Ainda bem jovem, talvez pelo fato de interessar-me sobremodo por literatura (realidade diversa daquela do atualíssimo contágio freireano), fui desafiado no sentido de escrever uma fábula. Difícil? As dificuldades, assim cria, seriam as mesmas no que tange à redação de qualquer texto, se bem que, em se tratando de literatura, a fábula é composição que se vale de personagens animais para narrar um fato que oculte uma verdade moral. Até aí tudo bem, mas o professor veio com um mote que, a meu ver, era extremamente complexo. Não porque eu fosse um menino, mas pela temática em si. Pois bem, a fábula deveria discorrer sobre uma situação política qualquer. Como? Pergunto-vos. Como falar de moralidade dentro do panorama político? Moralidade e política são termos excludentes... Dificuldade similar seria caracterizar animais de políticos. Naquela época não havia leis que protegessem os interesses animais... Todavia, aventurei-me. A seguir, passo a vos transcrever a antiga fábula que, não livre de críticas, foi dita invencionice, ficção, mitologia, intriga... Anos mais tarde, no entanto, a reler meus alfarrábios, passei a entendê-la, a pretensa fábula, como lenda urbana.
“Agora eu era uma coruja que passava
dias e noites a observar os habitantes daquele lugar. Era uma cidade de
carneiros, todos brancos e fofinhos. A cidadezinha, encravada no cimo de
pequena serra (um serrote?), tinha pouco mais de três mil habitantes (carneiros);
todos viviam felizes. Até que um dos carneiros, certo dia, tomado de imensa
vaidade, quis ser melhor do que os outros, seus iguais. O que fez ele, então?
Começou a ler. Mas o fato de ler não é problema, e sim o que ler. Que tipo de
leitura era aquela? A referida leitura corrompeu o desavisado carneiro e o
transformou numa raposa. Que coisa horrível; ninguém mais o reconhecia. Ele
queria governar seus ex parceiros; não queria devorá-los, mas usá-los. Sim,
então dentre o rebanho escolheu aquela com quem mais simpatizava e a tomou como
esposa. Feito isso, precisava também transformá-la em raposa. A esposa ovelha entregou-se
aos tais livros até transformar-se na raposa consorte. Desse modo, a raposa
macho assumiu a prefeitura da cidadezinha.
Politicamente, foi um desastre; o
governante só pensava em tirar proveito, em se dar bem. Em ninguém confiava,
exceto na esposa. E vieram os filhos, um, dois, três raposinhos... que cresciam.
Os períodos eleitorais tinham lá os resultados manipulados, compra de votos e
tudo mais. Raposão já governara quase oito anos; não desejava deixar o cargo.
Então, de repente, como do nada, surgiu um raposo forasteiro que do casal se
aproximou. Conversa vai conversa vem, tornaram-se íntimos. E raposão perguntou
ao recente amigo, o recém chegado, como permanecer no cargo. O estranho
respondeu como se esperasse pela pergunta, muito embora escolhesse as palavras
para que o Prefeito não se aborrecesse. O mais novo aliado aconselhou uma
separação do casal; ele ficaria dois mandatos no poder e a ex esposa (tudo uma
grande farsa) ficaria outros dois mandatos, se bem que ele, o atual prefeito,
permanecesse no controle. E para afastar quaisquer especulações por parte das
ovelhas, ela se casaria (também uma grande farsa) em segundas núpcias. Raposão,
coçou o queixo pontudo e perguntou com quem a esposa se casaria nesta falsa
segundas núpcias. O forasteiro espreguiçou-se e respondeu que estava ali para
somar.
E o plano foi colocado em ação. A
raposa consorte relutou um pouco mas acabou por consentir. Durante o mandato da
esposa, o marido continuava a dar as ordens. Os filhos, os três raposos,
desfrutavam de cargos de confiança e comissionados. Na verdade, não de direito,
mas de fato eram cargos vitalícios. Os demais cargos eram distribuídos de modo
aleatório, pois Raposão, enquanto sem mandato, de casa, desempenhava o difícil
papel de eminência parda. Dos mais de três mil habitantes, quatrocentos e
tantos eram funcionários da prefeitura. A raposa consorte, tendo que ter vida
social e estar sempre acompanhada do falso novo marido, tornou-se alcoólatra. E
assim a cidadezinha viveu sua sina por mais de vinte anos quase que em total anonimato.
Aniversário da cidade. Festa na praça,
tudo decorado e superfaturado. A igreja a badalar os sinos de modo a reiterar o
convite aos habitantes. De longe viriam grupos de pagode, tocadores de forró
pé-de-serra, casais sertanejos; todos acarneirados. Determinada hora, no coreto
principal, a Sra. Prefeita, já a exalar odores e vapores etílicos, dá início a
seu decorado discurso improvisado. A seu lado o novo cônjuge, o raposo
forasteiro. O ex marido e ex prefeito, no lado oposto à praça, assistia
cabisbaixo ao deprimente espetáculo. Enquanto a mulher vocifera ao microfone um
palrar desprovido de sentido, o atual marido dá início a uma série de
movimentos semelhantes a um stripper. Que loucura! Ovelhas entreolham-se;
carneiros entreolham-se. Tudo estranho: o raposo marido despe-se com alguma
dificuldade. Súbito não mais existe a raposa; as roupas bem justas escondiam um
mastim. A mulher se cala. O enorme cão ladra e a pega pela gola da blusa; a
prefeita se urina todinha. O cãozarrão então declara com a pata apontada para
Raposão: - ‘Tu, esta senhora aqui (sacudiu a raposa), que nunca deixou de ser
tua mulher, e teus rebentos, podeis vos considerar presos! Terminados estão os vossos
desmandos’.
Não obstante minha condição de coruja,
desconheço o fim que levaram as raposas, ou melhor, os ex ovinos maquiados de
raposas. Parece-me que o grande mastim começou a colocar as coisas no lugar.
Bem, e como aqui se trata de uma fábula - ou seria lenda urbana? - está a
faltar uma moral para a história. Então lá vai: ‘Tanto o bem como o mal são
frutos colhidos do conhecimento’”.
Como diria uma das ovelhas que se tornou raposa no auge de sua van filosofia, "...por traz de cada ovelha criança, existe um grande mastim..." e segue o jogo diria a coruja observadora.
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