quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A pieguice filosófica


Aristóteles, em se tratando de conhecimento, classificou o saber em três campos distintos. Chamou a esses saberes ciências - o termo ciência aqui deve ser entendido como conjunto de conhecimentos bem fundamentados. Às primeiras denominou ciências poiéticas: aquelas voltadas às artes, às técnicas de fabricação de um produto qualquer. Na verdade seriam ciências produtivas, pois que visam a um resultado. Às segundas chamou de ciências práticas, pois estas estariam ligadas diretamente às atividades práticas, o que pressupõe a conduta humana. A terceira e última classificou-a de ciência teorética, ou melhor dizendo, o conhecimento voltado ao que escapa do mundo sensível, ao que só pode ser contemplado. E por escapar ao mundo sensível, esta trata do imutável, do conhecimento inalterado. Esta ciência seria superior às outras; seria a verdadeira filosofia, a filosofia primeira ou a proto filosofia. 

A meu ver, a beleza da filosofia está exatamente em investigar o que foge ao nosso domínio, o que nos desafia a capacidade de conhecer, o que busca limitar-nos. A vera filosofia é, portanto, o bios teoréticos, a vida contemplativa em todo o seu glamour; a pura atividade racional, o pensamento metafísico. Contudo, há os que criticam tal postura a alegar que a contemplação não tem aplicação em nosso dia-a-dia. Não? Será? Além do mais, a filosofia propõe apenas questionamento; não promete qualquer resultado prático...

Nada obstante, há os que confundem filosofia com autoajuda; passam a vida acadêmica a ler semelhantes “livros” e quando se formam ... Conseguem colar grau? Por incrível que pareça, eles colam grau; têm inclusive professor orientador. Pois bem, conheci um destes exemplares que, depois de formado, mandou pintar no portão de casa uma coruja com o seguinte epígrafe: “Filósofo. Dá-se consultas. Trago a pessoa amada de volta por mais difícil que possa parecer”. Brincadeiras à parte, devemos respeitar a decisão dos que se propõe ao conhecimento de técnicas produtivas, se bem que a estes não se deve conferir o título de filósofo.

Quanto aos amantes das ciências práticas, a que se volta às ações, surge um empecilho. Sim, por tratar-se de conhecimento voltado à conduta humana, é recorrente o apelo à retórica, ao sofisma, à afetação ridícula. Percebestes que o ser humano aprende a chorar para conseguir seu intento ainda quando lactente? Pois bem, os “filósofos” - um expressivo número - que apoiam este recurso lúdico e, (por que não?) rasteiro, buscam suporte no existencialismo, seja ele cristão ou ateu, para darem vazão a seus próprios complexos (e não são poucos os complexos).

Outra grande corrente filosófica - a que não raramente é confundida com autoajuda - recorre com frequência à Escola de Frankfurt, onde Herbert Marcuse, um de seus patriarcas, busca unir a afamada sexualidade pervertida de Freud com o sofrível comunismo de Marx e Engels. Nem todos os alemães, infelizmente, dedicaram-se ou dedicam-se à investigação puramente racional, pois Jürgen Habermas, o pop star da filosofia contemporânea, empenha-se em cultuar e dar sobrevida aos mortos-vivos da escola crítica.

A filosofia prática, de um modo geral, talvez buscando dar corpo ao contraditório princípio exarado na Revolução Francesa - Liberté, Égalité, Fraternité - prima por um expediente claudicante (pelo menos em se tratando de filosofia), pois exalta a sensibilidade, o lamento. Em verdade, deparamo-nos com uma singular pieguice filosófica. Os franceses, em sua maioria, buscam pintar a filosofia com as cores de um filme noir, onde não faltam o mistério, o drama, o suspense e o excessivo sentimentalismo como recurso.

É, de fato, preocupante. Tal leitura deveria ser prescrita, assim como uma receita médica, necessitando, inclusive, de prévios exames de saúde. A obra desses “filósofos”, deveria apontar em suas notas introdutórias os efeitos colaterais e contraindicações, pois não foram poucas as vezes em que, ao ler filosofia francesa, fiquei com os olhos marejados de lágrimas, e, sem exagero algum, vi-me bem próximo da depressão.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário