Não é raro depararmo-nos com objetos que com
os quais há muito deixamos de ter contato. Contudo, não se pode dizer que a
falta de contato proporciona o esquecimento, pelo menos no que toca às
relações. Já com os objetos inanimados parece-me uma verdade incontestável. E
foi nesse clima que me reapresentaram o gramofone.
Mas o que vem a ser um gramofone? Agulha que
desbrava sulcos e transmite vibrações para uma lâmina, vibrações essas que, quando
amplificadas por uma corneta, emite sons. Simples, apenas ciência, algo bem distante
da cômoda e impessoal tecnologia. Mas o que ouço não são apenas vozes, cânticos,
música; não! Revejo cenas, lugares, situações, circunstâncias; percebo
aflições, percebo emoções, sonhos, anelos. Realizados? Proust reclama nossa
atenção para os aromas, pois percebera a recriação das cenas de sua infância
através de saborosas madeleines. Deficientes
visuais se utilizam do tato para identificar rostos, sentimentos; na verdade
criam imagens a partir do contato. Paladares também nos remetem a imagens e
situações vividas.
Teriam os sentidos essa finalidade? Ou
melhor: aromas, sons, imagens, paladares, contatos seriam mecanismos para
propiciar nossa viagem no tempo? Na verdade, não há uma busca pelo tempo
perdido, mas sim o fato de nos perdemos no tempo. Os sentidos, então, seriam um
recurso para nosso reencontro com um tempo passado.
Uma questão se me torna incômoda: reformar,
restaurar, reconstruir, desenvolver, superar, inovar, reformular etc. seriam
ações que implicariam ruptura? Romper com o tempo não é de algum modo uma
tentativa dele se abstrair? Em verdade, o rompimento é desconstrução. Como
desconstruir o passado, aquilo que de fato foi? A única realidade palpável é o
passado. O presente ainda está sendo; está em seu eterno vir-a-ser; não é de
fato. O futuro é mera perspectiva, é especulação, portanto, não deve ser
cogitado. O real é o que foi, não o que é, ou o que será.
Ora, se o real é o passado, qual a finalidade
dos sentidos, se estes atuam sempre no momento presente? Em verdade, os
sentidos seriam instrumentos coletores de dados que alimentam a memorização,
memorização esta com finalidade precípua de nos manter na única realidade
possível: o passado. Quando falo passado, não me reporto ao imemoriável, ao
longínquo, (isso cabe à História, muito embora a mesma tenha sido forjada
através dos sentidos) mas ao passado de nossas próprias criações, de nossas
lembranças. São essas recordações que nos permitem escrever nossas histórias
individuais. Enfim, com a memorização, vivemos sempre a construir não o
presente ou o futuro, mas o passado. Por que tentarmos desconstruir nosso único
esteio e criação?
Quando o passado se nos mostra agradável,
sentimos saudades; eis o saudosismo em toda a sua abrangência. Mas quando o
passado se nos revela constrangedor, cáustico ou pérfido experimentamos algum
desconforto; aqui se justificaria a ruptura. Há não poucos os que sustentam a
ilusão de que seu passado estaria inconcluso; a esses a inquietação se
manifesta como crises de consciência avassaladoras.
E lá está o velho gramofone: ouço as vozes de
antanho, revejo as cores de ontem, os aromas de ontem, figurinos e rostos vetustos
e também percebo as angústias de outrora.
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