quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Der Weingeist schläft


 

De repente novo destino: Alemanha, Hamburger Hafen, o porto de Hamburgo. Nossa carga de suco de laranja abasteceria parte do mercado alemão. Hamburgo, Baixa Saxônia, cidade portuária localizada às margens do rio Elba. O porto, o maior do país, é conhecido como “Portal do Mundo”, Weltportal. Na condição de turista, depois de degustar um café e observar a paisagem do lago Binnenalster, deixei-me vagar pela avenida Jungfernstieg até a parte antiga da cidade, Altstad, onde tive a oportunidade de orar em uma igreja do século XVIII, a Igreja de São Miguel, oder Kirche San Miguel.

Todavia, minhas orações não obtiveram êxito para impedir a sedução. Explico-me: Fui convidado e não consegui resistir à tentação de conhecer uma vinícola, vinícola esta localizada na cidade de Werder, distante 150 Km de Hamburgo. E lá estava eu, neófito no país, na língua, nos costumes e na enologia, abancado em certo taxi guiado por motorista espanhol. El conductor, a pesar de hablar mucho, hizo que el viaje fuera divertido y rápido. Súbito: Llegamos! - disse o motorista a sorrir.

À entrada da vinícola, senti-me como a ingressar na recém visitada igreja de São Miguel. Em verdade, nós, os quatro companheiros de vida marítima, fomos envolvidos por um ambiente singular. Entre os enormes barris de carvalho, com capacidades próximas dos 360 litros, algumas luzes mortiças a indicar passagens escurecidas. No cruzamento dos corredores, em geral, a mesa iluminada por única vela a disponibilizar uma faca e um naco de queijo. Em minha primeira aula de enologia aprendi que, embora o vinho não estrague com o calor, a incidência de luz e/ou altas temperaturas podem estimular reações químicas que alterariam as características da bebida.

Nosso sommelier, de nacionalidade alemã, conversava conosco em inglês. Pareceu-me pessoa bastante comedida, muito embora o esforço em mostrar-se simpático. Dentre uma explicação ou outra nosso anfitrião perguntou-nos, já que pela vez primeira numa vinícola, se tínhamos alguma vontade oculta. Any hidden will? Sem hesitação, ergui meu braço e falei do desejo de deitar-me no chão, de boca aberta, para experimentar um pouco do vinho diretamente do barril. Herr Diehl (o nome de nosso anfitrião) sorriu, apontou para o barril próximo e disse: Deite-se! Assim o fiz. Enquanto aguardava o momento azado e lúdico para abrir a boca e provar do líquido, certo pensamento apresentou-se-me: eu, marítimo visitante brasileiro, estava a trocar nosso inocente suco de laranja por algumas goladas de vinho. Esdrúxula permuta! Não pude furtar-me ao sorriso.

A experiência durou poucos segundos; eu não suportaria uma maior quantidade da bebida. Houve alguns risos, o princípio de alguma morna galhofa. Enfim, esse seria o apanágio da cultura latina e subtropical. Contudo, nosso sommelier levou o dedo à boca como a exigir silêncio. A frase, quase mergulhada em sussurro, que acompanhou o gesto foi: Der Weingeist schläft! - o espírito do vinho dorme! E para concluir meu aprendizado: som, vozes ou ruídos altos causam vibrações; tais vibrações não são bem vindas, pois provocam movimentações nas membranas que recobrem a superfície do líquido, o que pode corromper a fermentação, e esta modificar o sabor característico.

Terminada a visita, terminado o intensivo curso... sem diploma, sem méritos ou encômios. Retornamos a Hamburgo no carro guiado pelo falante espanhol. Agora era a voz do motorista que vibrava altissonante; aquilo também não era bem-vindo; aquela pessoa mutilava-me os pensamentos; aquilo modificava-me, fermentava-me. Meu espírito não buscava dormir; apenas queria alguma paz... Não sei se a inconveniente companhia precedida por uma aula de enologia pode ser responsabilizada pela mudança que se fez em mim.  Prova disso foi a frase que não mais me abandonaria: Der Weingeist schläft. O espírito do vinho dorme. Creio que por conta desta frase tenha me voltado ao estudo da língua alemã.    


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