A senhora a gritar sozinha no apartamento próximo. Os vizinhos, num misto de curiosidade e preocupação, chamaram a polícia. Telefonemas, correria... E rapidamente chega o veículo da Polícia Militar. Os policiais ainda ouviam os gritos da matrona quando aperam do carro. Bateram à porta; ninguém abria. Trancada! O jeito foi arrombar. Armas em punho, adentraram o pequeno apartamento. A senhora com cabelos grisalhos e desgrenhados exibia um semblante apavorado; olhos um tanto arregalados, mãos estendidas como a se proteger. E os membros da corporação a perguntar pelo ocorrido. A mulher apontava para a parede próxima e dizia ali estar o homem que a ameaçava.
O que parecia chefiar o grupo meneou a
cabeça, sorriu com desfaçatez e ordenou que todos saíssem. Para ele, aquilo não
era da alçada da polícia e sim uma emergência psiquiátrica. Saíram, mas a
senhora continuou com seus gritos, afinal a ameaça ainda estava presente. A tão
esperada ambulância não se fazia presente. A vizinhança em polvorosa, o
telefone celular usado como filmadora. Volta e meia um inluencer para falar bobagens. Surgiram também ativistas dos
Direitos Humanos para criticar as instituições.
Eu acabara de despertar. Já passava
das 8:30h da manhã; fora dormir tarde por conta do trabalho. Como policial eu
era neófito, mas como ser humano... Decidi-me, portanto, fazer alguma coisa
para auxiliar a senhora em crise. Galguei com alguma rapidez os degraus e
fiz-me apresentar. A senhora, apontando para a parede à frente, dizia estar sendo
ameaçada por aquele homem. Quiçá levado pela pouca prática, perguntei: - “A
senhora o conhece?” Ela titubeou para responder com constrangimento: - “Sim,
foi meu ex noivo; eu o deixei antes do casamento. Morreu faz pouco tempo. Ele
nunca me perdoou e agora diz que vai se vingar”.
Ainda que atônito, eu precisava fazer
algo, mas o que exatamente? Nada no âmbito policial. Seriam coisas do
coração... pensei de mim para comigo. De repente, como que tomado de
inspiração, voltei-me à parede e ameacei: - “O senhor não deve fazer isso:
incomodando e constrangendo esta mulher! Posso, como policial que sou,
enquadrá-lo no artigo 121-A, tentativa de feminicídio”. A mulher mostrou-se
mais calma. Minha manobra surtira efeito. Então dei continuidade a meu
desempenho artístico-policialesco: - “O senhor vai se negar?” Esperei alguns
segundos e exibi as algemas: - “Então o senhor terá que me acompanhar”.
Dirigi-me à parede vazia e avisei: - “O senhor tem o direito de permanecer
calado e tudo o que disser poderá ser usado contra o senhor no tribunal; o
senhor tem direito a um advogado e se não tiver como pagá-lo, o Estado
providenciará um para representar-te”. Ao sair, voltei-me para a mulher que
esteve todo o tempo calada e sugeri: - “Feche bem a porta!”
Desci as escadas e fui para a
delegacia. Ora, agi como se conduzisse um suspeito. O pior de tudo é que ele, o
fantasma, certamente seria liberado na audiência de custódia.
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