terça-feira, 26 de março de 2013

Insetos e suricatos


Em geral, seres humanos são classificados como homo sapiens sapiens, isto é: racionais. Isto porque há 40.000 anos, diferentemente de outros animais, passou a fazer uso de utensílios mais sofisticados, valendo-se de materiais como ossos e a fabricar roupas e esculturas. Os utensílios passaram a ser decorados; surgiram adereços, enfeites, colares. Confeccionaram também imagens em barro ou marfim, instrumentos musicais e pinturas.

Outrossim, essa mesma racionalidade permitiu ao ser humano viciar-se no inexistente, ter esperança no improvável, crer no imponderável. O vício no inexistente fez com que colocassem um sorriso estúpido nos lábios da Gioconda (Mona Lisa para os íntimos); a esperança no improvável fez com que bradassem por liberdade; a crença no imponderável fez com que estimulassem a rebelião de Lúcifer. Eis o demérito da razão. Seres humanos, muito embora portadores de racionalidade, habitam um universo kafkiano: todos são insetos. E, na qualidade de fleumáticos insetos são afastados, dedetizados, pisados, aniquilados. Mas, “por quem?”, perguntam os incautos. De início tínhamos deuses, depois heróis, com eles vieram as leis e a moral, depois alguns que se disseram representantes de um único Deus, e veio a técnica e a política.

Contudo, dentre os insetos, surgem (poucos na verdade) aqueles com postura de suricatos, ou seja, num constante esquema de revezamento, mostram-se atentos, vigilantes, protetores de sua espécie. Há que se reclamar a atenção dos possíveis leitores para relevante detalhe: a postura de suricatos não lhes exclui da classificação de insetos; são insetos com postura diferenciada que tentam abandonar o mundo real e adentrar o ideal. Mas como o ideal mostra-se inatingível, suricatos passam a viver numa dimensão intermediária: na verdade, uma espécie de limbo sem caráter escatológico; algo como um demiurgo pós-moderno.

Ora, desde o surgimento dos primeiros exemplares de sapiens sapiens o mundo passou por patentes transformações; hoje a tecnologia domina. As máquinas calam os homens, os domina. Podemos, sem receio, declarar a possibilidade de abandonar a escrita; imaginemos um mundo terreal totalmente ágrafo. Nossa dependência das máquinas é tão flagrante, que se consertarmos a máquina, consertamos a própria vida. Com isso, assassinamos a sensibilidade. Sim, o perigo reside nas máquinas. No entanto, as máquinas serviram para fazer com que um expressivo número de insetos pretendesse adquirir a postura de suricatos. E com que recurso? Valem-se das próprias máquinas.

Então os insetos publicam livros em demasia, voltam-se para as artes, criam novas expressões populares. Todavia, o que os estimula não é a descrença nos valores impostos, não a atenção, não a vigilância, mas sim uma inveja gritante, um ressentimento doentio pelo status da postura de suricatos; querem a qualquer custo partilharem o limbo não escatológico, querem ostentar o título de novos demiurgos. Esquecem, contudo, de que se sublevam por conta de uma mesma manipulação. Então a literatura torna-se frívola, as artes tornam-se medíocres, a cultura e suas expressões se vulgarizam. E ipso facto, posturas de suricatos e a dimensão demiúrgica também se banalizam.

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