quinta-feira, 24 de março de 2022

As três irmãs

 

Abri os olhos. O entorno pareceu-me estranho... imagens enevoadas, pardacentas... Senti-me ainda dormente; uma espécie de transe. Eu... ainda letárgico? Como sabê-lo? Aquela vigília soava-me falsa, engendrada. Um canto monofônico teve início de modo quase imperceptível e, aos poucos, foi-se tornando mais e mais audível. Eram frases tristes com entonação melancólica. Alguns vultos, então, começaram por tomar forma. Divulgo um casal: homem forte, musculoso e de olhar penetrante, a mulher pareceu-me bela, mas a venda em seus olhos disfarçava a ablepsia. O casal aproximou-se e deu-se a conhecer: Zeus e Têmis. Sim, eu estava diante do Poder que, ao assimilar Conhecimento, manifesta espontaneamente Sabedoria. Em segundas núpcias, desposara sua irmã, a Justiça. Então o homem falou com voz possante: - “Tu, que tanto buscas conhecer os mistérios da vida; que muito te empenhas em deter o conhecimento, despertaste nosso interesse. Portanto, vou deixar-te com minhas filhas”.

Dito isso, o casal desfez-se no ar, a dar-me ensejo de observar três novos vultos. Eram três mulheres, três irmãs ligadas a fios e teares. A cena sugeria tratar-se de excelentes tecelãs. Mas como descrevê-las? Não o saberia... esteticamente ninguém poderia chamar-lhes belas. Eu as vi extremamente magras, pálidas, deselegantes.  A paisagem lúgubre combinava com a música fúnebre. Muito compenetradas no exercer de suas funções, não tinham o menor compromisso com a simpatia. Uma a uma, no entanto, fez-se próxima a mim. A que me pareceu mais jovem apresentou-se: Κλωθώ (Clotó), mas permitiu-me chamá-la Luzia, a que traz os seres à luz, a encarregada de tecer o fio da vida, a responsável pelos nascimentos e partos. 

A irmã seguinte encontrou-me ainda pasmo; fora dominado por enorme assombro. Na verdade, eu vagava entre o surpreso e o maravilhado, entre o espanto e a consternação. Talvez, por saber-me tolo ou momentaneamente aparvalhado, a moira esforçou-se por ser acessível. Disse chamar-se Γάχεσις - Láquesis. Contudo, até por conta de minha patente confusão, autorizou-me nomeá-la Beatriz. Sim, era ela quem controlava os destinos através de seu tear. Todavia, aquela função em nada deveria sugerir “destinos previamente traçado”.  Sim, os livres-arbítrios interferiam totalmente no desempenho dos teares comandados por Beatriz; ela apenas organizava os eventos de acordo com os valores e volições de cada um. A parca ainda acrescentou que sorte é nada mais que a combinação de circunstâncias positivas ou negativas emanadas por determinações individuais. 

Por fim, a última irmã, a mais velha. De todas, aquela que se me revelou a mais repreensível, esquiva. Olhou-me com olhos semimortos, vagos, inexpressivos. Sua voz era rouca, quase um sussurro. A aparência da moira provocava-me calafrios; ela manifestava desamor, indiferença... Após encarar-me por alguns instantes, revelou-me seu nome: Ατροπος - Átropos. Sim, essa eu conhecia; sua fama a precedia. Era Aisa, a inflexível, a inexorável, a responsável por cortar os fios da vida. Aisa representava a morte, ela retratava o inevitável. Sua irmã Beatriz a informava do desenvolvimento de alguns fios e ela, então, encarregava-se de pôr fim ao curso dos teares.

Inobstante o desagradável contato com as moiras, as apresentações e breves diálogos mostraram-se bastante fecundos, pois permitiu-me entender vida e morte como correlativos necessários. Luzia, uma primeira maia (parteira), ou o nascer, marca o início de um traçado que por certo terá fim. Beatriz apenas reflete o empenho, ela administra a determinação e os valores individuais que pautam toda e qualquer existência; destinos são construídos em função das volições e destes valores. Aisa, a mais velha, apesar da patente antipatia, vem apenas mostrar a inevitabilidade da morte. Tratamos a morte como anátema por supervalorizarmos a vida. Talvez, a forte aversão que Aisa demonstre ter por nós resida, exatamente, no fato de encaramos a morte como castigo, como punição. 

A imagem das irmãs enevoou-se, se bem que o ambiente, ainda imerso em brumas, continuasse a refletir mistério. Pensei ouvir sons, luzes, pensamentos; pensei em calar certezas nunca absolutas; pensei em fugir para meu inescrutável imo. Foram-se as imagens de deuses a confundir-me de modo acurado. Pergunto-me: o quanto é capaz o pensamento? E ainda: a busca pelo conhecer pode ser responsabilizado pelas exaltações de espírito? Experimento um certo abatimento quando deveria saber-me realizado... Perguntas assomam-me o planear da vida: estaria próximo meu reencontro cm Aisa? Seria curiosidade ou temor?

Um comentário:

  1. Continuando na mitologia grega, creio que o seu abatimento, que acredito é o meu, é semelhante ao dos Cíclopes que que também queriam conhecimento do futuro.
    Eles conseguiram. Inclusive o do dia de sua morte.

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