terça-feira, 27 de setembro de 2022

Lenda Urbana


Ainda bem jovem, talvez pelo fato de interessar-me sobremodo por literatura (realidade diversa daquela do atualíssimo contágio freireano), fui desafiado no sentido de escrever uma fábula. Difícil? As dificuldades, assim cria, seriam as mesmas no que tange à redação de qualquer texto, se bem que, em se tratando de literatura, a fábula é composição que se vale de personagens animais para narrar um fato que oculte uma verdade moral. Até aí tudo bem, mas o professor veio com um mote que, a meu ver, era extremamente complexo. Não porque eu fosse um menino, mas pela temática em si. Pois bem, a fábula deveria discorrer sobre uma situação política qualquer. Como? Pergunto-vos. Como falar de moralidade dentro do panorama político? Moralidade e política são termos excludentes... Dificuldade similar seria caracterizar animais de políticos. Naquela época não havia leis que protegessem os interesses animais... Todavia, aventurei-me. A seguir, passo a vos transcrever a antiga fábula que, não livre de críticas, foi dita invencionice, ficção, mitologia, intriga... Anos mais tarde, no entanto, a reler meus alfarrábios, passei a entendê-la, a pretensa fábula, como lenda urbana. 

“Agora eu era uma coruja que passava dias e noites a observar os habitantes daquele lugar. Era uma cidade de carneiros, todos brancos e fofinhos. A cidadezinha, encravada no cimo de pequena serra (um serrote?), tinha pouco mais de três mil habitantes (carneiros); todos viviam felizes. Até que um dos carneiros, certo dia, tomado de imensa vaidade, quis ser melhor do que os outros, seus iguais. O que fez ele, então? Começou a ler. Mas o fato de ler não é problema, e sim o que ler. Que tipo de leitura era aquela? A referida leitura corrompeu o desavisado carneiro e o transformou numa raposa. Que coisa horrível; ninguém mais o reconhecia. Ele queria governar seus ex parceiros; não queria devorá-los, mas usá-los. Sim, então dentre o rebanho escolheu aquela com quem mais simpatizava e a tomou como esposa. Feito isso, precisava também transformá-la em raposa. A esposa ovelha entregou-se aos tais livros até transformar-se na raposa consorte. Desse modo, a raposa macho assumiu a prefeitura da cidadezinha.

Politicamente, foi um desastre; o governante só pensava em tirar proveito, em se dar bem. Em ninguém confiava, exceto na esposa. E vieram os filhos, um, dois, três raposinhos... que cresciam. Os períodos eleitorais tinham lá os resultados manipulados, compra de votos e tudo mais. Raposão já governara quase oito anos; não desejava deixar o cargo. Então, de repente, como do nada, surgiu um raposo forasteiro que do casal se aproximou. Conversa vai conversa vem, tornaram-se íntimos. E raposão perguntou ao recente amigo, o recém chegado, como permanecer no cargo. O estranho respondeu como se esperasse pela pergunta, muito embora escolhesse as palavras para que o Prefeito não se aborrecesse. O mais novo aliado aconselhou uma separação do casal; ele ficaria dois mandatos no poder e a ex esposa (tudo uma grande farsa) ficaria outros dois mandatos, se bem que ele, o atual prefeito, permanecesse no controle. E para afastar quaisquer especulações por parte das ovelhas, ela se casaria (também uma grande farsa) em segundas núpcias. Raposão, coçou o queixo pontudo e perguntou com quem a esposa se casaria nesta falsa segundas núpcias. O forasteiro espreguiçou-se e respondeu que estava ali para somar.

E o plano foi colocado em ação. A raposa consorte relutou um pouco mas acabou por consentir. Durante o mandato da esposa, o marido continuava a dar as ordens. Os filhos, os três raposos, desfrutavam de cargos de confiança e comissionados. Na verdade, não de direito, mas de fato eram cargos vitalícios. Os demais cargos eram distribuídos de modo aleatório, pois Raposão, enquanto sem mandato, de casa, desempenhava o difícil papel de eminência parda. Dos mais de três mil habitantes, quatrocentos e tantos eram funcionários da prefeitura. A raposa consorte, tendo que ter vida social e estar sempre acompanhada do falso novo marido, tornou-se alcoólatra. E assim a cidadezinha viveu sua sina por mais de vinte anos quase que em total anonimato.

Aniversário da cidade. Festa na praça, tudo decorado e superfaturado. A igreja a badalar os sinos de modo a reiterar o convite aos habitantes. De longe viriam grupos de pagode, tocadores de forró pé-de-serra, casais sertanejos; todos acarneirados. Determinada hora, no coreto principal, a Sra. Prefeita, já a exalar odores e vapores etílicos, dá início a seu decorado discurso improvisado. A seu lado o novo cônjuge, o raposo forasteiro. O ex marido e ex prefeito, no lado oposto à praça, assistia cabisbaixo ao deprimente espetáculo. Enquanto a mulher vocifera ao microfone um palrar desprovido de sentido, o atual marido dá início a uma série de movimentos semelhantes a um stripper. Que loucura! Ovelhas entreolham-se; carneiros entreolham-se. Tudo estranho: o raposo marido despe-se com alguma dificuldade. Súbito não mais existe a raposa; as roupas bem justas escondiam um mastim. A mulher se cala. O enorme cão ladra e a pega pela gola da blusa; a prefeita se urina todinha. O cãozarrão então declara com a pata apontada para Raposão: - ‘Tu, esta senhora aqui (sacudiu a raposa), que nunca deixou de ser tua mulher, e teus rebentos, podeis vos considerar presos! Terminados estão os vossos desmandos’.

Não obstante minha condição de coruja, desconheço o fim que levaram as raposas, ou melhor, os ex ovinos maquiados de raposas. Parece-me que o grande mastim começou a colocar as coisas no lugar. Bem, e como aqui se trata de uma fábula - ou seria lenda urbana? - está a faltar uma moral para a história. Então lá vai: ‘Tanto o bem como o mal são frutos colhidos do conhecimento’”.    


Um comentário:

  1. Como diria uma das ovelhas que se tornou raposa no auge de sua van filosofia, "...por traz de cada ovelha criança, existe um grande mastim..." e segue o jogo diria a coruja observadora.

    ResponderExcluir