Em pouco tempo será celebrado o Dia dos Namorados, 12 de junho. Em outros países, no entanto, a data escolhida é 14 de fevereiro, quando se comemora o dia de São Valentim, isso em homenagem a um dos mártires da Igreja Católica, que lutou contra a proibição do amor romântico na Idade Média. Diz-se que a data celebra a união amorosa. E o que seria uma união amorosa? As ditas uniões estariam, de fato, relacionadas ao amor? Se fôssemos discorrer sobre o amor, estaríamos nos arriscando a plagiar O Banquete de Platão. Portanto, vamo-nos ater às relações hodiernas.
Bem, depois que inventaram uma nova acepção
para o verbo ficar, a coisa parece ter fugido um pouco ao controle e ao meu
entendimento. Afinal ficar, no que tange aos relacionamentos amorosos, implica
o não compromisso. Ora, o cortejar tem por objetivo a conquista, o requestar. O
namorar, por sua vez, envolve sedução, o encanto, o início de um compromisso.
Não obstante, o ficar, em minha ótica antiquada, não envolve qualquer
compromisso. Se, de fato, assim for, percebo algo de incoerente: a juventude,
que tanto fala de amor, submete-se espontaneamente a relações efêmeras? Não,
muito embora a subversão valorativa do mundo atual, posso vos afiançar que
ninguém quer apenas ficar; as pessoas gostam de ser amadas, não apenas usadas.
Depois deste introito não muito breve,
vem-me à memória a cena de um namorico; este sim mostrou-se breve. Não posso
garantir tratar-se de uma primeira namorada; na verdade, não saberia dizê-lo.
Contudo, acredito ter gozado da injusta fama de namorador por conta desta
horripilante experiência. O evento teve lugar em fins dos anos sessentas. Eu e
os colegas de então costumávamos frequentar o clube recreativo no bairro em que
morávamos. E foi no referido clube, na noite de um sábado qualquer que conheci
Marion: jovem magra, de face alongada, cabelo louro e gestos estudados. E
conversamos bastante ainda no clube, no período de descanso do conjunto.
Atenção: não se tratava de banda, mas um conjunto de músicos.
Pois bem, após nos apresentarmos e
discorrermos, cada qual a seu turno, sobre seu currículo peculiar e particular,
resolvemos sair. Se não me falha a memória, ela teria mais idade do que eu. Disse-me
morar na mesma rua do recreativo, pelo menos apontou certo sobrado bem próximo.
Abandonamos o local e demos início ao lento caminhar que soe acompanhar o
exercício do flerte. Atravessamos a rua, como se previamente combinados e nos
aproximamos da esquina onde havia um armazém. Abraçamo-nos, encaramo-nos: a
troca de olhares fixos, abrasados, carentes. Distante, uma cão uivou. Arrepiei-me;
ela sorriu e conduziu-me para o canto escuro do muro. Confesso que pensei em
sair, desistir, mas a libido parece ter falado mais alto... Chuviscos frios
tiveram lugar. Refugiamo-nos sob a marquise.
Então beijamo-nos. Burt Lancaster
inspirava-me em determinada cena de A um Passo da Eternidade. Pensei abrir os
olhos e admirar o rosto de Deborah Kerr. E assim o fiz. Não, não era Deborah,
nem mesmo Marion; ela também tinha os olhos abertos. O olhar era frio,
maléfico, as feições contorcidas, disformes, um sorrir diabólico; ela nada
falava e enlaçava-me a seu corpo. Seu olhar injetou-se de um vermelho
sanguíneo; consegui desembaraçar-me de seu abraço. Corri sem olhar para trás.
Ainda garoava. Voltei ao clube e refugiei-me no banheiro masculino. Refiz-me,
retomei a calma. A imagem diabólica ficara em meu pensamento. Retornei para
casa na companhia dos amigos sem nada confidenciar.
Noite terrível, conturbada, insone.
Marion não me saía do pensamento; eu tentava comparar ambas as feições que a
mulher apresentara, aquela absurda mutação. O dia chegou e encontrou-me sentado
no leito. Aproximava-se o horário de meus pais saírem para a missa dominical. Estranharam
por verem-me desperto. Sentei-me à mesa com eles; nada falei. Despediram-se e
saíram. Pus-me a pensar, a relembrar de alguma coisa que pudesse justificar o
que eu vira. Não fora noite de Lua cheia; cheguei a sentir, inclusive, a
sensação das gotas finas e frias da chuva que nos encaminhara à marquise. Na Enciclopédia
de papai busquei ler sobre bruxas, licantropia, magia negra, feitiçaria...
Nada, eu deveria era ter ido à igreja com meus pais.
Troquei-me rápido, sem muito esmero.
Saí de casa em direção à igreja. Mas ... eu cruzaria a esquina do clube
recreativo, a mesma rua onde Marion afirmara morar. Desisti da igreja e tracei
rumo para o sobrado que a mulher apontara. Aproximei-me com cautela; seria melhor
dizer temor. Passei em frente ao portão gradeado e busquei devassar seu
interior. Nada! Andei de lá para cá diversas vezes. Súbito, a porta do prédio
abriu-se e um senhor apareceu. Mesmo tomado de surpresa, disparei um agônico
Bom Dia. Ele percebera meu nervosismo, encarou-me com bondade e respondeu ao
Bom Dia. Então perguntei se conhecia Marion. Disse-me morar ali há quase 30
anos e nunca ter conhecido ninguém com aquele nome; procurei descrevê-la
fisicamente e ele negou ter visto alguém semelhante.
Agradeci e retornei ao lar. Marion, ou
seja lá o que tenha sido, até hoje, passados mais de cinquenta anos, continua
presente em meus pensamentos. Tive vários relacionamentos, talvez numa
tentativa de livrar-me das imagens daquela noite. As relações sempre chegaram
ao fim, mas nunca as lamentei, talvez porque a narrada experiência tenha
causado em mim uma espécie de analgesia sentimental. Dito isto, pergunto-vos:
Conhecera eu o amor? A propósito, desejo a todos um Feliz Dia dos Namorados!
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