Em geral, seres humanos são
classificados como homo sapiens sapiens,
isto é: racionais. Isto porque há 40.000 anos, diferentemente de outros
animais, passou a fazer uso de utensílios mais sofisticados, valendo-se de
materiais como ossos e a fabricar roupas e esculturas. Os utensílios passaram a
ser decorados; surgiram adereços, enfeites, colares. Confeccionaram também
imagens em barro ou marfim, instrumentos musicais e pinturas.
Outrossim, essa mesma racionalidade
permitiu ao ser humano viciar-se no inexistente, ter esperança no improvável,
crer no imponderável. O vício no inexistente fez com que colocassem um sorriso
estúpido nos lábios da Gioconda (Mona Lisa para os íntimos); a esperança no
improvável fez com que bradassem por liberdade; a crença no imponderável fez
com que estimulassem a rebelião de Lúcifer. Eis o demérito da razão. Seres
humanos, muito embora portadores de racionalidade, habitam um universo
kafkiano: todos são insetos. E, na qualidade de fleumáticos insetos são
afastados, dedetizados, pisados, aniquilados. Mas, “por quem?”, perguntam os
incautos. De início tínhamos deuses, depois heróis, com eles vieram as leis e a
moral, depois alguns que se disseram representantes de um único Deus, e veio a
técnica e a política.
Contudo, dentre os insetos,
surgem (poucos na verdade) aqueles com postura de suricatos, ou seja, num
constante esquema de revezamento, mostram-se atentos, vigilantes, protetores de
sua espécie. Há que se reclamar a atenção dos possíveis leitores para relevante
detalhe: a postura de suricatos não lhes exclui da classificação de insetos;
são insetos com postura diferenciada que tentam abandonar o mundo real e
adentrar o ideal. Mas como o ideal mostra-se inatingível, suricatos passam a
viver numa dimensão intermediária: na verdade, uma espécie de limbo sem caráter
escatológico; algo como um demiurgo pós-moderno.
Ora, desde o surgimento dos
primeiros exemplares de sapiens sapiens
o mundo passou por patentes transformações; hoje a tecnologia domina. As
máquinas calam os homens, os domina. Podemos, sem receio, declarar a
possibilidade de abandonar a escrita; imaginemos um mundo terreal totalmente
ágrafo. Nossa dependência das máquinas é tão flagrante, que se consertarmos a
máquina, consertamos a própria vida. Com isso, assassinamos a sensibilidade. Sim,
o perigo reside nas máquinas. No entanto, as máquinas serviram para fazer com
que um expressivo número de insetos pretendesse adquirir a postura de
suricatos. E com que recurso? Valem-se das próprias máquinas.
Então os insetos publicam
livros em demasia, voltam-se para as artes, criam novas expressões populares.
Todavia, o que os estimula não é a descrença nos valores impostos, não a
atenção, não a vigilância, mas sim uma inveja gritante, um ressentimento
doentio pelo status da postura de
suricatos; querem a qualquer custo partilharem o limbo não escatológico, querem
ostentar o título de novos demiurgos. Esquecem, contudo, de que se sublevam por
conta de uma mesma manipulação. Então a literatura torna-se frívola, as artes
tornam-se medíocres, a cultura e suas expressões se vulgarizam. E ipso facto, posturas de suricatos e a
dimensão demiúrgica também se banalizam.
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