Posso vos afiançar que não se trata de denominação honorífica ou algo que o valha; nada está ligado a meu currículo acadêmico; careço de título ou nome e muito menos exibo ou desfruto de alguma fidalguia. Apenas sou intitulado, aliás algo bastante peculiar em dias de hoje. A mim são atribuídos adjetivos, substantivos adjetivados (não necessariamente nesta ordem) e pasmai: até neologismos. Bem, e para que o presente introito não dê margem a mais uma designação bizarra, adianto-me com novo parágrafo.
De início, devo confessar que não sou
muito fã dessa tecnologia que certamente nos expõe; à Internet dou importância
relativa. Sou contra o uso de aplicativos, senhas, impressões dactiloscópicas,
transferências bancárias, arquivos documentais, etc. Evito comentar certas
particularidades por redes sociais que, afinal de contas, só a mim interessam;
evito postar fotos que só tem importância para mim e para os meus. Sou daquela
teoria ultrapassada de que “roupa suja se lava em casa”. E de ninguém escondo
meu estado de apreensão. Pois bem, em conversa com um desses jovens que escovam
os dentes pela manhã com o aparelho celular, recebi como resposta que “minha
visão retrógrada, além de tudo, depõe contra o (isso é no mínimo risível) desenvolvimento
fisiológico humano. Ainda com cara de idiota, pergunto por quê? E a resposta: “o
cérebro realiza sinapses porque, em verdade, somos um aglomerado de algoritmos.
A celeridade do mundo moderno exige que o cérebro humano se utilize de recursos
para que o viver seja possível”. E os
adjetivos: quadrado, reacionário, caturra.
Uma outra característica que ostento é
ser admirador da arte e cultura humanas. Não só adoro livros, mas coleciono
selos, moedas, cédulas, cartões; interesso-me, enfim, pelo que pode explicar
meu passado. Certa feita, recebi de presente uma pequena escultura de Poseidon.
Ora, creio que o fato de ter passado tanto tempo na Marinha justifique meu interesse
pelo deus grego responsável pelos mares. E lá estava Poseidon sobre minha
escrivaninha em meu gabinete. Então recebi a visita de certo aluno, que além de
filosofia, cursava teologia em determinado seminário. Na semana seguinte, pelos
corredores da faculdade, corria à solta os títulos a mim designados: idólatra,
sacrílego, apóstata.
Em face da idade, e por já apresentar
alguma disfunção orgânica, decidi, até mesmo para evitar o uso frequente de
muitos medicamentos, reorganizar minha dieta. Pois bem, optei por evitar a ingestão
de carne. Não, não sou vegano; alimento-me com ovos, leite e derivados. Mas os
predicativos parecem nos preceder. Ora, os predicativos, nesse caso, são sempre
do sujeito; nunca do objeto. Pelo menos resta-me o consolo de que nas frases em
que meu nome figure, o verbo utilizado será necessariamente o de ligação. Bem,
e como por vezes os adjetivos fazem-se ausentes, ou velados, meus críticos se
valem de neologismos. Aqui vai: ovolácteovegetariano. (Acho que é assim que
escreve).
Bem, pelo exposto, já podeis traçar
meu perfil. Aqui valho-me da terminologia do politicamente correto para falar
de minha idade: eu diria meia idade, isto é, melhor idade. Então, por dedução,
deveis concluir que cultuo alguns valores tidos como ultrapassados; sou do
tempo em que as canções tinham por base a musicalidade tonal, ou seja, melodia,
harmonia e ritmo; arte e cultura para mim tem por fito trazer alento, conforto;
educação para mim é determinante, pois deve haver respeito, hierarquia; nas
relações cotidianas, não abro mão da integridade, honestidade, justiça: posições
de destaque na sociedade devem-se dar em função do mérito; politicamente,
venero minha pátria e gostaria que meu país figurasse em primeiro lugar no
mundo. Em suma, chamam-me fascista.
Gostaria de saber sinceramente em que ponto a humanidade se perdeu? Pois de uns tempos para cá nos tornamos apenas embalagens, perdemos nossos rostos, conteúdos e individualidades; recebemos rótulos e somos assim organizados em prateleiras. Produtos a direita, e a esquerda.
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