Muito embora o título valer-se de terminologia empregada pela medicina, o assunto em pauta, por mais incrível que pareça, envolve ortoépia. “Ortoépia?” Exclamam os incircuncisos gramaticais (ou analfabetos funcionais). E curiosos questionam: “Mas o que é isso?” – ou então – “Ainda se usa?” Sim, e até por uma questão estética, palavras bem pronunciadas emprestam beleza ao idioma. Um tropeço e outro, todavia, é suportável, mas o constante expressar rude ou canhestro é imperdoável. Representantes da esquerda idiomática, ou, se bem preferirdes, defensores do pragmatismo vernacular, argumentariam e diriam-me um ultrapassado. Quem sabe fosse considerado um purista? Ou pior: um facista idiomático!
Relevando-se as contumazes ofensas, confesso-me
um démodé. Sim, sou tão antiquado que, se hoje fosse possível enamorar-me de
alguém, colocar-me-ia sob sua janela (sou do tempo das casas assobradadas) a
tanger as cordas de um violão e soltar a voz numa serenata, quem sabe a imitar
Nelson Gonçalves. E em face de iminente desafino, apelaria ao lúdico e diria
num arroubo de loquacidade: “Oh Rapunzel, joga-me tuas tranças!” E ela,
igualmente enamorada e desatualizada, diria-me incorrigível romântico.
E vós, certamente, haveis de
questionar-me: “E a ortoépia?” Sim, o causo em questão deu origem ao presente
texto. Relatar-vos-ei: Kelé era bem conhecido na pequena cidade. Filho caçula
de honesta família de migrantes gregos, trabalhadores rurais, soube aproveitar
a oportunidade para receber estudo diferenciado na capital. Depois de anos
ausente, retornou às plagas e enredou pelo caminho da política. Bem, e em se
tratando de política, feliz ou infelizmente, fazem-se necessários os comícios,
os discursos arrebatadores, etc. Entretanto Kelé, por mais que se esforçasse em
proporcionar grandes sermões, manifestava sofrível oratória. Sim, as prédicas,
por mais que esmeradas, arrancavam risos.
Então vós me diríeis que nenhuma
novidade há em discursos políticos arrancarem risos; gargalhadas, contudo,
seriam mais constantes. Mas o problema com Kelé estava na vocalização das
palavras; o não observar a acentuação e, mais pontualmente, a duração e divisão
silábica. O jovem candidato a político proferia vocábulos de modo que as
sílabas alongavam-se e adentravam a sílaba subsequente, o que tornava o
discurso caricato. E isso se verificava com mais frequência entre hiatos; Kelé
parecia desprezar os encontros vocálicos. A palavra democracia, por exemplo,
recorrente em reuniões públicas politizantes, ao ser proferida, transformava-se
em democraciiia. A cooperação transformava-se em coooperação; o país aumentava
de tamanho (paíiis); a moeda ficava mais estável (moeeeda); os juízes menos
iníquos (juíiizes). A feiura, no entanto, ficava horrenda (feiuuura), e
qualquer ruído insuportável (ruíiido).
Agora, já explicado o porquê da hérnia
de hiato ter sido aventada numa aventura linguística, ocorre-me, e isso dada à
patente interdisciplinaridade, uma proposta a ser feita em breve à Academia
Brasileira de Letras. Sim, para evitarmos mais um desses constrangedores
homógrafos/homófonos, que tantos embaraços nos trazem, sugiro grafar o fenômeno
linguístico como “érnia de iato”. Ou seria considerado descalabro e crime
contra a prosódia? “Prosódia?” A mesma casta formada pela “intelectualidade de
botequim” me interpelaria. Eu, a sorrir, responderia: Esse é assunto para outro
texto!
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