sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Falso cognato

 

Animado por saber que o prêmio Nobel de Literatura agraciou desta feita a uma verdadeira escritora, e não mais a um famoso e fanhoso compositor, voltei-me à confecção de textos. Longe de possuir “inconfundível voz poética, de beleza austera e capaz de tornar universal a existência individual”, como a da premiada poetisa Louise Glück, deparei-me com o que me pareceu inusitado: na falta de melhor conceituação, eu falo em falso cognato. Mas o que é isso, o cognato? Palavra que tem a mesma raiz ou origem etimológica. O falso cognato teria raiz etimológica diversa, e por vezes dentro do próprio idioma. Contudo surge uma dúvida: a terminologia científica seria idioma diverso? Difícil? Explico-me.

E lá estava eu próximo ao balcão da drogaria, a interrogar a farmacêutica e a rogar por medicamento que me curasse do refluxo. Aqui faz-se necessária uma breve explicação: eu costumo tomar remédios sem prescrição médica e a defender tal prática. Essa é a realidade do país: médicos há que cobram por simples consulta praticamente o valor de um salário mínimo. Nosso país não tem tempo, nem mais paciência para sustentar discursos hipócritas. A insistência em semelhante sermão é obra de um tartufo, um falso sectário. Prossigo: a farmacêutica, a revelar “notório saber medicinal” indicou-me medicamento genérico que atende pela designação de “Domperidona”.

Eis a origem de meu embaraço: Domperidona. Fui lançado ao passado, nos tempos das “vacas gordas”. Sim, eu em Paris, aboletado no banco de um restaurante, em Montmartre - não que eu me sinta um bom mártir ou bom cristão, mas apenas um médio boêmio - bem acompanhado, evidentemente, e a degustar um delicioso Dom Pérignon. Revelada a origem de meu embaraço, pergunto-vos: trata-se de falso cognato? O champagne homenageia o monge beneditino que lhe desenvolveu o método de preparo; a droga é um amálgama de várias substâncias, quiçá potencialmente tóxicas.

E por falar em toxidade, acabo de descobrir, casualmente, a fonte de cognação entre os termos. De tanto tomar Dom Pérignon, meu organismo desenvolveu certa defesa, o que ora se manifesta como refluxo. E para minimizar tal desconforto, ingiro Domperidona. A vida é simplesmente isso: uma eterna troca de toxidades. Trocamos a toxidade prazerosa pela toxidade medicamentosa.    


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