quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Hérnia de hiato

 

Muito embora o título valer-se de terminologia empregada pela medicina, o assunto em pauta, por mais incrível que pareça, envolve ortoépia. “Ortoépia?” Exclamam os incircuncisos gramaticais (ou analfabetos funcionais). E curiosos questionam: “Mas o que é isso?” – ou então – “Ainda se usa?” Sim, e até por uma questão estética, palavras bem pronunciadas emprestam beleza ao idioma. Um tropeço e outro, todavia, é suportável, mas o constante expressar rude ou canhestro é imperdoável. Representantes da esquerda idiomática, ou, se bem preferirdes, defensores do pragmatismo vernacular, argumentariam e diriam-me um ultrapassado. Quem sabe fosse considerado um purista? Ou pior: um facista idiomático!

Relevando-se as contumazes ofensas, confesso-me um démodé. Sim, sou tão antiquado que, se hoje fosse possível enamorar-me de alguém, colocar-me-ia sob sua janela (sou do tempo das casas assobradadas) a tanger as cordas de um violão e soltar a voz numa serenata, quem sabe a imitar Nelson Gonçalves. E em face de iminente desafino, apelaria ao lúdico e diria num arroubo de loquacidade: “Oh Rapunzel, joga-me tuas tranças!” E ela, igualmente enamorada e desatualizada, diria-me incorrigível romântico.

E vós, certamente, haveis de questionar-me: “E a ortoépia?” Sim, o causo em questão deu origem ao presente texto. Relatar-vos-ei: Kelé era bem conhecido na pequena cidade. Filho caçula de honesta família de migrantes gregos, trabalhadores rurais, soube aproveitar a oportunidade para receber estudo diferenciado na capital. Depois de anos ausente, retornou às plagas e enredou pelo caminho da política. Bem, e em se tratando de política, feliz ou infelizmente, fazem-se necessários os comícios, os discursos arrebatadores, etc. Entretanto Kelé, por mais que se esforçasse em proporcionar grandes sermões, manifestava sofrível oratória. Sim, as prédicas, por mais que esmeradas, arrancavam risos.

Então vós me diríeis que nenhuma novidade há em discursos políticos arrancarem risos; gargalhadas, contudo, seriam mais constantes. Mas o problema com Kelé estava na vocalização das palavras; o não observar a acentuação e, mais pontualmente, a duração e divisão silábica. O jovem candidato a político proferia vocábulos de modo que as sílabas alongavam-se e adentravam a sílaba subsequente, o que tornava o discurso caricato. E isso se verificava com mais frequência entre hiatos; Kelé parecia desprezar os encontros vocálicos. A palavra democracia, por exemplo, recorrente em reuniões públicas politizantes, ao ser proferida, transformava-se em democraciiia. A cooperação transformava-se em coooperação; o país aumentava de tamanho (paíiis); a moeda ficava mais estável (moeeeda); os juízes menos iníquos (juíiizes). A feiura, no entanto, ficava horrenda (feiuuura), e qualquer ruído insuportável (ruíiido).

Agora, já explicado o porquê da hérnia de hiato ter sido aventada numa aventura linguística, ocorre-me, e isso dada à patente interdisciplinaridade, uma proposta a ser feita em breve à Academia Brasileira de Letras. Sim, para evitarmos mais um desses constrangedores homógrafos/homófonos, que tantos embaraços nos trazem, sugiro grafar o fenômeno linguístico como “érnia de iato”. Ou seria considerado descalabro e crime contra a prosódia? “Prosódia?” A mesma casta formada pela “intelectualidade de botequim” me interpelaria. Eu, a sorrir, responderia: Esse é assunto para outro texto!

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