Abri os olhos. O entorno pareceu-me estranho... imagens enevoadas, pardacentas... Senti-me ainda dormente; uma espécie de transe. Eu... ainda letárgico? Como sabê-lo? Aquela vigília soava-me falsa, engendrada. Um canto monofônico teve início de modo quase imperceptível e, aos poucos, foi-se tornando mais e mais audível. Eram frases tristes com entonação melancólica. Alguns vultos, então, começaram por tomar forma. Divulgo um casal: homem forte, musculoso e de olhar penetrante, a mulher pareceu-me bela, mas a venda em seus olhos disfarçava a ablepsia. O casal aproximou-se e deu-se a conhecer: Zeus e Têmis. Sim, eu estava diante do Poder que, ao assimilar Conhecimento, manifesta espontaneamente Sabedoria. Em segundas núpcias, desposara sua irmã, a Justiça. Então o homem falou com voz possante: - “Tu, que tanto buscas conhecer os mistérios da vida; que muito te empenhas em deter o conhecimento, despertaste nosso interesse. Portanto, vou deixar-te com minhas filhas”.
Dito isso, o casal desfez-se no ar, a
dar-me ensejo de observar três novos vultos. Eram três mulheres, três irmãs
ligadas a fios e teares. A cena sugeria tratar-se de excelentes tecelãs. Mas como
descrevê-las? Não o saberia... esteticamente ninguém poderia chamar-lhes belas.
Eu as vi extremamente magras, pálidas, deselegantes. A paisagem lúgubre combinava com a música
fúnebre. Muito compenetradas no exercer de suas funções, não tinham o menor
compromisso com a simpatia. Uma a uma, no entanto, fez-se próxima a mim. A que
me pareceu mais jovem apresentou-se: Κλωθώ
(Clotó), mas permitiu-me chamá-la Luzia, a que traz os seres à luz, a
encarregada de tecer o fio da vida, a responsável pelos nascimentos e
partos.
A irmã seguinte encontrou-me ainda
pasmo; fora dominado por enorme assombro. Na verdade, eu vagava entre o
surpreso e o maravilhado, entre o espanto e a consternação. Talvez, por
saber-me tolo ou momentaneamente aparvalhado, a moira esforçou-se por ser
acessível. Disse chamar-se Γάχεσις -
Láquesis. Contudo, até por conta de minha patente confusão, autorizou-me nomeá-la
Beatriz. Sim, era ela quem controlava os destinos através de seu tear. Todavia,
aquela função em nada deveria sugerir “destinos previamente traçado”. Sim, os livres-arbítrios interferiam
totalmente no desempenho dos teares comandados por Beatriz; ela apenas
organizava os eventos de acordo com os valores e volições de cada um. A parca
ainda acrescentou que sorte é nada mais que a combinação de circunstâncias
positivas ou negativas emanadas por determinações individuais.
Por fim, a última irmã, a mais velha.
De todas, aquela que se me revelou a mais repreensível, esquiva. Olhou-me com
olhos semimortos, vagos, inexpressivos. Sua voz era rouca, quase um sussurro. A
aparência da moira provocava-me calafrios; ela manifestava desamor,
indiferença... Após encarar-me por alguns instantes, revelou-me seu nome: Ατροπος - Átropos. Sim, essa eu
conhecia; sua fama a precedia. Era Aisa, a inflexível, a inexorável, a
responsável por cortar os fios da vida. Aisa representava a morte, ela
retratava o inevitável. Sua irmã Beatriz a informava do desenvolvimento de
alguns fios e ela, então, encarregava-se de pôr fim ao curso dos teares.
Inobstante o desagradável contato com
as moiras, as apresentações e breves diálogos mostraram-se bastante fecundos,
pois permitiu-me entender vida e morte como correlativos necessários. Luzia, uma
primeira maia (parteira), ou o nascer, marca o início de um traçado que por
certo terá fim. Beatriz apenas reflete o empenho, ela administra a determinação
e os valores individuais que pautam toda e qualquer existência; destinos são
construídos em função das volições e destes valores. Aisa, a mais velha, apesar
da patente antipatia, vem apenas mostrar a inevitabilidade da morte. Tratamos a
morte como anátema por supervalorizarmos a vida. Talvez, a forte aversão que
Aisa demonstre ter por nós resida, exatamente, no fato de encaramos a morte
como castigo, como punição.
A imagem das irmãs enevoou-se, se bem
que o ambiente, ainda imerso em brumas, continuasse a refletir mistério. Pensei
ouvir sons, luzes, pensamentos; pensei em calar certezas nunca absolutas;
pensei em fugir para meu inescrutável imo. Foram-se as imagens de deuses a confundir-me
de modo acurado. Pergunto-me: o quanto é capaz o pensamento? E ainda: a busca
pelo conhecer pode ser responsabilizado pelas exaltações de espírito? Experimento
um certo abatimento quando deveria saber-me realizado... Perguntas assomam-me o
planear da vida: estaria próximo meu reencontro cm Aisa? Seria curiosidade ou
temor?
Continuando na mitologia grega, creio que o seu abatimento, que acredito é o meu, é semelhante ao dos Cíclopes que que também queriam conhecimento do futuro.
ResponderExcluirEles conseguiram. Inclusive o do dia de sua morte.