sábado, 31 de outubro de 2020

QR Code

 

De fato, a tecnologia se nos impõe de modo assustador. Mas, que digo eu? A tecnologia mostra-se invasiva, nos constrange; e isso quando mais se fala em liberdades. Imaginai que agora os documentos são digitais: identidade, título de propriedade veicular, carteira de habilitação, título de eleitor, etc. O porte e o uso do aparelho celular já se mostra imprescindível. Não sei porque, mas só consigo lembrar do sinal apocalíptico ínsito à mão direita dos desavisados. O telefone celular - equipado com câmera, é lógico - acaba, inclusive, de incorporar um novo atributo: o de leitor e decodificador. Como???

Calma, explico-me. Estamos às voltas com os atualíssimos QR Codes. Sim, pode parecer exagero, mas se ainda não houver um QR Code para dada coisa ou função, em breve haverá. Vejamos: existem restaurantes que, em nome da pandemia - onde o sentido do tato foi execrado - aboliram o Menu e a Carta de Vinhos; os clientes aproximam seus respectivos aparelhos celulares daquele emaranhado de pontinhos e a informação fica disponibilizada no telefone. Puxa, que bom! Não? Conheço um cidadão - eu não diria amigo, pois posso me complicar - que é contumaz frequentador de... diria... lupanares. Pois bem, alguns destes estabelecimentos oportunizam logo à entrada um QR Code; os clientes usam a câmera de seus celulares para escolherem a provisória “diva de seus sonhos”.

Aqui serei, por certo, chamado de exagerado, mas já soube, à boca pequena, que o recurso foi testado em banheiros públicos, mas sem muito êxito. Ora bolas, o cidadão chega com alguma urgência à porta dos banheiros e não consegue identificar o gênero, ou seja: por que não o famoso par de luvas ou a cartola e a bengala para diferenciarem o feminino do masculino? Seria essa a finalidade da ideologia de gêneros? Enfim, descobriu-se após uma semana de testes, que havia mais urina na entrada do hall dos banheiros do que dentro deles.

E a coisa não para por aí: o número de divórcios tem aumentado consideravelmente em face do uso de QR Codes na relação entre casais. Imaginai que uma senhora distinta, mãe de família, trabalhadora e tudo o mais, resolveu criar um QR Code para indicar ao marido sua “disponibilidade” ao intercurso sexual. Acontece que o marido não tem celular, só toma banho de água fria e se lava com sabão de coco. Em suma, o cara, um legionário, além de ser taxado de misógino, está respondendo a processo por tentativa de estupro, de feminicídio, etc., etc., etc.

Estarei a potencializar o recurso? Talvez, mas o certo é que hoje não podemos mais assistir TV sem a proximidade do aparelho celular, pois o QR Code está sendo usado em larga escala. E eu pensava que o código de barras seria nosso limiar! Imaginai o uso do código bidimensional para comprar passagens aéreas, marcar assentos no avião, reservar hotéis, etc. E num clima de descontração, buscai imaginar um casamento pautado em QR Codes. Sim, o casal conhece-se através do recurso; por ele tem lugar o primeiro encontro e trocadas as primeiras impressões. E vem o amor ... ou seria paixão? O Code marca o casamento. O padre só atende aos apelos advindos do Code. As bodas - convites, buffets, vestuário - tudo deve-se ao QR Code. Neste momento arrisco-me: a escolha dos filhos deverá ser orientada pelo QR Code?

Como não pretendo alongar-me, devo informar-vos de que, em breve, os leitores assíduos (será que os tenho?) de meus textos terão que fazê-lo através de um Code. Eu já me predisponho a estudar um pouco para criar meus códigos. Sim, bem lembrado: as escolas, com o advento do EAD - Ensino à Distância - lançaram mão do recurso. Todavia, a pergunta que não quer calar passeia incauta por minha mente: será que as pessoas tão voltadas às demandas tecnológicas ainda saberão ler, compreender e interpretar um simples e inofensivo texto?

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Hérnia de hiato

 

Muito embora o título valer-se de terminologia empregada pela medicina, o assunto em pauta, por mais incrível que pareça, envolve ortoépia. “Ortoépia?” Exclamam os incircuncisos gramaticais (ou analfabetos funcionais). E curiosos questionam: “Mas o que é isso?” – ou então – “Ainda se usa?” Sim, e até por uma questão estética, palavras bem pronunciadas emprestam beleza ao idioma. Um tropeço e outro, todavia, é suportável, mas o constante expressar rude ou canhestro é imperdoável. Representantes da esquerda idiomática, ou, se bem preferirdes, defensores do pragmatismo vernacular, argumentariam e diriam-me um ultrapassado. Quem sabe fosse considerado um purista? Ou pior: um facista idiomático!

Relevando-se as contumazes ofensas, confesso-me um démodé. Sim, sou tão antiquado que, se hoje fosse possível enamorar-me de alguém, colocar-me-ia sob sua janela (sou do tempo das casas assobradadas) a tanger as cordas de um violão e soltar a voz numa serenata, quem sabe a imitar Nelson Gonçalves. E em face de iminente desafino, apelaria ao lúdico e diria num arroubo de loquacidade: “Oh Rapunzel, joga-me tuas tranças!” E ela, igualmente enamorada e desatualizada, diria-me incorrigível romântico.

E vós, certamente, haveis de questionar-me: “E a ortoépia?” Sim, o causo em questão deu origem ao presente texto. Relatar-vos-ei: Kelé era bem conhecido na pequena cidade. Filho caçula de honesta família de migrantes gregos, trabalhadores rurais, soube aproveitar a oportunidade para receber estudo diferenciado na capital. Depois de anos ausente, retornou às plagas e enredou pelo caminho da política. Bem, e em se tratando de política, feliz ou infelizmente, fazem-se necessários os comícios, os discursos arrebatadores, etc. Entretanto Kelé, por mais que se esforçasse em proporcionar grandes sermões, manifestava sofrível oratória. Sim, as prédicas, por mais que esmeradas, arrancavam risos.

Então vós me diríeis que nenhuma novidade há em discursos políticos arrancarem risos; gargalhadas, contudo, seriam mais constantes. Mas o problema com Kelé estava na vocalização das palavras; o não observar a acentuação e, mais pontualmente, a duração e divisão silábica. O jovem candidato a político proferia vocábulos de modo que as sílabas alongavam-se e adentravam a sílaba subsequente, o que tornava o discurso caricato. E isso se verificava com mais frequência entre hiatos; Kelé parecia desprezar os encontros vocálicos. A palavra democracia, por exemplo, recorrente em reuniões públicas politizantes, ao ser proferida, transformava-se em democraciiia. A cooperação transformava-se em coooperação; o país aumentava de tamanho (paíiis); a moeda ficava mais estável (moeeeda); os juízes menos iníquos (juíiizes). A feiura, no entanto, ficava horrenda (feiuuura), e qualquer ruído insuportável (ruíiido).

Agora, já explicado o porquê da hérnia de hiato ter sido aventada numa aventura linguística, ocorre-me, e isso dada à patente interdisciplinaridade, uma proposta a ser feita em breve à Academia Brasileira de Letras. Sim, para evitarmos mais um desses constrangedores homógrafos/homófonos, que tantos embaraços nos trazem, sugiro grafar o fenômeno linguístico como “érnia de iato”. Ou seria considerado descalabro e crime contra a prosódia? “Prosódia?” A mesma casta formada pela “intelectualidade de botequim” me interpelaria. Eu, a sorrir, responderia: Esse é assunto para outro texto!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Falso cognato

 

Animado por saber que o prêmio Nobel de Literatura agraciou desta feita a uma verdadeira escritora, e não mais a um famoso e fanhoso compositor, voltei-me à confecção de textos. Longe de possuir “inconfundível voz poética, de beleza austera e capaz de tornar universal a existência individual”, como a da premiada poetisa Louise Glück, deparei-me com o que me pareceu inusitado: na falta de melhor conceituação, eu falo em falso cognato. Mas o que é isso, o cognato? Palavra que tem a mesma raiz ou origem etimológica. O falso cognato teria raiz etimológica diversa, e por vezes dentro do próprio idioma. Contudo surge uma dúvida: a terminologia científica seria idioma diverso? Difícil? Explico-me.

E lá estava eu próximo ao balcão da drogaria, a interrogar a farmacêutica e a rogar por medicamento que me curasse do refluxo. Aqui faz-se necessária uma breve explicação: eu costumo tomar remédios sem prescrição médica e a defender tal prática. Essa é a realidade do país: médicos há que cobram por simples consulta praticamente o valor de um salário mínimo. Nosso país não tem tempo, nem mais paciência para sustentar discursos hipócritas. A insistência em semelhante sermão é obra de um tartufo, um falso sectário. Prossigo: a farmacêutica, a revelar “notório saber medicinal” indicou-me medicamento genérico que atende pela designação de “Domperidona”.

Eis a origem de meu embaraço: Domperidona. Fui lançado ao passado, nos tempos das “vacas gordas”. Sim, eu em Paris, aboletado no banco de um restaurante, em Montmartre - não que eu me sinta um bom mártir ou bom cristão, mas apenas um médio boêmio - bem acompanhado, evidentemente, e a degustar um delicioso Dom Pérignon. Revelada a origem de meu embaraço, pergunto-vos: trata-se de falso cognato? O champagne homenageia o monge beneditino que lhe desenvolveu o método de preparo; a droga é um amálgama de várias substâncias, quiçá potencialmente tóxicas.

E por falar em toxidade, acabo de descobrir, casualmente, a fonte de cognação entre os termos. De tanto tomar Dom Pérignon, meu organismo desenvolveu certa defesa, o que ora se manifesta como refluxo. E para minimizar tal desconforto, ingiro Domperidona. A vida é simplesmente isso: uma eterna troca de toxidades. Trocamos a toxidade prazerosa pela toxidade medicamentosa.    


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Semáforos

 

A cor vermelha a sugerir o incandescente; é luz, é alerta. E eu passo a frear o veículo de modo lento. Paro e recordo: “Olá, como vai? Eu vou indo e você, tudo bem? Tudo bem...” Não, não há conhecidos, amigos, ou ... Existem apenas estranhos. Incrível, eu me encontro com estranhos. Afasto o olhar de um lado para outro. E lá está o semáforo: Vermelho! Mas, por que o vermelho está no topo, em posição superior, sobre todos os demais? O que significa o vermelho, enfim? A proibição, o limite, a coerção. Divago: Antes de tudo a proibição; esta é nossa vida, nossa realidade. Creio que a primeira palavra a ser decodificada pela criança é o NÂO.

Logo depois vem o amarelo, ou melhor, o alerta, a restrição, o incômodo. Por que amarelo? A cor da desventura, a cor sacrificial. Nossa viver é isso: infelicidade, infortúnio. O semáforo somente aponta para a condição otimista, a expectativa de melhora; é quando mais demora a trocar de cor. Amarelo também pode propor a descontração, inspiração... contudo, ainda somos os mesmos obstaculizados, os ainda coagidos, proibidos pela precedente vermelhidão.

Em seguida e por último a lâmpada de cor verde. O que é isso, o verde? Enfim a realização da permissividade, o direito de ir e vir levado à efeito, a possibilidade, a liberdade. E mais uma vez vagueio, ou melhor, fantasio: quanta coisa precede a liberdade! Seria a servidão o berço da liberdade? Penso em La Boétie. Outra coisa curiosa: O lema do Iluminismo declara em primeiro lugar a Liberdade; só depois viriam a Igualdade e a Fraternidade. Mas o semáforo inverte o foco. Quem estaria coma razão?

No sinal verde os autos arrancam irresponsáveis; motores roncam, esbanjam cavalos de força, insinuam-se por entre ruas, vias, calçadas ...; eles são potencialmente letais. Então permito-me a um último questionamento? Estamos, com efeito, preparados para desfrutar da tal liberdade?

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A pieguice filosófica


Aristóteles, em se tratando de conhecimento, classificou o saber em três campos distintos. Chamou a esses saberes ciências - o termo ciência aqui deve ser entendido como conjunto de conhecimentos bem fundamentados. Às primeiras denominou ciências poiéticas: aquelas voltadas às artes, às técnicas de fabricação de um produto qualquer. Na verdade seriam ciências produtivas, pois que visam a um resultado. Às segundas chamou de ciências práticas, pois estas estariam ligadas diretamente às atividades práticas, o que pressupõe a conduta humana. A terceira e última classificou-a de ciência teorética, ou melhor dizendo, o conhecimento voltado ao que escapa do mundo sensível, ao que só pode ser contemplado. E por escapar ao mundo sensível, esta trata do imutável, do conhecimento inalterado. Esta ciência seria superior às outras; seria a verdadeira filosofia, a filosofia primeira ou a proto filosofia. 

A meu ver, a beleza da filosofia está exatamente em investigar o que foge ao nosso domínio, o que nos desafia a capacidade de conhecer, o que busca limitar-nos. A vera filosofia é, portanto, o bios teoréticos, a vida contemplativa em todo o seu glamour; a pura atividade racional, o pensamento metafísico. Contudo, há os que criticam tal postura a alegar que a contemplação não tem aplicação em nosso dia-a-dia. Não? Será? Além do mais, a filosofia propõe apenas questionamento; não promete qualquer resultado prático...

Nada obstante, há os que confundem filosofia com autoajuda; passam a vida acadêmica a ler semelhantes “livros” e quando se formam ... Conseguem colar grau? Por incrível que pareça, eles colam grau; têm inclusive professor orientador. Pois bem, conheci um destes exemplares que, depois de formado, mandou pintar no portão de casa uma coruja com o seguinte epígrafe: “Filósofo. Dá-se consultas. Trago a pessoa amada de volta por mais difícil que possa parecer”. Brincadeiras à parte, devemos respeitar a decisão dos que se propõe ao conhecimento de técnicas produtivas, se bem que a estes não se deve conferir o título de filósofo.

Quanto aos amantes das ciências práticas, a que se volta às ações, surge um empecilho. Sim, por tratar-se de conhecimento voltado à conduta humana, é recorrente o apelo à retórica, ao sofisma, à afetação ridícula. Percebestes que o ser humano aprende a chorar para conseguir seu intento ainda quando lactente? Pois bem, os “filósofos” - um expressivo número - que apoiam este recurso lúdico e, (por que não?) rasteiro, buscam suporte no existencialismo, seja ele cristão ou ateu, para darem vazão a seus próprios complexos (e não são poucos os complexos).

Outra grande corrente filosófica - a que não raramente é confundida com autoajuda - recorre com frequência à Escola de Frankfurt, onde Herbert Marcuse, um de seus patriarcas, busca unir a afamada sexualidade pervertida de Freud com o sofrível comunismo de Marx e Engels. Nem todos os alemães, infelizmente, dedicaram-se ou dedicam-se à investigação puramente racional, pois Jürgen Habermas, o pop star da filosofia contemporânea, empenha-se em cultuar e dar sobrevida aos mortos-vivos da escola crítica.

A filosofia prática, de um modo geral, talvez buscando dar corpo ao contraditório princípio exarado na Revolução Francesa - Liberté, Égalité, Fraternité - prima por um expediente claudicante (pelo menos em se tratando de filosofia), pois exalta a sensibilidade, o lamento. Em verdade, deparamo-nos com uma singular pieguice filosófica. Os franceses, em sua maioria, buscam pintar a filosofia com as cores de um filme noir, onde não faltam o mistério, o drama, o suspense e o excessivo sentimentalismo como recurso.

É, de fato, preocupante. Tal leitura deveria ser prescrita, assim como uma receita médica, necessitando, inclusive, de prévios exames de saúde. A obra desses “filósofos”, deveria apontar em suas notas introdutórias os efeitos colaterais e contraindicações, pois não foram poucas as vezes em que, ao ler filosofia francesa, fiquei com os olhos marejados de lágrimas, e, sem exagero algum, vi-me bem próximo da depressão.

 


sábado, 3 de outubro de 2020

A terminologia contemporânea

 

Vós não podeis mensurar o quanto sinto saudades da tristeza. Isso mesmo; quem diria, heim?  Tristeza a inspirar saudades! A contemporaneidade parece tê-la relegada ao ostracismo. Então, até por uma questão de elegância, sinto-me no dever de declarar em bom inglês: “Sadness was replaced by depression”. Os dias de hoje carecem de tristonhos, muito embora abundem em depressivos. Mas, se não me é falha a vetusta sensibilidade, depressão não inspira poetas. E a falar em poesia, certa tristeza busca invadir-me, mas ... antes que eu me deprima, mudemos o tema.

Não posso dizer, evidentemente, que sinta falta dos irritados, dos nervosos, dos iracundos, etc., mas por onde andaria esta parcela significativa da sociedade? Parece-me que também foram substituídos. Sede bem-vindos estressados! O dia-a-dia na contemporaneidade é incapaz de provocar irritação, apenas estresse. Curioso é como estes e aqueles têm origem nas mesmas perturbações orgânicas e psíquicas. Não obstante, irrita-me o fato da patente vulgarização do estresse. Como o sangue já me sobe à cabeça, ...

E quanto aos tiques nervosos? Falo de manias. Conseguis lembrar de Wilson Simonal a cantar “mania é coisa que a gente tem mas não sabe porquê...”? Não falo em maníacos, pois que estes sempre farão parte do cotidiano. Porém, e a pessoa organizada, limpa, asseada? Esta passou a ser marginalizada, pois assimilou um atributo que lhe rotula como possuidor de TOC - Transtorno Obsessivo Compulsivo. Eu só posso entender tal assertiva como sinais dos tempos. E o pior é que a presente afirmativa dá margem a uma falácia utilizada amiúde pelos bagunceiros: “Existe ordem no caos!” Aproveito o ensejo para eternizar minha resposta aos desordeiros: “Se existisse ordem no caos, este seria cosmo”.

Poderíamos parar por aqui, no entanto, já observastes que, hodiernamente, não mais sentimos medo? Sim, hoje desenvolvemos apenas fobias. Seria a fobia um medo exagerado? Bem, antes que meu medo transforme-se em fobia e eu revele toda minha loucura... ou seria neurose? Se bem que minha loucura tem por base a insensatez, a doidice; há alguma alienação mental, é fato, mas a extravagância seria considerada neurose? Reclamo vossa atenção para o fato de que a extravagância permeia toda nossa vida. É dentre os extravagantes que encontramos identificação intelectual e afetiva, ou seja, afinidade. Ou trata-se de empatia?

Pois bem, a fazer uso de minha capacidade analítica, somada, é claro, à certa dose de humor, percebo que significativa parte da terminologia contemporânea obedece aos ditames de uma “ciência” (???), que garante desvendar o grande mistério que atende pelo nome de ser humano. A popularização da dita “ciência”, contudo, tornou-a banal e desmedida, haja vista o presente texto. Mas nefasto mesmo foi o surgimento do psicologismo. Este, que através de seus “especialistas” promete ter respostas para tudo, invadiu lares, mentes, situações, relações e faz tempo que esfrega o ilustre “bumbum” aboletado nas cadeiras das salas de aulas, pervertendo, inclusive, a educação e os valores das novas gerações.   

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Pastel de queijo e caldo de cana

 

Desta vez versarei sobre determinado hábito alimentar. Diz-se que as companhias (boas ou más) fazem com que desenvolvamos hábitos... É verdade; sou testemunha viva de tal assertiva. Há aproximadamente 50 anos, eu e meu pai saíamos de casa às 04:30 (madrugada) para trabalhar. Embarcávamos em um ônibus já bastante “disputado” e durante duas longas horas atravessávamos o Rio de Janeiro até o desembarque final na Praça Tiradentes. É bom frisar que à época não existia Metrô, ou VLT, ou BRT ou qualquer outro meio de locomoção a exibir sigla bizarra. A opção pelo trem era descartada, haja vista a distância de nossa residência até a estação mais próxima.

E lá estávamos nós na famosa (e até mal afamada) Praça Tiradentes, antigo Campo da Lampadosa. De lá meu pai seguia a pé rumo à Praça Mauá; eu, por minha vez, tinha que embarcar em outro ônibus para poder chegar em Botafogo (não, não existia Vale Transporte). Todavia, antes de seguirmos nossos rumos, fazia-se necessário o desjejum. Então, na esquina da rua Sete de Setembro, em antiga pastelaria, abancados à moda provinciana, nos deliciávamos a comer pastel de queijo acompanhado de caldo de cana.

Bem, infelizmente, existem pessoas que conseguem - ou esforçam-se para - ver o mal em tudo que as rodeia. Sim, esses maniqueístas do século XXI transformaram o pastel em um dos vilões da culinária. Esqueceram-se os pessimistas de plantão que nossos pasteizinhos eram fritos em óleo novo, fresco, com muito menos gordura saturada que certos assados, e que, quando acompanhados de sucos naturais mostram-se deveras saudáveis. E o suco natural em questão é o caldo de cana, que não ficou imune aos olhares malignos dos cientistas borra-botas que parecem sentir prazer em apontar malefícios. Contudo, o caldo de cana fortalece o sistema imunológico, aumenta a hidratação do corpo, é fonte instantânea de energia, combate ao câncer e o envelhecimento precoce, é diurético natural e auxilia no combate à formação de cálculos renais.   

Nesse momento vós me perguntais: E teu pai sabia de tudo isso? Respondo-vos com honestidade: Certamente não; ele apenas repassava aos filhos seus modestos hábitos, ou melhor, sua mineiridade. Sim, meu pai e seu jeito mineiro de ser, de observar, de educar... Certamente seus hábitos também foram assimilados. A querer ou não, há patente sabedoria nos costumes antigos, inclusive na culinária mineira. Bem mais tarde, ainda nos anos setentas, quando em Belo Horizonte, a trabalhar na rua Januária, no bairro da Floresta, costumava não só degustar, mas também observar várias pessoas a comer pastéis de queijo e a beber caldo de cana em certa cantina à rua Pouso Alegre. Lógico, mineiros como meu pai, igualmente despojados.

Agora fico a me perguntar por um desfecho a esse brevíssimo relato... Certamente não há “moral da história”, nem conclusão. No entanto, podemos pensar em uma recôndita inferência: apelemos de quando em vez para a memória e recordemos - se possível - dos hábitos que os antigos nos tentaram passar, de suas conversas, costumes, valores. Deixemos um pouco de lado as pantominas e bazófias recorrentes dos que se fazem cientistas, dos que se dizem sábios, dos que se travestem em autoridades.