segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Caminhos que levam a lugar nenhum

 

A primavera chegou ainda ontem. Calor, suor ...  afinal é Brasil, clima tropical, hemisfério sul. Recordo-me com dificuldades de que já li em algum lugar algo como: “tudo se dilui abaixo dos trópicos”. Esta talvez seja a versão mais elitizada do mote “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Bem, e o que fazer em tais circunstâncias? A casa está imersa em si mesma; as pessoas habitam seus próprios vazios. Torna-se imprescindível, assim acredito, o caminhar: um caminhar lento, tranquilo; um fazer quiescente. Poxa, como eu gostaria de passear por bosque qualquer (seria a síndrome do Chapeuzinho Vermelho?), um lugar de clima ameno, uma floresta talvez.

A falar em floresta, recordo-me de Martin Heidegger e seu Holzwege, traduzido para o português por “Caminhos de Floresta”. Sim, quisera poder desfrutar de um similar de Floresta Negra, um lugar cheio de deuses, andar sem rumo por suas trilhas. Quisera poder errar por tais veredas... Não sei ao certo, ocorre-me que o ambiente pode influenciar no tema lucubrado, por mais que nos preocupemos com determinado assunto. Seria, de fato? Quando caminhamos não escolhemos o que pensar; apenas pensamos. Heidegger ocupou-se até mesmo em saber “O que é uma coisa?” “Was ist eine Ding?”

Diferentemente de Heidegger, até porque distante da Floresta Negra, dou azo a meus pensamentos. Permito-me formar a ideia de certo ambiente voltado às artes, porém com designe de cafeteria. O título? “Arte, café e açúcar”. E já que a língua alemã faz-se presente, que tal “Kunst, kaffee und Zucker?” Sim, lá, neste espaço por mim idealizado, enquanto apreciássemos “vernissages”, independente se pintura, literatura, teatro, dança, música, etc., poder-se-ia degustar um bom café, algo bem brasileiro. Ter-se-ia outrossim uma boa carta de vinhos, alguns frios e, quiçá, uma invejável coleção de whiskies. Na ausência de atividades artísticas, seria disponibilizada música clássica ou um bom jazz, livros, jornais e tabuleiros de xadrez... Mas o que é isso? Estarei em transe?

Pelo visto, estes são “Caminhos que levam a lugar nenhum”. A propósito, o título do presente texto é homônimo a designação em francês para a tradução do Holzwege. Sim, preciso afastar-me deste pensar que conduz ao delírio; preciso do diverso. Torno-me, então, atento ao entorno. Ouço um toque de clarim, ou seria uma simples corneta? Claro, trata-se de ordem unida; estou de frente a um quartel. Busco e rebusco em minha já depauperada memória os esquecidos conhecimentos musicais. Tento escrever uma pauta. A clave de Sol, compasso 4/4. E tem lugar minha partitura: a mínima colocada no terceiro espaço indica um dó; dois tons e meio abaixo outra mínima colocada na segunda linha retrata a nota sol; mais três tons e meio abaixo outra mínima, esta já no compasso seguinte, temos um outro dó, só que uma oitava abaixo. Para finalizar, a colcheia inscrita no terceiro espaço, faz com tenhamos aquele primeiro dó, só que com um quarto de duração em relação ao primeiro. Está pronta: é o toque de descansar. Para o descanso basta isso: menos de dois compassos...

Aliás, sinto-me fatigado; preciso do tal descanso. Que tal sentar-me e partilhar de boa companhia? Dizem os cínicos, entretanto, que, após certa idade só temos por certa a companhia de metástases. Não, não quero pensar nisso. Política? Não, eu já não penso em política desde que ela afastou-se do conceito aristotélico de “arte do bem governar”. Economia? Também não; irremediavelmente pensar-se-ia em política. E súbito sou lançado a um recente passado: a minha então vidinha de educador. Que lástima! Envergonho-me. O que fiz! Ensinei o quê? Muni-me de livros, que agora melhor analisados, porque relidos de modo descompromissado, mostram-se tendenciosos, enganosos, nefastos. Rogo o perdão de meus diletos pupilos, ex-discípulos. Insisto: Perdoai-me ex-alunos! Hoje, e sem muito ponderar, percebo que a educação é uma grande farsa. Educadores e educandos desempenham papéis; uns fingem ensinar, outros aprender. São tantas as variantes, as exigências e lacunas a serem preenchidas para que alguém consiga transmitir qualquer conteúdo, que a educação mostra-se impraticável, donde a minha mais recente máxima: “O conhecimento é intransmissível”.     

Bem, já que sem companhia, penso em amigos. Mas os tenho em número muito reduzido. Eram três; um morreu. Que Deus o guarde! Quanto aos dois restantes, o mais próximo reside a quase três mil quilômetros de distância, no sudeste do país; o outro reside na cidade do Cairo, no Egito. As verdadeiras amizades, de fato, são poucas. Aristóteles discorre com propriedade sobre o tema em sua “Ética à Nicômacos”; inegavelmente um belíssimo texto. Étienne de la Boétie, em seu “Discurso sobre a servidão voluntária”, também vincula a amizade à ética. Ele chega a declarar que quem não for ético, não tem amigos, apenas comparsas. Evidentemente que a ética tratada por eles envolve valores. Todavia, nos dias de hoje, de modo generalizado, quem for ético só colecionará inimigos. Infelizmente, vivemos o ápice da inversão valorativa.

O valor, em dias atuais, parece limitar-se ao cifrão, ao acúmulo de bens, ao capital... Pergunto-vos: Por onde andará o bom caráter, a honestidade, a integridade? Creio que, distante de valores, perde-se qualquer critério avaliativo, seletivo; reclamo vossa atenção para o fato de que o mérito está em baixa, caiu em desgraça. As pessoas vinculam os valores erradamente ao “moralismo de ocasião” e o lançam na conta da religião. Percebestes que a cristofobia virou moda? E por falar em moda, será que existe algo mais cultuado do que telefones celulares e redes sociais?

Fica evidente o contraste com os personagens de minha juventude! Os predicativos a mim destinados são vintage, ultrapassado, jurássico, etc., etc., etc. Pergunto-vos: será que os jovens têm tanta necessidade de estarem online, logados, ou coisa assim? Não seria uma espécie de fuga? Parece-me que as redes sociais cobrem as lacunas deixadas por uma educação (aqui entendida de forma ampla) irresponsável, ociosa, estapafúrdia, descompromissada. As pessoas querem apenas a posse, e para isso não medem esforços; desconhecem o que seja limites, escrúpulos. Penso na comunicação quando menino; vivíamos felizes ou não, informados ou não, realizados ou não, gratificados ou não, mas sem a necessidade de estarmos “pendurados” 24 horas por dia em aparelhos telefônicos. Ainda me recordo do único número de telefone que toda minha família utilizava...

Alguém grita a meu lado na tentativa de vender bilhetes “premiados” da loteria. Nesse caso, volto a pensar no desafio diário de alguns para enriquecer sem esforço e no número de telefone de minha avó materna. Podeis achar estranho os caminhos de meu pensar, mas surpreendo-me a fazer uso de meus parcos conhecimentos do “jogo do bicho”: os seis algarismos referentes ao número telefônico de então correspondem aos grupos do camelo, do galo e do peru. Com efeito, este meu caminhar conduz-me a lugar nenhum!  

Nenhum comentário:

Postar um comentário