quinta-feira, 2 de junho de 2022

Uma vida: muitas vidas

 

Os amigos, bem poucos na verdade, diriam que eu vivi intensamente. E viver de modo intenso é fazer-se ativo, é mostrar-se enérgico. Talvez a vontade (ou seria necessidade?) em tornar-me adulto, desembaraçado, independente, tenha colaborado com este precoce desbravar. Foi ainda menino,15 anos incompletos, o início da minha vida profissional. O exórdio, costume de então, era seguir os passos do pai. E lá estava eu, na condição de aprendiz, a absorver os conhecimentos da extinta profissão de restituidor fotogramétrico. Aliás, diga-se de passagem, coisa de que muito me orgulhava; meu pai sentia-se ditoso. Com a adolescência, porém, vieram os amores, outros sabores, desamores, contratempos...

Foi-se a puberdade, uma mudança impôs-se. Eu queria mais, queria a aventura, queria o mundo, fazer-me cosmopolita... Anos depois, passada mais de uma década, ingressei na Marinha. E aqui permito-me declarar num arremedo a Máximo Gorki, pois ali tivera lugar a primeira das “Minhas Universidades”. A Marinha Mercante realizou-me as aspirações. Sim, conheci o mundo: oriente, ocidente, o setentrião, o meridional; eu o conquistei. Mas o desvendar do mundo tem seu preço: afastei-me dos que mais amava e dos que amo, fiz-me antissocial, frio, impessoal. A beleza mostrou-se-me em sua singularidade, em sua efemeridade. A flor é bela, mas a formosura revela-se breve. Convenci-me de que nova mudança exibia-se; era imprescindível.

Os livros serviram-me de alento, auxílio e companhia na vida reclusa a que me sujeitara por quase 20 anos. Mas a literatura não foi a primeira das artes com quem mantive contato; eu já desfrutara da pintura e da música antes mesmo da adolescência. No entanto, desenvolvi apreço pela literatura; passei a cultuá-la num misto de adoração e respeito. E quando a vida marinheira já não mais me retinha, lancei-me ao estudo da filosofia. Vestibular, universidade... Não foram poucas as descobertas; não foram poucos os desafios. A busca pelo conhecimento, de fato, seduz, inebria, provoca, repta. Ora, com a colação de grau veio a vontade de transmitir conhecimentos. Então, tornei-me professor: o desafio maior. Nada obstante, junto ao desafio, o prazer de informar. Mais de dez anos em realizações. No entanto, teve lugar o cansaço, o enfado, meu período outonal; aproximava-se célere os setenta. Aposentei-me.

E quando pensava-me já esquecido, já superado, surge o convite; inusitado e inesperado convite: cursar Escola Superior de Guerra. Embarquei quase que imediatamente rumo ao novo desafio, a novos conhecimentos. A geopolítica fascina. Todavia, o conteúdo abrange também relações internacionais, algo de diplomacia, economia, estratégia, segurança, história, arte, cultura geral. Constantemente recordo-me das palavras de Aristóteles: “Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer”. Quem não se realizaria com semelhante curso? Cursar Escola Superior de Guerra pareceu ter vindo coroar-me o esforço por assimilar conhecimento. Eu fora premiado, fora privilegiado. De posse do privilégio, um tipo de imunidade que o conhecimento confere, retornei à morada para, enfim, desfrutar de merecido repouso.

Ledo engano! Cidades, por mais que proporcionem facilidades, comodidades e celeridade, também oportunizam desfaçatez, incômodo, exigências em demasia para quem busca quietude, serenidade, sossego. Como consequência teve lugar a fuga para a vida interiorana. Seria uma última fuga? Como sabê-lo? Viver é isso: é busca por realizações. Nessa busca, um novo aprendizado: descubro-me agachado a revirar a terra. Sim, aprendi a plantar e colher o feijão, o milho, a batata... Surpreendi-me no escolher de manivas para o replantio da mandioca; deleito-me em selecionar e cortar ramas de batata para semeá-las...  

Bem, creio que aqui caiba uma referência: Certa prima, médica, testemunha de grande parte das minhas desventuras, há pouco tempo disse-me: “Viveste muitas vidas em uma única vida”. Talvez isso explique meu empenho em escrever tal crônica. Que Deus a abençoe!

Um comentário:

  1. Disseste bem, muitas vidas em uma única. Tiveste também muitos Mestres, mas somente Um Oportunizador. Crescei e multiplicai.

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