafetos. Isso explica porque nossa sociedade esbanja preconceituosos.   

E para não dizer que tudo está perdido, afirmo: conceitos e preconceitos são cíclicos, ou melhor, já que originados em ideias e/ou opiniões sofrem mudanças com o passar do tempo. Exemplo: houve uma época - anos 20 - que ao catar-se (escolher-se) o arroz, dizia-se catar marinheiros. Era comum chefes de família proibir suas filhas de sequer cumprimentarem um marinheiro (militar da Marinha, independente da patente). Nos dias de hoje - se bem que militar tem uma visão diferenciada - alguém entraria com um projeto de lei junto ao parlamento com intuito de criminalizar tal declaração, onde o declarante seria julgado e penalizado. Todavia, os marinheiros sobreviveram a isso e a otras cositas mas. Portanto vós, que repentinamente fostes alertado de que sois vítimas de preconceito, repeti comigo o antigo e eficaz ditado: “Os cães ladram e a caravana passa”.

Sim, se mesmo assim decidirdes permanecer na condição de vítimas, tenho outro ditado: “A caravana ladra e a cachorrada apenas acompanha”.