quinta-feira, 18 de março de 2021

Passatempo

 

Agora, que a vida teima em nada me apresentar como novidade, busco preencher o ócio fazendo-me diletante. Não só a literatura é tratada como atividade terapêutica, mas a música faz-se ouvir amiúde pelas salas que me servem de refúgio. A arte de escrever, por sua vez, tem como origem memórias um tanto ofuscadas: algo distante, um quase esquecimento, retalhos vãos, enfim... E dentre estes fugidios lapsos ocorre-me a atividade derivada favorita de meu pai, creio que também para fugir do marasmo que teima em nos visitar ao fim da jornada. Sim, o hobby tem por finalidade fazer com que o tempo escoe; não há divertimento, o hobby é apenas refectivo.

Sim, papai tinha um hobby: a fotografia, algo que de certo modo aproximava-se de seu ganha pão. Toda sua vida profissional fora ligada à Fotogrametria; fora operador restituidor, e isso na época em que os aparelhos óticos demandavam perícia de seus operadores. Os originais, feitos à mão em papel canson, eram capazes de expressar relevo, haja vista a exatidão com que se traçavam as curvas de nível. Mas esta profissão extinguiu-se, assim como tantas outras. Hoje delega-se aos computadores toda e qualquer responsabilidade pelas informações contidas na altimetria e planimetria.       

E nos fins de semana papai voltava-se à fotografia. Devo vos alertar que à época, as máquinas fotográficas exigiam do fotógrafo conhecimentos hoje esquecidos graças à tecnologia que substituiu ASAs e DINs por Pixels. O então fotógrafo deveria preparar sua câmera atentando para luminosidade, velocidade, sensibilidade do filme, distância do objeto, etc. A máquina de papai era uma Adox de fabricação alemã; eu cheguei a manuseá-la. Mas seu hobby não se limitava a fotografar; ele também revelava os filmes e as fotos que eventualmente tirava.

Um esquecido banheiro cedera lugar a acanhado laboratório. Na porta de entrada, no alto e presa ao alisar, a luz, que quando acesa, servia de alerta para o aviso em nanquim: Não entre! Dentro do recinto, por ocasião do uso, a escuridão que me cativava, só minimizada pela vermelhidão de certa lâmpada. E lá estavam os equipamentos: a copiadora manual, a pequena guilhotina, um ampliador, prateleiras com caixas de papel fotográfico, bandejas e vidros bojudos para colocar reveladores, fixadores, rebaixadores, etc.

Neste momento dou-me conta de que não sei o que foi feito desse mini laboratório que trazia tanto prazer a papai. Meu velho morreu faz dezoito anos... Curiosa nossa existência: durante a vida damos tanto valor a certas coisas... e quando morremos essas coisas são vendidas ou doadas ou jogadas no lixo. Os materiais de nossos hobbies deveriam nos acompanhar além túmulo; ter o mesmo destino dos artefatos que acompanhavam o sepultamento dos antigos faraós. Todavia, alguém, por certo, justificará o sumiço dos petrechos dizendo-o apenas um passatempo; nada tão importante.    

Um comentário:

  1. A profissão poderia ser mantida, pois há lugares inóspitos que os satélites só tem fotografias áreas que necessitariam ser mapeadas, nesses locais o carro do google não é bem vindo, exemplo disso são algumas comunidades.

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