Os amigos, bem poucos na verdade,
diriam que eu vivi intensamente. E viver de modo intenso é fazer-se ativo, é
mostrar-se enérgico. Talvez a vontade (ou seria necessidade?) em tornar-me
adulto, desembaraçado, independente, tenha colaborado com este precoce desbravar.
Foi ainda menino,15 anos incompletos, o início da minha vida profissional. O exórdio,
costume de então, era seguir os passos do pai. E lá estava eu, na condição de
aprendiz, a absorver os conhecimentos da extinta profissão de restituidor
fotogramétrico. Aliás, diga-se de passagem, coisa de que muito me orgulhava;
meu pai sentia-se ditoso. Com a adolescência, porém, vieram os amores, outros
sabores, desamores, contratempos...
Foi-se a puberdade, uma mudança impôs-se.
Eu queria mais, queria a aventura, queria o mundo, fazer-me cosmopolita... Anos
depois, passada mais de uma década, ingressei na Marinha. E aqui permito-me
declarar num arremedo a Máximo Gorki, pois ali tivera lugar a primeira das
“Minhas Universidades”. A Marinha Mercante realizou-me as aspirações. Sim,
conheci o mundo: oriente, ocidente, o setentrião, o meridional; eu o
conquistei. Mas o desvendar do mundo tem seu preço: afastei-me dos que mais
amava e dos que amo, fiz-me antissocial, frio, impessoal. A beleza
mostrou-se-me em sua singularidade, em sua efemeridade. A flor é bela, mas a
formosura revela-se breve. Convenci-me de que nova mudança exibia-se; era
imprescindível.
Os livros serviram-me de alento, auxílio
e companhia na vida reclusa a que me sujeitara por quase 20 anos. Mas a
literatura não foi a primeira das artes com quem mantive contato; eu já
desfrutara da pintura e da música antes mesmo da adolescência. No entanto,
desenvolvi apreço pela literatura; passei a cultuá-la num misto de adoração e
respeito. E quando a vida marinheira já não mais me retinha, lancei-me ao
estudo da filosofia. Vestibular, universidade... Não foram poucas as
descobertas; não foram poucos os desafios. A busca pelo conhecimento, de fato,
seduz, inebria, provoca, repta. Ora, com a colação de grau veio a vontade de
transmitir conhecimentos. Então, tornei-me professor: o desafio maior. Nada obstante,
junto ao desafio, o prazer de informar. Mais de dez anos em realizações. No entanto,
teve lugar o cansaço, o enfado, meu período outonal; aproximava-se célere os
setenta. Aposentei-me.
E quando pensava-me já esquecido, já
superado, surge o convite; inusitado e inesperado convite: cursar Escola
Superior de Guerra. Embarquei quase que imediatamente rumo ao novo desafio, a
novos conhecimentos. A geopolítica fascina. Todavia, o conteúdo abrange também relações
internacionais, algo de diplomacia, economia, estratégia, segurança, história,
arte, cultura geral. Constantemente recordo-me das palavras de Aristóteles: “Todos
os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer”. Quem não se realizaria com
semelhante curso? Cursar Escola Superior de Guerra pareceu ter vindo coroar-me
o esforço por assimilar conhecimento. Eu fora premiado, fora privilegiado. De
posse do privilégio, um tipo de imunidade que o conhecimento confere, retornei
à morada para, enfim, desfrutar de merecido repouso.
Ledo engano! Cidades, por mais que
proporcionem facilidades, comodidades e celeridade, também oportunizam
desfaçatez, incômodo, exigências em demasia para quem busca quietude,
serenidade, sossego. Como consequência teve lugar a fuga para a vida
interiorana. Seria uma última fuga? Como sabê-lo? Viver é isso: é busca por realizações.
Nessa busca, um novo aprendizado: descubro-me agachado a revirar a terra. Sim,
aprendi a plantar e colher o feijão, o milho, a batata... Surpreendi-me no
escolher de manivas para o replantio da mandioca; deleito-me em selecionar e cortar
ramas de batata para semeá-las...
Bem, creio que aqui caiba uma
referência: Certa prima, médica, testemunha de grande parte das minhas
desventuras, há pouco tempo disse-me: “Viveste muitas vidas em uma única vida”.
Talvez isso explique meu empenho em escrever tal crônica. Que Deus a abençoe!