segunda-feira, 31 de maio de 2021

Dia dos Namorados

 

Em pouco tempo será celebrado o Dia dos Namorados, 12 de junho. Em outros países, no entanto, a data escolhida é 14 de fevereiro, quando se comemora o dia de São Valentim, isso em homenagem a um dos mártires da Igreja Católica, que lutou contra a proibição do amor romântico na Idade Média. Diz-se que a data celebra a união amorosa. E o que seria uma união amorosa? As ditas uniões estariam, de fato, relacionadas ao amor? Se fôssemos discorrer sobre o amor, estaríamos nos arriscando a plagiar O Banquete de Platão. Portanto, vamo-nos ater às relações hodiernas.

 Bem, depois que inventaram uma nova acepção para o verbo ficar, a coisa parece ter fugido um pouco ao controle e ao meu entendimento. Afinal ficar, no que tange aos relacionamentos amorosos, implica o não compromisso. Ora, o cortejar tem por objetivo a conquista, o requestar. O namorar, por sua vez, envolve sedução, o encanto, o início de um compromisso. Não obstante, o ficar, em minha ótica antiquada, não envolve qualquer compromisso. Se, de fato, assim for, percebo algo de incoerente: a juventude, que tanto fala de amor, submete-se espontaneamente a relações efêmeras? Não, muito embora a subversão valorativa do mundo atual, posso vos afiançar que ninguém quer apenas ficar; as pessoas gostam de ser amadas, não apenas usadas.

Depois deste introito não muito breve, vem-me à memória a cena de um namorico; este sim mostrou-se breve. Não posso garantir tratar-se de uma primeira namorada; na verdade, não saberia dizê-lo. Contudo, acredito ter gozado da injusta fama de namorador por conta desta horripilante experiência. O evento teve lugar em fins dos anos sessentas. Eu e os colegas de então costumávamos frequentar o clube recreativo no bairro em que morávamos. E foi no referido clube, na noite de um sábado qualquer que conheci Marion: jovem magra, de face alongada, cabelo louro e gestos estudados. E conversamos bastante ainda no clube, no período de descanso do conjunto. Atenção: não se tratava de banda, mas um conjunto de músicos.

Pois bem, após nos apresentarmos e discorrermos, cada qual a seu turno, sobre seu currículo peculiar e particular, resolvemos sair. Se não me falha a memória, ela teria mais idade do que eu. Disse-me morar na mesma rua do recreativo, pelo menos apontou certo sobrado bem próximo. Abandonamos o local e demos início ao lento caminhar que soe acompanhar o exercício do flerte. Atravessamos a rua, como se previamente combinados e nos aproximamos da esquina onde havia um armazém. Abraçamo-nos, encaramo-nos: a troca de olhares fixos, abrasados, carentes. Distante, uma cão uivou. Arrepiei-me; ela sorriu e conduziu-me para o canto escuro do muro. Confesso que pensei em sair, desistir, mas a libido parece ter falado mais alto... Chuviscos frios tiveram lugar. Refugiamo-nos sob a marquise.

Então beijamo-nos. Burt Lancaster inspirava-me em determinada cena de A um Passo da Eternidade. Pensei abrir os olhos e admirar o rosto de Deborah Kerr. E assim o fiz. Não, não era Deborah, nem mesmo Marion; ela também tinha os olhos abertos. O olhar era frio, maléfico, as feições contorcidas, disformes, um sorrir diabólico; ela nada falava e enlaçava-me a seu corpo. Seu olhar injetou-se de um vermelho sanguíneo; consegui desembaraçar-me de seu abraço. Corri sem olhar para trás. Ainda garoava. Voltei ao clube e refugiei-me no banheiro masculino. Refiz-me, retomei a calma. A imagem diabólica ficara em meu pensamento. Retornei para casa na companhia dos amigos sem nada confidenciar.

Noite terrível, conturbada, insone. Marion não me saía do pensamento; eu tentava comparar ambas as feições que a mulher apresentara, aquela absurda mutação. O dia chegou e encontrou-me sentado no leito. Aproximava-se o horário de meus pais saírem para a missa dominical. Estranharam por verem-me desperto. Sentei-me à mesa com eles; nada falei. Despediram-se e saíram. Pus-me a pensar, a relembrar de alguma coisa que pudesse justificar o que eu vira. Não fora noite de Lua cheia; cheguei a sentir, inclusive, a sensação das gotas finas e frias da chuva que nos encaminhara à marquise. Na Enciclopédia de papai busquei ler sobre bruxas, licantropia, magia negra, feitiçaria... Nada, eu deveria era ter ido à igreja com meus pais.

Troquei-me rápido, sem muito esmero. Saí de casa em direção à igreja. Mas ... eu cruzaria a esquina do clube recreativo, a mesma rua onde Marion afirmara morar. Desisti da igreja e tracei rumo para o sobrado que a mulher apontara. Aproximei-me com cautela; seria melhor dizer temor. Passei em frente ao portão gradeado e busquei devassar seu interior. Nada! Andei de lá para cá diversas vezes. Súbito, a porta do prédio abriu-se e um senhor apareceu. Mesmo tomado de surpresa, disparei um agônico Bom Dia. Ele percebera meu nervosismo, encarou-me com bondade e respondeu ao Bom Dia. Então perguntei se conhecia Marion. Disse-me morar ali há quase 30 anos e nunca ter conhecido ninguém com aquele nome; procurei descrevê-la fisicamente e ele negou ter visto alguém semelhante.

Agradeci e retornei ao lar. Marion, ou seja lá o que tenha sido, até hoje, passados mais de cinquenta anos, continua presente em meus pensamentos. Tive vários relacionamentos, talvez numa tentativa de livrar-me das imagens daquela noite. As relações sempre chegaram ao fim, mas nunca as lamentei, talvez porque a narrada experiência tenha causado em mim uma espécie de analgesia sentimental. Dito isto, pergunto-vos: Conhecera eu o amor? A propósito, desejo a todos um Feliz Dia dos Namorados!  

Nenhum comentário:

Postar um comentário