domingo, 31 de março de 2013

O fim do mundo



Com certa constância surgem rumores de um iminente apocalipse; são as mais diversas interpretações que se apegam a possíveis revelações teleológicas, apoiadas não raramente em premissas teológicas, e que soem provocar as mais díspares reações nos seres ditos racionais.

Minha interpretação - e aqui me permito fazê-la, haja vista a quantidade de exegeses apresentadas - pauta-se não em documentos, mas sim em lucubrações insensatas, posto que toda especulação tem como ponto de partida a insensatez. Todavia, minha lúdica e inconsequente interpretação é de um fim do mundo, e não do mundo mesmo. Se me voltasse ao mundo em si, estaria incorrendo nos topos erráticos das ciências sociais, isto é: a filosofia tenta entender o mundo, a sociologia quer explicar o mundo, a psicologia quer justificar o mundo. E assim por diante.

De volta ao assunto: O mundo já acabou, ou melhor, o mundo acaba diariamente. O mundo acaba para aqueles que dele se apartam, seja pela morte ou pela descrença, seja pela alienação ou pela revolta. O mundo desfaz-se pelo cismar constante dos que sobre ele se debruçam e tentam esquadrinhá-lo. O mundo é essa alucinação organizada, um caos sistematizado, irreversível e recalcitrante. Ao nos confrontarmos com o dissimulado caos e com suas características de irreversibilidade e recalcitrância expondo-o, ele desfaz-se, desconstrói-se, rui, evola-se, furta-se.

E quando o ser humano acaba para o mundo? Quando ele abandona a condição de ser no mundo; quando do mundo se retira, se extrai. A possibilidade única de viver no mundo é pela total disponibilidade; é disponibilizar-se de si, e, portanto, entender o mundo como indisponível. O mundo para estes não tem existência de fato.

O mundo tem e terá existência eterna somente enquanto fabulação, enquanto expectativa de melhora. Seres que optam por estar e partilhar da existência mundanal tornar-se-ão eternos, tanto quanto o mundo que veneram. Para estes, a ausência material do mundo - o objeto a ser adorado - se lhes assemelha à morte; nesse caso, o fim do mundo. O mundo, contudo, pode até transformar-se, mas seu fim está longe e distante de um peremptório apocalipse.

terça-feira, 26 de março de 2013

Insetos e suricatos


Em geral, seres humanos são classificados como homo sapiens sapiens, isto é: racionais. Isto porque há 40.000 anos, diferentemente de outros animais, passou a fazer uso de utensílios mais sofisticados, valendo-se de materiais como ossos e a fabricar roupas e esculturas. Os utensílios passaram a ser decorados; surgiram adereços, enfeites, colares. Confeccionaram também imagens em barro ou marfim, instrumentos musicais e pinturas.

Outrossim, essa mesma racionalidade permitiu ao ser humano viciar-se no inexistente, ter esperança no improvável, crer no imponderável. O vício no inexistente fez com que colocassem um sorriso estúpido nos lábios da Gioconda (Mona Lisa para os íntimos); a esperança no improvável fez com que bradassem por liberdade; a crença no imponderável fez com que estimulassem a rebelião de Lúcifer. Eis o demérito da razão. Seres humanos, muito embora portadores de racionalidade, habitam um universo kafkiano: todos são insetos. E, na qualidade de fleumáticos insetos são afastados, dedetizados, pisados, aniquilados. Mas, “por quem?”, perguntam os incautos. De início tínhamos deuses, depois heróis, com eles vieram as leis e a moral, depois alguns que se disseram representantes de um único Deus, e veio a técnica e a política.

Contudo, dentre os insetos, surgem (poucos na verdade) aqueles com postura de suricatos, ou seja, num constante esquema de revezamento, mostram-se atentos, vigilantes, protetores de sua espécie. Há que se reclamar a atenção dos possíveis leitores para relevante detalhe: a postura de suricatos não lhes exclui da classificação de insetos; são insetos com postura diferenciada que tentam abandonar o mundo real e adentrar o ideal. Mas como o ideal mostra-se inatingível, suricatos passam a viver numa dimensão intermediária: na verdade, uma espécie de limbo sem caráter escatológico; algo como um demiurgo pós-moderno.

Ora, desde o surgimento dos primeiros exemplares de sapiens sapiens o mundo passou por patentes transformações; hoje a tecnologia domina. As máquinas calam os homens, os domina. Podemos, sem receio, declarar a possibilidade de abandonar a escrita; imaginemos um mundo terreal totalmente ágrafo. Nossa dependência das máquinas é tão flagrante, que se consertarmos a máquina, consertamos a própria vida. Com isso, assassinamos a sensibilidade. Sim, o perigo reside nas máquinas. No entanto, as máquinas serviram para fazer com que um expressivo número de insetos pretendesse adquirir a postura de suricatos. E com que recurso? Valem-se das próprias máquinas.

Então os insetos publicam livros em demasia, voltam-se para as artes, criam novas expressões populares. Todavia, o que os estimula não é a descrença nos valores impostos, não a atenção, não a vigilância, mas sim uma inveja gritante, um ressentimento doentio pelo status da postura de suricatos; querem a qualquer custo partilharem o limbo não escatológico, querem ostentar o título de novos demiurgos. Esquecem, contudo, de que se sublevam por conta de uma mesma manipulação. Então a literatura torna-se frívola, as artes tornam-se medíocres, a cultura e suas expressões se vulgarizam. E ipso facto, posturas de suricatos e a dimensão demiúrgica também se banalizam.

segunda-feira, 25 de março de 2013

A síndrome de Omar




Diz-nos a história, através de seus historiadores, que a Biblioteca de Alexandria foi queimada em 646 d.C., por ordem de Amr ibn al-As, governador do Egito, em nome do califa Rashidun Omar ibn al-Khattab. O argumento utilizado pautava-se na estreita visão de que “O livro de Deus é-nos suficiente”. E ainda: “Não há necessidade de outros livros, senão O Livro”. Isto é, o Corão. Trocando em miúdos: se o assunto estivesse no Corão, seria redundante; se não estivesse no Corão, seria supérfluo. Portanto, justificou-se a queima.
Parece que nos dias de hoje, em universidades federais, e mais especificamente nas áreas de humanas, a síndrome do califa está bastante presente. Se o assunto não tiver uma abordagem socialista, ou marxista, ou de uma esquerda casuísta, deve ser deixado de lado; se tiver, isso é o bastante, e tudo mais deve ser esquecido.
Então nós vemos socialistas que vivem e se locupletam sob a tutela do capitalismo; expoentes que se destacam citando incansavelmente Marx e Engels, mas que nunca leram o Capital. Suas conquistas literárias resumem-se ao Manifesto Comunista, a panfletagem e a palavras de ordem, chavões etc.

Eis a intelectualidade!

domingo, 24 de março de 2013

A hora do planeta



Há confirmação de que 22 capitais e 72 municípios vão apagar suas luzes por uma hora, com o propósito de alertar para o perigo do aquecimento global. Bela Iniciativa! Ou mero expediente dissimulador?

Vejamos: na verdade, a proposta visa uma conscientização popular, na pessoa de cada cidadão ou cidadã. Mas a conscientização individual remete a uma autoconsciência. Ora, autoconsciência é ter consciência de si. Consciência de si é o reconhecimento, dentre outras coisas, de suas limitações, de suas falhas, delírios, vícios, conflitos. O fato de se ter consciência de si não elimina qualquer problema social ou ecológico, até porque o problema em si é eminentemente econômico. Problemas sociais só são eliminados ou com educação, ou com a repressão das leis, ou com imperativos morais, ou com o temor religioso. Não obstante, ainda posso citar o grande Aristóteles: “O caráter não se modifica com o hábito”. Lembremo-nos de que somos um grupo de Macunaímas, ou seja, heróis sem caráter.

Como se falar em autoconsciência em uma sociedade pautada no individualismo? Grandes centros urbanos - o alvo da mobilização “A hora do planeta” - fizeram das relações algo totalmente impessoal; a impessoalidade culminou na exacerbação do indivíduo. A democracia pode até tentar, através de um número elevado de leis e códigos arrefecer e/ou neutralizar as ações excludentes, onde o indivíduo busca somente seus interesses, mas, por certo, não conseguirá doutrinar consciências. E, por favor, esqueçam o “politicamente correto”!

Agora, sejamos mais pragmáticos: nos grandes centros, caso tenham olvidado os criadores e cultores do movimento, onde se localizam os “impérios econômicos”, a proposta ou resultado será inócuo, seja por conta da segurança, seja por conta das transações do mundo globalizado. Geradores entrarão em funcionamento para manter os sistemas em funcionamento. Nos grandes condomínios de luxo, geradores também devolverão a tranquilidade de seus habitantes. Estes estão, de fato, preocupados com o aquecimento global ou algo que o valha? Façam-me o favor! Quem sairá prejudicado com esse enredo? A população ignorante, manipulada e bem intencionada que deixará de assistir, de bom grado, sua novela ou ao futebol; a população que depende do transporte público e que irá se expor aos marginais e facínoras que lotam a crônica policial, deixando-se imolar como aves em abatedouros.

Parece-me que o expediente em questão, esse que busca uma maciça conscientização, não passa de mais uma tentativa vil, covarde e mesquinha para catapultar alguns que buscam nada mais que o reconhecimento público, no intento de tornarem-se celebridades. 

sábado, 23 de março de 2013

Mais uma vez a educação



Acabo de ler uma notícia sobre educação. Eis a manchete: “Estudo mostra que 44% das escolas do país não têm TV ou computador”. E em subtítulo: “Maioria dos colégios possui apenas condições elementares de funcionamento”. O que a matéria chama de “condições elementares de funcionamento” seriam salas, cadeiras, mesas, quadro negro, água, banheiro etc. Curioso: quantas pessoas, hoje destaques em nossa sociedade, se valeram tão somente das ditas “condições elementares”?
Algo me reclama a atenção: Machado de Assis, José da Alencar, Rui Barbosa, Joaquim Manoel de Macedo, Castro Alves, Raul Pompeia, Clarisse Linspector, Cecília Meireles, Manoel Bandeira, Mário de Andrade, José Lins do Rego, Jorge Amado e tantos outros e outras, expoentes de nossa literatura, certamente estudaram distantes de TVs, computadores e tablets. Por que será que os novos pedagogos insistem nesta parafernália tecnológica como fundamento à educação? Muito se tem divulgado a “importância” dessas engenhocas pós-modernas como ferramenta didática, mas em outras pesquisas recentes os resultados foram desabonadores, haja vista o resultado das provas de redação do ENEM. Notas expressivas foram atribuídas a alunos que transcreveram receitas culinárias e hinos de clubes. Eis a importância da TV no processo educacional! Acredito ser muito fácil e cômodo colocar a responsabilidade em máquinas ou recursos tecnológicos, na tentativa de mascarar o evidente fracasso de todo o sistema de ensino do país. 
Se TVs e computadores são, de fato, de suma importância, então deixemos nossos filhos em casa prostrados de frente às TVs e esqueçamos as escolas, que muito cobram por serviços que não são prestados.  
E onde ficam os livros, os cadernos, a tabuada, o caderninho barato de caligrafia? Por que não investir maciçamente e massivamente em laboratórios e em bibliotecas? Quando falo em laboratórios, falo em instrumentos científicos e não em “bijuterias eletrônicas descartáveis”; quando falo em bibliotecas não me reporto aos paradidáticos sintetizados e comentados que abundam nas prateleiras de livrarias “fashion”.  Falo em clássicos, em textos originais que instigam o aluno ao questionamento.
Quanto à formação de professores, pergunto: Por que nos cursos de pedagogia não se ensina algo além das teorias marxistas, Paulo Freire, o construtivismo russo, Foucault e Deleuze? Caso meu leitor ainda não saiba, cursos de pedagogia são ministrados nos fins de semana, a título de “adequação a nossa realidade”. Se não fosse trágico, se abeiraria do cômico.
Bem, aqui começo a ser chamado de reacionário ou fundamentalista. Reacionário o sou, e de modo confesso. Mas o pior fundamentalista é o pós-moderno, ou seja, aquele que defende o que não mais acredita, por se tratar do único expediente plausível usado como égide para mascarar sua própria incompetência e dissimular sua má consciência. 

sexta-feira, 22 de março de 2013

HABEMOS PAPA



E eis que uma fumaça branca escapa de certa chaminé da Basílica de São Pedro. Surge um arauto em roupa branca e proclama: Habemos Papa!
E o papa é brasileiro. Enfim se fez Justiça. Não só Deus é brasileiro, mas também o Papa é brasileiro. O povo aclama, pessoas saem às ruas, se abraçam efusivamente. Ferrenhos inimigos políticos se confraternizam, lares desfeitos se reestruturam - homens e mulheres perdoam os deslizes dos cônjuges. Edir Macedo beija a estátua de uma santa. Coríntias e Palmeiras deixam de lado suas divergências; flamenguistas e vascaínos agora se unem em uma só nação futebolística. O Big Brother Brasil acaba com o paredão; homófobos e travestis bailam ao som de “I will survive”. A polícia de pacificação comemora junto aos traficantes; os pontos de venda de drogas fazem uma promoção, atentando para os imperativos do Marketing.  
O país para, a nação experimenta regozijo. Mesas de negociações são abandonadas, trabalhadores não querem mais aumento, cai a taxa de IPI, cai o ICMS, cai o IR. Celebridades abraçam e beijam seus fãs, proporcionando um inaudito prazer ao celebridófilos. Grandes escolas de samba do Rio e São Paulo se reúnem e projetam um grande encontro para celebrar o evento: a bateria será a de Padre Miguel (nada melhor do que um padre para solidificar um encômio ao papa). E têm passistas da Portela, da Mangueira, do Salgueiro, União da Ilha, Imperatriz, Gaviões, Vai Vai, Nenê de Vila Matilde etc. O voo será disponibilizado pela TAM em parceria com a Gol; o combustível por conta da Petrobrás.
E ao som do tarol, do repique, do pandeiro e tamborim alçam voo nossas aeronaves tupiniquins. A AMBEV disponibiliza a cerveja; CEASAS de todo o Brasil enviam o feijão, a linguiça, o paio, o toucinho, orelha, pé, costela, o arroz, a laranja, a couve, a farinha e a pinga. E lá se vão nossos representantes legais - uma nova casta de sacrodiplomatas recitando homilias e encíclicas em ritmo de samba.
A aterragem em Roma é tranquila. Mas a intranquilidade toma conta da guarda do Vaticano: mulatas seminuas transitam de lá para cá tendo pandeiros como marcação para exibirem suas naturais e desmedidas sensualidades. Uma grande tenda é armada na Praça de São Pedro. Nela se prepara a feijoada, mulheres em azáfama cortam carnes, verdura e temperos. Enormes depósitos de isopor armazenam a cerveja. O batuque é ininterrupto. Vozerio e gritos se tornam contumazes. Turistas outros fotografam. Por que será que turista adora este tipo de coisas? O Brasil esbanja sua cultura: da Bahia seguiu a Timbalada, dos subúrbios do Rio seguiram cantores e dançarinas de Funk. O movimento Hip Hop também enviou representantes. Mais adiante, depois de um saboroso e quente acarajé, uma banda de Axé ensaia emocionada: “E vai rolar a festa, vai rolar; o povo do gueto mandou avisar...”. Pelos arredores representantes do forró tecno-brega inventam passos decadentes e entediantes. Acolá - “over there” - (aqui o termo inglês seria melhor empregado, haja vista a língua vernácula ser desconhecida pela maioria dos brasileiros) o novo ídolo nacional pensa em homenagear o Sumo Pontífice com seu estrondoso sucesso: “Ai se eu te pego, assim você me mata...”. Nada pecaminoso, apenas uma risível blasfêmia, ou melhor, o sincretismo singular idiossincrásico da cultura brasileira: o herético e o místico. Repórteres de todo o mundo perseguem os brasileiros que perambulam pelo Estado do Vaticano. Alguém ensaia uma entrevista com um rapper brasileiro: “What do you think about this choice”? E nosso entrevistado responde de modo singular: “O Papa é pop, e o pop não poupa ninguém”!
Há expectativa no ar: próximo ao almoço, o Papa receberá seus fieis súditos e patrícios. A Rede Globo conseguiu com exclusividade a tão instada entrevista com o Papa. E quem será o entrevistador? Pedro Bial? Não, ele é muito BBB para tratar com Sua Santidade. O Bonner? Não! A Fátima está atendendo seus entrevistados e as crianças não podem ficar sozinhas. Faustão? Não, ele não deixaria o Papa falar. Jô Soares? Não! Temem pela máxima: “Não querendo interromper, mas já interrompendo” e o chileno Alex servindo whisky batizado ao santo Padre naquela caneca cafona. Sim, surge um nome famoso; é consenso, alguém muito viajado e desenrolado: Galvão Bueno!
E tem início a entrevista: “Bem, amigos da Rede Globo, estamos em frente a Basílica de São Pedro e tenho a meu lado nada mais nada menos do que Sua santidade, o Papa Zezinho I, a maior autoridade já delegada a um brasileiro. E quem diria, essa nação tão sofrida e desacreditada. Este sim é maior que Pelé, que Tostão, que Guga, que Oscar, que Falcão, e não aquele mané do Maradona”. “Ele é o cara”! - Uma pausa - “Arnaldo Cesar Coelho, Casagrande, Júnior, qual a impressão de vocês acerca dessa escolha? Os arcebispos acertaram ou vocês indicariam outra pessoa”? - Pausa - “Sim, e Vossa Santidade torce para algum time em particular aqui na Itália”? - Pausa - “Uma outra questão: já que falamos em escolha, o que o senhor acha da escolha do Felipão? Será que o Neimar vai se adaptar em jogar ao estilo de Ronaldinho Gaúcho”? E um sincero rogo: “Por favor, Vossa Santidade, abençoa o Rubinho”!
Nesse ínterim ouve-se uma explosão. Pessoas se benzem e fazem o sinal da cruz. Correria, pânico, gritaria. Até o som da bateria emudeceu. Saraiva desce dos céus, fumaça, aquele cheiro acre de enxofre. O céu se torna avermelhado, depois escure; têm início os sinais. Não, nada de atentado terrorista. Nem foi o Sílvio Berlusconi com seu séquito de ninfetas que tenta retomar o poder. Alguém quebrou o primeiro selo. O quinto cavaleiro cruza os céus montado em seu cavalo malhado. Seu nome? Estupidez! Enfim é chegado o Apocalipse. Que seja bem-vindo!

quinta-feira, 21 de março de 2013

O gramofone ou dos sentidos




Não é raro depararmo-nos com objetos que com os quais há muito deixamos de ter contato. Contudo, não se pode dizer que a falta de contato proporciona o esquecimento, pelo menos no que toca às relações. Já com os objetos inanimados parece-me uma verdade incontestável. E foi nesse clima que me reapresentaram o gramofone.
Mas o que vem a ser um gramofone? Agulha que desbrava sulcos e transmite vibrações para uma lâmina, vibrações essas que, quando amplificadas por uma corneta, emite sons. Simples, apenas ciência, algo bem distante da cômoda e impessoal tecnologia. Mas o que ouço não são apenas vozes, cânticos, música; não! Revejo cenas, lugares, situações, circunstâncias; percebo aflições, percebo emoções, sonhos, anelos. Realizados? Proust reclama nossa atenção para os aromas, pois percebera a recriação das cenas de sua infância através de saborosas madeleines. Deficientes visuais se utilizam do tato para identificar rostos, sentimentos; na verdade criam imagens a partir do contato. Paladares também nos remetem a imagens e situações vividas.
Teriam os sentidos essa finalidade? Ou melhor: aromas, sons, imagens, paladares, contatos seriam mecanismos para propiciar nossa viagem no tempo? Na verdade, não há uma busca pelo tempo perdido, mas sim o fato de nos perdemos no tempo. Os sentidos, então, seriam um recurso para nosso reencontro com um tempo passado.
Uma questão se me torna incômoda: reformar, restaurar, reconstruir, desenvolver, superar, inovar, reformular etc. seriam ações que implicariam ruptura? Romper com o tempo não é de algum modo uma tentativa dele se abstrair? Em verdade, o rompimento é desconstrução. Como desconstruir o passado, aquilo que de fato foi? A única realidade palpável é o passado. O presente ainda está sendo; está em seu eterno vir-a-ser; não é de fato. O futuro é mera perspectiva, é especulação, portanto, não deve ser cogitado. O real é o que foi, não o que é, ou o que será.
Ora, se o real é o passado, qual a finalidade dos sentidos, se estes atuam sempre no momento presente? Em verdade, os sentidos seriam instrumentos coletores de dados que alimentam a memorização, memorização esta com finalidade precípua de nos manter na única realidade possível: o passado. Quando falo passado, não me reporto ao imemoriável, ao longínquo, (isso cabe à História, muito embora a mesma tenha sido forjada através dos sentidos) mas ao passado de nossas próprias criações, de nossas lembranças. São essas recordações que nos permitem escrever nossas histórias individuais. Enfim, com a memorização, vivemos sempre a construir não o presente ou o futuro, mas o passado. Por que tentarmos desconstruir nosso único esteio e criação?
Quando o passado se nos mostra agradável, sentimos saudades; eis o saudosismo em toda a sua abrangência. Mas quando o passado se nos revela constrangedor, cáustico ou pérfido experimentamos algum desconforto; aqui se justificaria a ruptura. Há não poucos os que sustentam a ilusão de que seu passado estaria inconcluso; a esses a inquietação se manifesta como crises de consciência avassaladoras.
E lá está o velho gramofone: ouço as vozes de antanho, revejo as cores de ontem, os aromas de ontem, figurinos e rostos vetustos e também percebo as angústias de outrora.