domingo, 6 de março de 2022

As flores e o beija-flor

 

Eis uma outra história a envolver a flor e o beija-flor. No entanto, algumas especificidades acerca dos personagens devem ser apresentadas a título de ambientação. O pássaro em questão, por exemplo, vê-se liberto de qualquer figura lendária, bem como alienado de significados metafísicos. A flor, por sua vez, revela-se nada sedutora, algo caprichosa e carente de néctar. Então, de repente, não mais que de repente, desponta um primeiro questionamento: Será que, em face de tais características, poder-se-ia ainda falar de amor? Vejamos!

E lá está o beija-flor a vagar entre as flores do bem tratado jardim. Aquele revolutear, além de irrequieto, parece-me manifestar algo de inconsequência; há também um quê de arrogância, haja vista o pássaro entender que as flores teriam o “dever” de entregar-lhe o néctar. Não, dirá o astuto Bem-te-vi, colher o néctar é apenas uma expectativa de direito, não um direito. Mas o adejar contínuo da ave vem corroborar o servilismo de grande parte das flores. São elas Hibiscos, Brincos-de-princesa, Tajetes, Lantanas...

Nota importante: não somente seres humanos deparam-se com imprevistos. Sim, durante o irresponsável esvoaçar, certa imagem reclama a atenção do ariramba: uma Dactylis Glomerata, o exemplar da anemofilia.  O cuitelo pousa, volta o pescoço e busca pensar: “Por que aquela flor? Sua cor não é vermelha, nem mesmo alaranjada... aquilo parece uma erva”. Bate as asas, aproxima-se e torna a pousar. Experimenta contato e murmura: “Folhas ásperas, indiferentes. Que absurdo!” Pensou na sensibilidade da Mimosa Pudica. Num misto de revolta permitiu-se irritar: “Aquele exemplar não precisava dele para polinizar; preferia o contato com o vento em detrimento ao partilhar de sua elegância e cores”. Todavia, algo ali o atraía. Mas, o que?

Ainda a questionar-se alçou voo, passeou, “beijou” algumas Lantanas e experimentou o suave sabor do néctar. Muito embora satisfazer a natureza, entre adejares e pousos para descanso, a anemófila não lhe saia da mente. Refugiado em alto ramo de um fanerógamo qualquer, livre do assédio ou ataque de predadores, pôs-se a pensar: Que sentimento seria este? Ele sempre amou as plantas, pois elas sempre lhe forneceram o melhor de si. Este fora o amor que até então conhecera: uma espécie de interdependência. Não? Enganara-se? Fechou os pequeníssimos olhos e a Dactylis Glomerata surgiu a sua frente. Sim, aquela primavera viera trazer-lhe ensinamentos na fase outonal da vida. Nada se extrai do ser amado; amor se experiencia. O amor é imprevisibilidade, amor é independência, amor é liberdade!  

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